domingo, 25 de dezembro de 2005

O Pintor - Parte II (O Velho e o Moço)

Jorge e seu filho, Juquinha, agora já estavam caminhando sob a luz avermelhada do pôr-do-sol. O calor ainda teimava. A sede já os machucava, e um pequeno cantil era tudo que tinham até atingir a próxima vila. O pintor falou que era hora deles pararem para descansar, beber e comer um pouco antes de continuarem a caminhada. Juquinha prontamente aceitou, os pés ardidos se largando no chão, acompanhados pelo corpo raquítico. O pai também se deixou largar no chão. Catando uns pedacinhos da carne e misturando-os com farinha, Seu Jorge serviu a ele e Juquinha. Os dois comiam vorazmente, enquanto o sol lá em cima ia sumindo e dando lugar àquela lua graúda e pálida de sempre. Mesmo assim, o pai se animou e gritou pro filho:

- Olha Juca, que lua mais bunita! Nós vamo andar debaixo dela, isso chega a ser honra! Bom sinal, meu filho!

Mas Juquinha parecia apático. Estava enfiando os nacos de carne lentamente na boca, o corpo encolhido, como se quisesse estar de volta no ventre da mãe. Olhou para cima, depois tornou a olhar para o chão cascudo e retrucou.

- Meu pai, o que a gente tá fazendo aqui...

- Ô meu filho, tens que aprender a admirar as pequenas coisas! Vai me dizer bem que é normal essa luona aí, toda empinada pra gente. Mas nunca reparaste que ela tá aí, se exibindo faz anos pra ti, e mal percebes ela? Essas coisas que a gente julga pequenas e nem repara na beleza, são elas que regem toda nossa vida, meu filho!

- Meu pai, tem coisa melhor pra gente...

E foi interrompido. O pai fez sinal de que ele devia se silenciar e sorriu marotamente para o garoto, como que dando sinais de que ia contar uma historieta. O menino prontamente desamarrou a cara e, curioso, se empinou na direção do pai para ouvi-lo melhor. Seu Jorge era um exímio contador de histórias, fosse nos seus quadros, fosse no boca-a-boca. Fez Juquinha dormir contando histórias fantásticas, improvisadas. Era Lampião casando com Cleópatra, era rainha Elizabete andando de camelo no meio da Antártida. E haja dar impulso para os sonhos dos seus filhos assim, alimentando a imaginação deles com a liberdade que nunca teriam ali, naquele fim de mundo que era o sertão nordestino. Juquinha fez sinal para o pai, que prontamente começou.

- Sabe, meu filho, teu pai, quando tinha tua idade, morava mais pro sul, trabalhava numa terra de gente rica. Gente boa aquela, eu ganhava salário - o que era raro na época - pra trabalhar na lavoura, e tinha abrigo na própria casa, junto com os ricos. Família de portugueses, aquela falava engraçado. Se enrolava até para pedir uma água! Pois bem, como ia dizendo, na tua idade, já trabalhava, olha só. Aí tinha uma moça que cortava cana comigo. Tinha uns treze anos, ela. Era órfã, os pais tinham morrido em briga por terra lá pro norte. O patrão adotou ela, e ela trabalhava por vontade própria. Tinha uma voz linda. Ficava cantando no meio da plantação, entoava um monte de música bunita enquanto ajudava as outras moças com o corte. O pessoal odiava ela, porque ela era a privilegiada do patrão, sabe? Ia só para apreciar a terra - justo essa terra feia! - brincar com a plantação, correr livre, sujando o vestidinho rendado de terra seca. Mas eu não. Eu adorava aquela menina, era uma princesinha naquele antro de macho. Meus primeiros quadros surgiram tudo ali, arranhando no caule da cana aquele rosto, muitas vezes até me cortando com o teçado, de tanto encarar ela e rabiscar sem olhar. Acho que ela pensava que teu pai era doido varrido, Juquinha!

Pois é. Um belo dia, ela parou de aparecer por ali, e os outros caras começaram a comemorar que a moleca que ficava cantando alto tinha enjoado da terra. Logo perceberam que o trabalho podia ser muito mais tedioso do que parecia, e o diabo era que eles teimavam em dizer que a menina tinha morrido. Eu nunca engoli essas lorota de sertão, e tu bem sabe como teu pai é, meu filho. Semana depois, levantei mais cedo e fui na parte da casa que ela morava, e minha maior surpresa foi me encontrar com o patrão chorando na beira da cama.

A menina linda agora tava coberta por uma pilha de lençol grosso, o rostinho pálido encolhido, suando e tremendo. Um padre na beira da cama rezava aquelas rezas de defunto, e tudo que eu fiz foi dar um grito e correr pra beira da cama. Minha mão suja alcançou aquele rosto, e pela primeira vez senti o que era ela olhar pra mim, meu filho. Justo ali, ela morrendo num quarto escuro, juntei força e deixei escapar um "eu te amo" tão estridente que até o patrão me olhou assustado. Comecei a falar tudo: da voz dela que fazia o trabalho ser prazeroso ,da beleza dela correndo pelo campo sujando as roupas rendadas, de tudo. Ela tocou meu rosto - a mão dela tava quente e tremia, lembro como se fosse agora - e me disse que sabia quem eu era. E assim, sem ao menos me dizer mais nada caiu prum lado da cama e morreu.

Doeu, meu filho, doeu. Eu tive que ver ela ir embora e deixar aquela plantação de cana vazia, silenciosa. Só dava pra ouvir agora o barulho das teçadadas nas plantas e, vez ou outra, um grito vindo do meio do mato. Meu trabalho ficou muito pior, e olha que não "só" perdi o canto dela. Perdi também meu primeiro amor assim, sem sequer poder trocar um papo que fosse, sem ao menos escrever uma cartinha. Teu pai tem esses olhos fracos e velhos, Juquinha, porque Deus já tá me dando sinal de que já vivi muito nessa vida. O pouco tempo que me resta, vou te contar minha vida assim, sentado no meio do sertão, enquanto a gente anda, atrás das paisagens que desenho tanto e nunca vi.

- Mas, meu pai, qual a relação dessa história tua com a lua aí? - falou com certa vergonha de não entender a moral do que o pai lhe contara.

- Meu Juquinha...ainda és muito novo, mal começaste a contar teus passos nesse mundo! Ainda vais aprender muito até entender, de cara, a moral das histórias que esse teu pai doido te conta. Quando digo pra ti apreciar essa luona aí, apreciar as poucas flores que nascem no meio dessa terra ferrada, é justamente pra te fazer perceber que a natureza tem seus caprichos, mas sabe ser justa. Até mesmo aqui, a gente tando nessa vida fumada, tem coisa bunita que, com vontade, dá pra enxergar. Não nasceste aqui por ser azarado, ou por não merecer ver a beleza do mundo lá fora, esse dos meus quadros. Tenta ouvir, debaixo do barulho dos teus passos e da gritaria do mundo, um canto lindo, um canto que podes ajudar a entoar com teu caráter bondoso e com o amor que podes semear, mesmo na seca. O mundo, meu filho, é um quadro que a gente vai pintando na manha, vez ou outra borrando e depois remendando assim, num toque de pincel. Não vou te ditar as regras, mas vai tentando esboçar os teus sonhos para, um dia, tê-los feitos...coisa que teu pai aqui não fez ainda .É por isso que tou aqui contigo, andando por aí: quero ver o que idealizei por tanto tempo, e quero ver tudo isso contigo. Não dizem que o pai passa exemplo bom pro filho, usando até mesmo os ruins pra dizer o que não se deve fazer?Pois é Juquinha: vou te ensinar a ser um moço sonhador, mas que vai fazer o quadro virar filme antes que ele borre de vez, como foi comigo e com a menina. O velho aqui vai te mostrar o lado bom e o ruim de se sonhar.

Juquinha não entendeu muita coisa, mas ficou feliz por saber que estava ouvindo a voz mais sábia que já tinha aparecido na sua frente, quando viu os olhos dos pais se encherem de lágrimas de felicidade quando recebeu um forte abraço do filho. Às vezes nem precisa se entender o recado:basta sentir o carinho de quem o dá com a melhor das intenções. Agora estava gostando da idéia de passear por aí com o paizão, e a fome e a sede eram esquecidas lentamente.

Sentindo-se até culpado, Juquinha encarou a luona, deitado no chão de peito pro ar. Ela parecia mais linda do que nunca. Era surreal. Seu brilho azulado era refletido nos olhos do pai, que agora ficavam, satisfeitos, a observar seu filho contemplar o céu. Seu Jorge puxou, então, o seu caderninho da maleta e começou a desenhar o garoto deitado no meio do sertão nordestino, a fitar o céu límpido e a lua cobrirem a escuridão com aquele brilho azulado .Em menos de um dia, Seu Jorge já tinha um quadro novo. Mas aquele, como tanto queria, era tão real que quase saltava da folha. Seu filho atônito estava ali, diante dele, e no papel, ao mesmo tempo. As duas faces da arte finalmente juntas...realidade e idealização. Sua jornada começara com o pé direito.

E, como num piscar de olhos, os dois dormiram lá mesmo. O velho assobiando e desenhando tudo que tinha a seu redor, o moço sonhando, perdido entre estrelas, luas gigantes e mocinhas de vestido sujo, cantando por entre ramos de cana.

O Pintor - Parte I (Um Par)

Seu Jorge era um pintor de paisagens. Já era velhinho, aposentado. Tinha uma cabeça muito boa para sua idade, e talento lhe sobrava, quando se tratava de pintar. Criava lindas cataratas, maravilhosas mesas de jantar em castelos faraônicos, grandes serras de neve, palácios parisienses...tudo da janela de seu barraco, situado no encontro do sertão com um riachinho que secava de dois em dois dias. Não chovia, mas as noites autuninas parisienses eram parte obrigatória dos seus quadros mais sombrios. Ganhava seus trocados vendendo suas obras para eventuais caminhoneiros que por ali passavam. Deixava-as lá fora, na beira da estrada de piçarra, de onde todos pudessem ver a peculiaridade que era aquele senhor desenhando o primeiro mundo no meio do Nordeste semi-árido. Ele sorria, com os dentes amarelados à mostra, quando ofereciam mais do que cobrava: significava que gostavam da obra. Reconhecimento! E assim a vida de Seu Jorge seguiu por muito tempo, sustentando sua mulher e seus doze filhos.

Belo dia, Seu Jorge se acordou e decidiu ir "dar um passeio". Avisou à família, que o questionou imediatamente, intrigada. Mas apenas respondeu que ia vender quadros na cidade grande e voltava em um mês. Catou uns nacos de carne seca para a viagem, juntou suas roupas numa trouxa e saiu, vibrante, pela porta da frente. No fundo, sabia que não ia vender seus quadros em lugar algum, nem sequer os carregou consigo. Levou apenas Juquinha, seu filho mais novo, dezesseis anos recém-completados ("para me guiar, já que mal enxergo!", retrucou à mulher, que hesitava em mandar o menino com ele), suas tintas, um pouco de dinheiro e a trouxa já citada. Sorria, desdentado mesmo, acenando animado para a família que observava ele e Juquinha sumirem em meio ao sol escaldante do sertão. Um par sozinho, caminhando sobre o solo cascudo, o pai encorajando o filho, o filho ansioso e hesitante, não entendendo nada.

- Meu pai, aonde que nóis tamo indo agora? O sinhô sabe o caminho? - perguntou Juquinha.

- Fica tranquilo, meu filho. Teu pai conhece essas terras muito mais do que tua mãe pensa.

- Mas nós num vamo pra cidade grande não? O sinhô tava mentindo,num tava?

O velho Jorge sorriu de novo, os poucos dentes que sobravam agora reluzindo alegremente sob o céu límpido, sem uma nuvem sequer a cobrir o sol sertanejo.

- É, meu filho, eu menti. Vou te mostrar tudo o que já desenhei. Nós vamo sem rumo, achar a origem do que tem nessa cabeça caduca do teu pai. E vô pintar muito mais do que em toda minha vida. E vais conhecer o mundão que tem fora dessa redoma de calor em que a gente vive enterrado. Vais ver que esse mundão é mais bunito que isso aqui.

- Mas meu pai...e a mãe? E os irmãos? Eles vão ficar bem, meu pai? Vão comer o quê?

- Relaxa que a aposentadoria chega pra eles. Nós é que vamo passar por dificuldade agora meu filho. Mas tem fé no teu pai. - E sorriu de novo, os pés calejados nem sentindo o calor da terra. Juquinha retribuiu o sorriso, nervoso, ainda pensando no que estavam a fazer.

Não tardou e os dois desapareceram de vez no horizonte, arrancando mais uns suspiros dos doze restantes na casa. Naquela mesma tarde, uma única florzinha mirrada, de cor amarela, brotou do solo rachado, bem na frente da casa de terra batida.

José Augusto Mendes Lobato - 26/12/05

sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

Hum...


Me sentindo um pouco diferente.Um pouco mais preocupado com o que penso,um pouco menos forte diante do silêncio,um pouquinho menos dono de mim.Meio bobão.Hoje me acordei com aquele espaço preenchido na cabeça.Mas preenchido pela divertida expectativa,pela corda bamba que ainda não driblei,não pela gostosa,mas enjoativa certezinha.Os sentimentos brincam entre si,cruzam-se na minha mente,como que rindo da minha confusão,cutucando as feridas e me lembrando do quanto é estressante isso.Fico pasmo com o que sou capaz de sentir,um pouco apático diante da minha total incapacidade neste ramo da psique humana. Talvez seja o tempo agindo sobre mim...um piscarzinho de olhos que foram esse últimos três meses dever ter me recolocado nos eixos.Andava frio,andava calado comigo,andava sem o direito de abrir meu coração.Não apenas por convenção o por respeito a algo,mas sim poruqe não tinha chado razões para me abrir.Calado para mim mesmo,deixei as sensações e as efêmeras empolgações levarem adiante.E fui muito,mas muito feliz.Nunca pensei ser capaz de conseguir me abrir de novo tão cedo,mas depois de hoje percebi o quanto o amor é uma coisa engraçada,que fica brincando de pingue-pongue com os corações alheios e empurrando-os uns contra os outros.Nada eterno,como costumava rabiscar pelas paredes a cadernos...
Credo!Sou tão jovem para já pensar assim,nesse "nada é eterno" tão piegas...prefiro dizer que nada é eterno em termos literais...afinal,tal qual a matéria que forma nossos corpos,o sentimento é eterno ; apenas,vez ou outra,salta,de corpo em corpo,de alma em alma,atacando silenciosamente os corações fechados,dando uma dosesinha de ácido à imaginação e aos sentimentos,que rejuvenescem e devaneiam à vontade.
Começaram os planinhos bobos,já.Por incrível que pareça.Aquele típico "E se ela quiser?Como vai ser?Será que não tô me iludindo?",coisas do tipo.É tão bom ser bobo nessas horas!A matéria que eu tinha perdido,esse peso não-literal (de ter um sentimento brotando) nas costas,voltou com força total.A idéia de novamente ter um par.Um par de mãos para segurar,um par de olhos para o qual possa exibir meus defeitos e virtudes sem medo,ou "ao menos" uma companhia para jogar conversa e carinho "fora" e viver momentos legais.Pronto para isso eu devo estar,já que estou viajando nessa possibilidade já fazem trinta linhas.Só não sei se ainda sei brincar disso.Só não sei bem o que dizer,o que fazer,como agir diante duma possível eminência de reciprocidade de sentimento.Enferrujado?Sem prática?Amedrontado?PATÉTICO?Exato.
Essas coisas a gente desaprende,ainda mais depois de tanto tempo aproveitando o sucesso de uma tentativa passada.E,em tempos de guerra,dá-se um jeito de reaprender,quando a fome da amar de novo já começa a consumir os últimos estoques de paciência no sangue.E,pra mim,já chegou a hora de viver um pouco mais ligado ao instinto.Vou ter que provar para mim mesmo que vou reagir legal,entrar na dança ver se...hum...se consigo o que quero.Se consigo sair um pouco do chão de novo e ficar lesão - com causa - por mais uma época da minha vida.

José Augusto Mendes Lobato 23/12/05

quinta-feira, 22 de dezembro de 2005

Fuga do Teatro Dos Vampiros


"Vamos lá,tudo bem,eu só quero me divertir"...Renato ouvia seu xará cantar aquela frase,tão natural,lá do outro lado do seu quarto.As caixas de som estavam viradas para a parede,como se ele não quisesse ouvi-lo mais,como se quisesse apenas sentir as vibrações trazidas pela música,suaves,lhe dopar.Estava de saco cheio da vida;na verdade,tudo já era óbvio para ele,nada mais o divertia.Ao contrário da letra que ele ouvia,sua solidão e alienação eram espontâneas.Recebera treze ligações naquele dia.A ex-namorada,desesperada,fez cinco.As demais eram dos amigos e dos seus pais."Pessoas desocupadas!Não têm o que fazer?Deixem-me em paz!",exclamou Renato,atirando o telefone contra a parede,e enfiando goela abaixo outra dezena de pílulas.
A vida já tinha lhe dado surpresas demais,reviravoltas demais.Estava tonto de tanto ver o mundo girando à sua volta.Sentia-se um saco de esterco em meio a pepitas de ouro,empacado na sua vidinha linear,sendo pisado e obrigado a responder com um sorriso plastificado a todos.Farto de convenções,farto de ser mais um ator no tal Teatro dos Vampiros que o xará cantava.O aparelho de som tinha sido colocado no "repeat",bem alto,e a melodia até certo ponto feliz contrastava com a sala bagunçada na qual,há dias,tinha se trancafiado.As chaves?Estavam em algum lugar esgoto abaixo.Queria sossego,e o teria,pelo menos ali.
Alisou a seringa.O que teria lá dentro?Só sabe que aquele senhor lhe garantiu morte certa e não-dolorosa.Renato achou melhor aquilo do que tiros nos miolos ou overdoses alcoólicas.Queria ter uma morte "cult",daquelas que seriam capa de jornal e assunto de mesa de bar."Que ironia",repetiu para si mesmo o que pensou,"Vou morrer e ser estrela!".Estava dominado pelo que alguns chamariam de insanidade...para ele,parecia apenas um pouco de realismo aguçado.
Seus devaneios foram interrompidos pela gritaria lá fora.Ao que parecia,tinham o achado.Ouvia as vozes que menos queria ouvir,desesperadas,do outro lado daquela barreira de concreto que ia separá-lo,pela primeira vez,do amor e do carinho que fingia receber.
- Filho,não faça isso!Meu filho,seu pai vai ter um ataque cardíaco...Renato meu filho,por favor!
- Renatinho,não faz isso,cara!Você tá louco?Não faz isso,a gente tá aqui!Porque você tá se deixando levar,Renatinho?O que a gente fez?
- Amor...
Não!Aquela voz ele não queria ouvir!Não queria que ela,justo ela,se unisse a eles.Puxou a seringa e,com firmeza,cravou-a na pele pálida,que foi tornando-se rosada na região.A agulha ia ficando mais enterrada,e a visão embaçava...embaçava...ainda ouvia os gritos difusos,que agora mais pareciam sussurros,ecoarem na sala.E,no meio do transe final,a porta abriu com força,no que pareceu-lhe um arrombamento.Os cabelos,longos e lisos,cobriam um pouco da sua já escassa visão.Sorriu vagamente ao ver ela sentar-se ao seu lado,calma,e,num sussurro,dizer:
- Quase te enganei,né?...parabéns.Em breve te encontro,meu amor.
Deu-lhe um beijo e rendeu-se novamente ao Teatro,correndo para todos os lados e gritando por socorro.Fora o melhor adeus que ouvira em toda sua vida.
Renato voltou os olhos para cima,e viu,no seu último segundo de vida,os rostos espremidos de todos seus amigos e dos seus pais à sua volta,de olhos vermelhos e ainda berrando e sacudindo-o em vão.Deixou as mãos relaxarem,e caiu,enfim,num sono pacífico.Ainda ouvindo,à distância,os gritos ecoando pela sala repleta de ofuscante luz,o jovem ator deixou o palco.

José Augusto Mendes Lobato

22/12/05

terça-feira, 20 de dezembro de 2005

"Devaneiando"


Hora de recomeçar.Bem que tinham me falado que uma estranha sensação de vazio agradável me pegaria de jeito em dias desse tão merecido ócio.Ando tão aéreo...Olho para as possibilidades de distração.Tevê,livros,cds,geladeira,computador(esse maldito!)...e lá num canto,meus instrumentos musicais,empoeirados.Pego meu violão - sem duas das seis cordas há meses - ,aliso as cordas,os dedos frágeis e desconfiados mal assimilando o que fazem ali.Faço um acorde,o primeiro acorde em meses.Fá Sustenido Menor,meu preferido.O som tristonho desse ficava na minha cabeça durante as horas tristes,em que queria um violãozinho em mãos,mas estava longe.Agora podia pegá-lo a qualquer momento,e exercitar as mãos com outras coisas além de canetas.
Tento me lembrar de como era determinado solo.Vou tirando-o com paciência,nota por nota,timbe por timbre.E vou assim,lentamente,reconstruindo a melodia dos meus dias,recolocando as coisas nos eixos.Um grande susto passou,e a expectativa ainda teima,mas quase sempre escondida debaixo da animação de poder relaxar."Devaneiar".Vez ou outra,ainda acordo assustado,às seis e meia,pulando da cama direto para o chuveiro,e caio numa gargalhada sonolenta e prazerosa,quando percebo que não preciso me acordar,ainda.Ah,como é bom poder se deixar levar pelas horas!Como é bom trocar a noite pelo dia olhando a lua dar a volta em nossas cabeças!Como é bom poder tecer comentários sobre outras coisas além de provas com os pais!Como é bom poder pegar esse violãozinho e dar uma passada no shopping,comprar umas cordas,e passar a tarde a poli-lo,ouvindo uma boa música e assoviando para a vizinha esbelta que passa no prédio da frente,para o cachorro que dorme no nosso calcanhar roendo o pé da cama.Esses mínimos prazeres,que nos são tirados,voltam ainda mais gostosos,provavelmente pela saudade de ser moleque,nem que seja por dois meses apenas.Afinal,nada em exagero diverte o homem,não é?
Pois é.Diversão é a palavra chave.Mesmo quando passarem os tais dois meses,a gente vai continuar se divertindo.Mas a brincadeira vai ser de adulto.Uns vão brincar de escrever,outros,de salvar vidas,outros,de manter a paz (com ou sem armas de verdade) ,outros,de mexer com dinheiro e política.Cada qual fazendo o que gosta,assim como na infância,com uns preferindo o pira-pega e outros,o videogame.É assim que o tempo nos traga como eternas crianças no nosso ciclo vital...as brincadeiras apenas se multiplicam e se desenvolvem,e o mundo à nossa volta se expande para que elas caibam melhor.Daqui a dois meses,vamos todos estar voltando às "aulas"...porém,com mais uns tragos de tempo,seremos nossos próprios professores...
E aí não haverão mais notas ou harmonias bobas.A vida vai deixando de ser aquela luzinha monocromática,aquela corda pendurada sobre um abismo,e vai ficando mais firme.E a gente vai passar,como tanta gente antes fez.Como nossos pais,como nosso avós,como Adão e Eva.
E dá-lhe viagem...é nisso que dar ter tempo pra pensar!Ando tão aéreo!
Hora de voltar ao mundinho real,que ainda está crescendo ao meu redor.Tudo na mesma.O violão ainda está nas minhas mãos,que,por sinal,voltaram a deslizar suavemente.Pegando a prática de novo,desenferrujando não só essas mãos,mas esses pés,essa cabeça(que andava sobrecarregada de porcarias inúteis),essa vida que andava meio capenga,em suspenso,ando sorrindo mais naturalmente.Faltam duas cordas no instrumento,mas que se dane.Lentamente,as mãos vão acariciando o violão e vai saindo a mais linda melodia que já toquei na vida,e olha que nem passa pelo Fá Sustenido.Na verdade,nem sei por onde passa a harmonia,do mesmo jeito que não sei por onde passa a minha escrita.Ando tão aéreo...

José Augusto Mendes Lobato 21/12/05

segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

Uma despedida formal à minha pessoa


E chega,enfim,a hora dos olhos se fecharem.Muito do que se lembrar?Sim.Muito o que esquecer?Também.E a mente,surrada e calejada,se entrega ao descanso dos sonhos.É merecido.O arrependimento ainda vem,em doses homeopáticas,me lembrando das coisas que minhas mãos largaram no caminho e das que,por entre meus dedos,escaparam.Nem mais preciso apegar-me à complexaida dos sentimentos e suas infinitas ramificações : o que sinto,agora que a noite já chegou e meu destino está a meio caminho confirmado,é a pura e simples tristeza.
Quem sabe precise esperar mais,para que,na hora certa,meu passo siga mais firme?Nem mesmo eu sei o que se passou nesse três anos em direção a um divisor de águas tão intenso.Sim,eu sofri pressões,eu pressionei a mim mesmo.Mesclei meus devaneios e curvas aos tão lineares traçados que,a mim,são impostos,e fiz de minha imaturidade álibi para queimar as pontes que meus pais contruíram com tanto carinho.Foram exatos dezesseis anos e dez meses até eu chegar aqui.A esta véspera.A esta noite,tão exata e igual às outras e,ao mesmo tempo,tão diferente.As horas dançam diante de meus olhos,como que me dizendo que,agora,nem adianta fechar os olhos cansados ; numa piscadela,a luz do sol já estará rasgando as cortinas.
Agora,me imagino sentado,às oito horas da manhã (ou seja,daqui a oito horas e quarenta minutos) ,olhando,atônito,para a tal prova.Testarei não apenas minhas habilidades com números e textos,mas também a minha capacidade de fazer jus a tudo que tenho.A minha capacidade de organizar minha vida.E,nisso,sei que ando sendo um completo fracassado.Foram-se anos regados a música,aos amores ditos eternos,às noites lisérgicas,às horas diante do espelho,aos amigos e,principalmente,à sorte,da qual abuso.A consequência de tudo estará ali,enfiada nas entrelinhas daquela questão impossível de Física.Parece surreal,mas não é.
Nossa,como meus olhos pesam agora.
(...)
Minha mãe esteve aqui no meu quarto.Ouviu música comigo e me deu um pouco de carinho.Deitou do meu lado,calada,como que sabendo que tinha algo a dizer para ela.Quebrei,então,o relativo silêncio das nossas vozes em meio à música que tocava.
- Mãe...
- Diz,meu filho.
- Perdão.
- O que?Por que “perdão”,Guto?
- Desculpa.Desculpa por tudo que me destes e não soube aproveitar.Desculpa
estar te preocupando durante todos esses anos.Queria poder voltar no tempo,ter
sido um menino mais sensato e responsável.Teria te livrado dessa dor,de já
saber que teu filho não vai passar numa universidade pública,antes mesmo dele
fazer a prova.Perdão também por cada vez que te menti,matando aulas ou
fingindo estudar.Perdão pelas bobagens que já te falei.E,principalmente,perdão
pelas horas de trabalho que viveste e que eu não irei recompensar...te amo.
Seu silêncio permaneceu.Ela me abraçou mais forte e continuamos a ouvir as
músicas.Senti que ela tremia um pouco ; talvez quisesse chorar e estivesse se segurando na minha frente.Mudei de assunto para tentar fazê-la esquecer do que tinha dito.Nem ela,nem o meu pai,mereciam sequer se lembrar do que estavam enxergando em mim,aquele quadro borrado que tinha tudo para ser uma obra de arte.
Os olhos pesam mais e mais,a caligrafia já está torta.A mente está me dando as costas,deve estar guardando as última sforças para amanhã.Eu nem sei se sou digno de descanso.Nem sei se sou digno do que conquistei até agora.Não sei se sou digno de pisar em um solo tão límpido com esses meus pés enlameados.
Nem mesmo sei se mereço a confiança deste papel no qual escrevo...talvez fosse melhor fazer um aviãozinho com ele e jogá-lo pela janela.Deixar meus medos assim,suspensos no ar,até caírem de vez em alguma vala e serem borrados pela sujeira.
Minha carapaça está frágil.Não posso mais fingir ter tamanha força.Dói chegar ao fim de uma fase da vida e ver que me esforcei muito pouco,e tarde demais,para transpô-la com dignidade.Mas,quem sabe,esse jovem receba mais um presente de Deus,uma chance de mudar de vez.O arrependimento cresce,e chegam o cúmulo do sono e os últimos centímetros da folha na qual escrevo.Despeço-me aqui de mim mesmo,deixando um paradoxalmente saudoso adeus ao garoto que fui.Minha redoma caiu,se despedaçou.Serei mais do que mais um,e menos do que prometo ser ao espelho.
Voa,meu pensamento,deixa-me para trás,deixa-me em paz,deixa-me a sorrir.
Chega,enfim,a hora dos olhos piscarem.

José Augusto Mendes Lobato 18/12/05

sábado, 17 de dezembro de 2005

O Que as Mãos Não Seguram - A Redoma de Papel Pt.2


Queremos voar em espírito,nos livrar das presilhas,eu sei : embora nossos corpos insistam em se fixar nesse solo batido,nessa realidade monocromática.Eu sinto em nós dois a vontade de ser algo mais do que extremos,mas o que podemos fazer?

Alçar vôo com as asas em chamas?
Nem sequer temos para onde ir.

Queremos fazer um do outro um escudo,mas só nos ferimos : talvez as mãos não estejam segurando firme,talvez o ombro em que choras não seja sincero.Eu sinto em mim o medo de ser assim tão seu,tão dono de mim e,ao mesmo tempo,tão escravo de meu coração.

Devo eu encarar teus olhares como o aviso de quem ama?
Sinais que não tens vontade de seguir o meu caminho?

Não faça piada de minhas esperanças,não cubra teus olhos com a mesma venda de desconfiança.Eu posso te levar daqui,fazer de teus sonhos uma realidade intensa,uma certeza imensa de que não há para onde fugir...porque não precisarás fugir.Veremos que,debaixo de tantos metros de concreto lapidados no teu coração existirá uma vontade de fazer surgir de nossas cinzas do passado uma força para lutar alados.

Talvez opostos em sentimento,mas espelhos diante do tempo.

Queremos não ser mais iguais,mas tentaremos não ser diferentes.Juro a ti que buscarei eternizar o que fostes dentro de mim,enquanto busco uma forma de te levar para a frente sem te distorcer.Desejas voar livre,mas ainda teima em fingir

Que as asas que te dei são frágeis contra o vento
E que nem mesmo o tempo te fará descobrir o que és.

Mas não me diga que me ama,enquanto ainda me chama daí,de dentro da mesma redoma,me dizendo que ainda não pode sair.Como posso eu,tão fraco diante de um espelho,olhar em teus olhos e te forçar a socar as paredes?Não te forçarei a lutar enquanto não tiveres vontade de se libertar,de fugir.

Devo eu tentar me aproximar das chamas
E tentar atravessas para o outro lado e cair na mesma sina
de ser escravo dos meus medos?

Não encontre nas mentiras as melhores lembranças,eu sei : ainda vês as metades invertidas.Não confie nos pedaços do espelho se a mim quiseres ver dentro de ti.Ainda estou sorrindo,mas será que com esses sorrisos não irei te atingir?O que as mãos não seguram são essas brisas que o tempo me traz.Esses DeJa Vus disfarçados em memória que mal consigo reunir e formar deles uma história.Me diga aonde ir.Se for para te encontrar como fostes,busco enquanto esses olhos refletirem vida.Não me permito tropeçar : mas pretendo,desses pés,me despir.

Queremos apenas paz.Salvar-nos do que fazemos de mal a nós mesmos,laçar nosso desatino e queimá-lo,olhando das chamas surgir o carinho.Dar ao corpo um sustento,alimento para a imaginação a dar aos olhos o fascínio.

Alçar vôo com o corpo e deixar a alma para trás?
Isso é que desejaria em teu domínio!
Quero meu espírito suspenso no ar.

Quero que o tempo não me trace caminhos.

E esse é o meu conflito : te ter morta,tragada e engolida na redoma,mas não ter vontade de ir te buscar.Os sentimentos já não fazem de meus olhos espelhos,a minha alma já não está encarcerada.Quero-te fora,quero-te livre,quero-te longe do solo batido.

Mas não me diga que estás segura se tens aonde pisar
Nossas asas em chamas te levam aonde quiseres ir.
Teu caminho se abriu,longe de onde estás.Pretendes da redoma sair?

Lembre-se : não adianta ter nas entrelinhas teu levante secreto
Se nesse mundo que te deram tens as mãos laçadas pelo eterno conflito
De querer o perfeito para si.

José Augusto Mendes Lobato 17/12/05

quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

O Que Não Se Lê Nas Entrelinhas - A Redoma de Papel Pt.1


São nessas horas perdidas e sem foco que percebo o quanto estou sozinho.Vejo que a redoma que construístes pra me proteger é apenas um reboco frágil,que se despedaça lentamente com cada chuvinha que bate.

São nessas discussões bobas que ouço o que relamente tens a me dizer.Percebo que o medo ainda me controla e me impede de te dizer as palavras cortantes que mereces ouvir.

São nas contradições que crio que me vejo cada vez mais centrado.Teu beijo que se tornou maldição,teu olhar que se tornou provocação,todos me retraem .

São nesses teus olhos secos que vejo um fim concretizado.Teu desejo agora é a minha perdição,e no mundo para o qual voltei me recebe de braços abertos.

São os amigos esses que me olham sem impor julgamentos.Esses que te reconhecem e te conhecem como realmente és,e não confiam nas mentiras que podem ouvir.

São meus perigos que corro,não mais os seus;as palavras que cuspo agora são as minhas,o que penso não mais teu aval precisa receber.

É esse o meu jeito;maroto,ansioso,manhoso,exigente,teimoso...um alguém com uns tantos defeitos como você.

Um alguém que te amou e cuidou de ti com ninguém soube cuidar...nem mesmo você.

E o tempo nos impôs novas estradas.

São nessas horas esboçando conceitos que percebo que o que foi estar sozinho se transformou em estar comigo.

São nesses nossos diálogos de elevador que enxergo o que nem você enxergou:nunca fomos a lugar algum.Apenas andamos em círculos,nos curtindo em ciclos,sem ousar e sem buscar outros motivos pra estar juntos.

São nas poucas horas em que me vem a tristeza,que disfarço com destreza,que percebo que teu ciclo escolhe outro alguém,e a mim resta olhar pra você e te desejar boa sorte,enquanto vejo nosso passado ser cuspido,pisado,apagado e enrustido dentro de você.

Pois ser maduro pode ser lindo
Mas mais lindo é admitir não o ser.
Sofro nada,mas tenho contida
A mágoa que fizestes nascer...crescer.

E o tempo nos opôs.

É uma pena ter no peito mágoas,pena,rancor e ressentimentos...num espaço que um dia você ocupou,está entrando mais alguém.

Um alguém que me lembrou que debaixo desse olhar pesado sempre vou ter formas de amar,e que meu ciclo não vai se repetir.

E são nessas horas que vejo que isso não acontece com você.Onze meses resumem a tua vida tal qual dez dias são suficientes para nos esquecer.

São nessas frases contidas que percebo o que existe dentro de mim são vozes repetidas me dizendo o que fazer.Todas estão erradas e nada têm a me dizer.

Pois aqui tenho carinho,aqui tenho coração;Aqui tenho amigos,aqui tenho minha fração.
Longe do que achava,eu sei;mas chamas isso contradição?
Não depende só de mim aonde vou
Meus pés pisam aonde descansa o meu coração.

E o tempo te distorceu.

E entendo teu silêncio diante do que te digo;lês aqui tua frustração nas entrelinhas que consegues interpretar e inventar.

São os teus erros convertidos no que penso ser teu medo de errar;são teu passos cambaleantes e lentos em direção ao que queres achar.

Queres achar algo que,pelo visto não se fez presente em mim.Queres um álibi para inverter o que pensas,queres dizer não mas subentender um sim.

Fingi te entender.
Fingi nos entender.
Fingi que sabias amar.
Fingi que sabias fingir.

Mas o tempo me levantou.

E são essas tardes tediosas que me impõem a vontade de te dizer o quanto é bom estar sozinho mas receber de mim meu próprio carinho,minha própria aceitação.

São tantas as coisas que não entendes mas que agora são para mim um cantinho,um lugarzinho ao sol onde abro minhas mãos
e deixo vir para mim
o que agora quero conquistar.
A mim,a um novo amor,
A uma gota no meio do mar.

José Augusto Mendes Lobato

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

A sala de jantar


Me acordei assustado,num recinto escuro e vazio.Ouvia os mesmos gritos lá fora.Caminhei em direção à mesma porta.Me deparei com a mesma sala de jantar.Me sentei à mesma mesa.Olhei para os mesmos olhos,disse as mesmas coisas para mim mesmo.E parecia,sim,reviver,a cada mísero segundo,momentos que,a mim,não mais pertenciam.Eram espólios do tempo,sombras do que agora era meu presente.Me beliscava disfarçadamente a cada minuto por debaixo da mesa,tentando achar algum sentido para o que estava acontecendo.Seria meu maior desejo em outras circunstâncias estar ali,mas o ambiente era pesado e extremamente surreal.
Um perfume adocicado e familiar pairava no ar,quente e denso.O chão estava frio,e meus pés sentiam uma brisa congelante por entre os dedos passar.Olhava nervoso para os lados.Tentava reconhecer alguém em meio à multidão,mas não consegui enxergar os rostos difusos e indistintos no salão.As pessoas ao meu redor,sorrindo descontraídamente,percebiam meu nervosismo,mas agiam com total indiferença,como se aquilo fosse normal,no caso,até eu me acostumar.A comida nos foi servida após o que me pareceu um turbilhão de DeJa Vus,e quando o barulho dos talheres começou a dominar o ambiente,comecei a sentir uma estranha dor de cabeça,que ia perfurando meus pensamentos e me deixando ali,inerte,sem a chance de desenvolvê-los.Algo me prendia ali.Não era minha imaginação,ou uma sensação passageira.Aquilo tudo parecia eterno.
Subitamente,em meio ao caos e às pessoas gritando,surge uma moça,alta e bela,trajando um suntuoso vestido vermelho.Sorria pelo canto da boca,aquele sorriso cínico de quem está ali a serviço,e seus olhos encontraram os meus com verocidade.As mãos dela deslizavam sobre a mesa,apalpando as taças de vinho e,cegamente,pegando uma delas.As luvas avermelhadas apontaram para mim,e,num raro momento,o silêncio imperou no recinto.A moça se dirigiu a mim,o sorriso se alargando no rosto alvo:
- Você é relativamente novo por aqui...não,tente não fazer barulho e tente não se perguntar por que está aqui,nem tente se dirigir aos outros convidados:assim como você,eles estão aqui,tragados neste mesmo espaço,saboreando a eternidade que,por mim,lhes é concedida.Sente de volta,meu senhor...não pergunte mais nada para si mesmo.
E foi embora da sala pela mesma porta em que entrei outrora,sorrindo e bebericando daquele vinho.Em poucos segundos,as vozes voltaram a ressoar no salão,como se nada tivesse acontecido.
Nem tive a chance de falar nada,me restou sentar-me novamente,e observar a sala,decorada com vitrais e lustres,ser lentamente ocupada por mais e mais pessoas que nunca tinha visto,e que,paradoxalmente,me eram familiares.A noite cobria os céus lá fora,e o pálido brilho da lua era refletido no salão fracamente iluminado por velas.Não era sonho.Levantei-me e caminhei em direção à mesma porta.Abri ela e me deparei com o que seria a realidade:um quarto,provavelmente o meu,estava ali,as luzes apagadas.No breu,porém,podia ver meu corpo estendido sobre a cama,uma faca cravada no peito e o olhar fixo no teto.Minha esposa,ao meu lado,sangrava suas últimas lágrimas e caía,inconsciente,ao meu lado.Gritei e antes que pudesse correr em direção a mim mesmo,uma grande ventania penetrou no salão,lá atrás.As velas se apagaram.Uma tempestade lá fora começou e os vitrais se estilhaçaram,cortando as pessoas,que continuavam a rir,e ensanguentando o piso de mármore.A lua,coberta por nuvens,cessou seu brilho e,com a cabeça sendo dilacerada pela dor excruciante,o perfume adocicado me cercando,penetrando no quarto em espirais e as gargalhadas histéricas ecoando no salão atrás de mim,mergulhei na escuridão.
Novamente,levantei,assustado e caminhei à porta.Abri ela e estava de volta ao salão.Sentei-me no mesmo lugar.Olhei para os mesmos olhos,disse as mesmas coisas para mim mesmo e parecia,sim,estar vivendo segundos que não mais me pertenciam,mas que a mim foram entregues.Um eterno DeJaVu se fazia realidade ali,com aqueles talheres se batendo e aquelas pessoas sentadas à mesa,rindo de si mesmas e conversando despreocupadamente assintos indistintos.E eu estava ali,preso a algo que não mais existe.Eram espólios do tempo,resquícios do meu passado que,agora,eram meu presente,meu passado...mas nunca,nunca mais,meu futuro.Estava preso,entre a morte e a vida.

José Augusto Mendes Lobato 14/12/05

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Nunca demorou tanto para que alguma coisa me viesse à cabeça.Tive medo de matar esse blog.
Perdão.

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

A Dança do Tempo

Sem dúvidas,o tempo é um cara enigmático.Dia desses estava andando pela rua,distraído,a pensar nele.Claro,a minha cabeça se entupiu de clichês,e,enquanto os varria - odeio lugares-comuns,até nos meus pensamentos - vinham pequenas memórias que nada tinham a ver com o que estava contemplando.Por uma fração de segundo,me vi parado diante de um relógio velho que mofava na vitrine de uma loja.Olha só,finge estar velho nesse ponteiros,mas o que vemos ali não é ele.Ali está sua representação convencional e objetiva,tal qual as estátuas dos santos.Ele nos acompanha,nos vigia a olhos de águia,silencioso.E,quando menos esperamos,nos traga no infinito e cá estamos de volta,passados os ciclos,prontos para abrirmos novos horizontes em nossas vidas.

Ele me pregou uma peça,esse sacana.Dois dias atrás,pensava que ainda era um moleque.Ainda tinha nas palavras obscenas e nas atitudes inconformadas meu abrigo.Todos ao meu redor também se divertiam com suas imaturidades à flor da pele,sob o álibi de serem...jovens!Éramos o "futuro da nação"?Que se dane!Ser um futuro não me era motivo de orgulho,queria mesmo era curtir o momento.Minhas notas na escola eram decentes,de fato;levava na barriga as séries e provas que ia fazendo,sempre escorado numa tal inteligência que diziam que tinha.E o tempo lá,passando,me olhando,à espera do meu primeiro tropeço.À espera do meu despertar.

Eis então que chega o fim do ensino médio,o terceiro ano.Minha mente já estava condicionada a estudar,as pressões já vinham de todos os lados."É o ano de sua vida!","Dedique-se aos estudos para não passar o próximo ano num cursinho!"...estava ainda calado,confiando no passo que,firme,agora seguia em direção ao fim da minha festinha.Eu não sabia que estava acabando.Não sabia o que estava acabando.Nem ao menos imaginava em que posição estava na minha vida.Bem diferente do tempo que agora caminhava em sua trajetória circular fixa dentro do relógio,deslizando os ponteiros por trás da vitrine encardida.

Meu ciclo de sentimentos,esses opostos ao menos romântico peso do vestibular que se aproximava,se partiu.Dois caminhos cresceram dessas cinzas,e tornei a trilhar sozinho,carregando nas costas um pouquinho de esperança de que,daqueles meses de primavera,haveriam muitas boas memórias para se guardar.Olhei para o horizonte agora linear,sutil,pronto para me receber com toda minha rebeldia,energia e força de vontade.O tempo então surge diante de mim,e fica inerte,me olhando fixo,sem dizer uma única palavra.Ele sabia o que sentiria ao vê-lo.Desespero,choque,desilusão.Estava me encarando diante do espelho.

Aquela face jovem já tinha barba.Usava óculos,e tinha um olhar mais penetrante.Já havia conteúdo naquela cabecinha que insistia em cobrir com um manto de ingenuidade.Do que queria fugir?Já não era mais tão novo,podia até me confundir com as pessoas de maleta que passavam ao meu lado na rua.Um mundo,sim,estava de braços abertos para mim,chegava o que alguns chamariam de "o começo do meio" da minha vida.Já era hora de decidir que caminho seguir,em que vertente do conhecimento iria me aprofundar.O coração começou a bater mais rápido.A pulsação arrítmica,como minha vida,levava meus sentimentos em uma montanha russa de empolgações,frustrações e descobertas.Até que tornei a me olhar no espelho,dessa vez sem reparar no físico - que agora,já não era tão perfeito assim.Olhei para dentro de mim.O relógio ainda batendo.

Me vi de perto.Vi um garoto que sofria calado,que tinha nos medos e nas mentiras que criava a base de suas atitudes.Vi nos meus olhos,uma infinidade de coisas a se dizer,contidas pelo mesmo medo que me empurrava em direção ao perigo do meu instinto.Ouvi o tique-taque que regia as horas em meu coração parar,como que para me dizer que aquele momento de descoberta era um lapso em meio ao infinito.Vi um ponteiro apontado para o ódio que alimentava,outro para as mentiras,e as horas se dividiam em eternidades de confusão e desespero,quase sempre cobertas pelo sorriso falso que forçava a exibir.

Tirei as roupas.Vi a mim mesmo despido,sem qualquer força ou desejo para me guiar novamente por através dos obstáculos.Descobri que os tinha criado sem querer,entre um gole e outro de conhaque,entre uma hora e outra de lisergia.Nu,estava diante da visão que evitava encarar.O moleque já crescido,já maduro e pronto para pisar no chão com os pés descalços.O moleque que tinha que cuspir seus pensamentos,o moleque que nem mais moleque era,o moleque que não era mais o "futuro da nação",e sim a nação: o moleque que virara homem.

É,o tempo,além de enigmático,é o pai de todos os homens,é o cara encarregado de tirar as vendas de nossos olhos e nos pôr frente e frente com o que somos perante nós mesmos.Minha noção vaga de tempo e espaço foi-se embora com um sopro,deixando minhas costas leves,prontas a carregar o peso de meu destino. E,como num passo de mágica,acabou-se o terceiro letivo.Passei,passei.Aprovado no que queria,como queria e aonde queria.Ficam para trás as memórias,que deixo novamente nas mãos do tempo.Alguns vêm comigo,outros ficam para trás,à espera de uma nova chance de se fazerem ouvidos.Meu passo é firme como o andar dos ponteiros.Caminho rumo a algo que nem sei se será eterno enquanto durar.Algo que nem sei se é o certo para mim.Mas fiz o que queria.Me larguei das presilhas e agora corro livre em direção não ao que finjo querer,mas ao que quero.

Quem diria.Eu,que me julgava tão disposto a lutar pela liberdade,me vi livre sem mover um dedo.

E,agora,encaro a representação mais literal do senhor de nosso destino.O entendo perfeitamente,sei o que se passa em cada peça que,dentro dele,ganha vida.Já o conheço,esse relógio mofado,que emite seu som abafado do outro lado da vitrine encardida.A dança das horas,há tempos,queria ser,por mim e por todos,entendida.Ao menos em mim ela já ganhou seu espaço.Os ponteiros que não se cruzam são o passado e o futuro,as horas são o presente que agora vivo.Os ponteiros que pouco se cruzam são como as pessoas que,ao meu lado,caminham,sem sequer olhar para mim.Nunca me senti tão feliz por estar sozinho,tão sozinho com meu tempo.
Tão forte e decidido,andando de mãos dadas comigo mesmo.

José Augusto Mendes Lobato - 06/12/05

quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Carmen


Ora,chega então o fim de novembro.Acabam aqui as mulheres e seus devaneios,sonhos e projeções - apenas aqui,é claro! - , mudarei meu foco para outra direção.Enquanto planejava o que dizer hoje,me lembrei que estava deixando para trás a mais indescritível mulher de minha vida,talvez por não saber o que falar...como esquecer-me ia de ti,Carmen?
Estou de acordo:mereces muito mais que uma mísera narrativa.Mereces algo mais rebuscado do que um tiroteio de idéias desmilinguidas,meu amor.Ainda me lembro bem do nosso último diálogo,na porta do bordel,que com maestria,inicia minha tentativa de homenagear-te:
- Carmen,o que posso te dar além de meu dinheiro e meu corpo sem alma?Meu coração te pede uma resposta!
- Mereço de ti a mais suja das vestes,Álvaro;no entanto,jamais as vestiria enquanto continuasses aí,preso nesse teu terno,nesse teu sorriso fútil.Já me despi das aparências,sou o que muitos chamam de uma "vagabuna dissimulada"...e você?O que é,além de um cliente a mais em minha lista?Não consegues me sintetizar em tua boca,em teu diálogo de mesa de bar,não é?Não sabes falar de mim como um ser humano,e sim como um orifício dos mais nobres desta cidade!Acha que este colar de brilhantes me dará uma companhia através das noites?Acha que terei,nesse apartamento lindo que ostento,sequer um par de mãos para entrelaçar enquanto queimo em febre?Não,Álvaro,e isso que não entendes.Falta em ti a perspectiva de ver que,nesse mundo que abraças ao meu lado,tens que assumir o que és e o que desejas,não o que convém a ti ser.
-A dor me convém,Carmen.Estar ao teu lado me convém.Abandonaria tudo,jogaria meus filhos,minha mulher,enfim,minha vida no lixo,só para te ter ao meu lado em cada passo do tempo.
-E quem és tu para falar de tempo?Achas que o tempo só existe para ti?O passar das horas também já me rasgou o veludo dessas paredes.A espera por ti já me rendeu muitas cicatrizes nos pulsos.
-A mesma dor que sentistes se refletia em meu peito!!!
-Mentira!Teu peito não pertence a mim,nem mesmo tu percebes disso?Já lutei por ti,já arrumei para ti toda uma situação para que se livrasse daquela sanguessuga,e tudo o que fizestes foi fingir não me conhecer!Tornei-me a insanidade em forma humana para todos,a cidade já ri de mim.As ruas são o palco de minha humilhação,e você,Álvaro,foi o primeiro a se levantar e puxar as palmas.Agora me pede um "bis"?
-Peço a ti uma segunda chance,uma noite de conversa que seja!Por favor,entrega-te a mim uma última vez!Te provarei que desses meus olhos posso derramar lágrimas por ti.E posso lutar por ti.
-Os dias não lhe agradam.
-O que?
-Entre tantas noites,qual foi a vez que nos combinamos de nos encontrarmos durante o dia?
-Por favor,Carmen!Dá a mim uma última chance!Deixa eu te tirar desta vida.
Nessa hora,lembro que um breve segundo de paz e silêncio se fez naquela rua.
-Esta vida é minha,Álvaro.Não podes me tirar de onde me achaste,a não ser que se liberte comigo.
E entrastes,esmurrando a porta.Tua patroa me olhou com desdém e fechou as janelas da mansão.
Meu passo cansado daquela noite agora é minha caligrafia falha desta carta que te escrevo,esta breve e pomposa homenagem que chegará a ti com uma quantidade considerável de dinheiro.Não,não seja impulsiva:espere que eu ainda não terminei.
O álcool já confunde minhas idéias,Carmen.Mas nunca,em minha vida,me senti tão disposto a me humilhar como agora,em nome de ti.Em nome dos meus resíduos que perduram em tua memória,e em nome do teu cheiro,que agora exala em cada lençol deste apartamento fétido em que vivo,o mesmo que julgaste lindo e que usaste por essa década de mentiras.Queria apenas que me ouvisse,não tenho esperanças de que volte.Queria que olhasses em tua volta,visse tuas companhias e o ambiente em que vives.Queria que reconhecesses quem está do teu lado e quem fica do teu lado.Queria que as memórias,uma última vez,te dopassem,para que a navalha pudesse penetrar doce,lisa,calma em teu corpo.Queria estar em outro lugar que não fosse dentro da tua vida,tão disposto a nos sacrificar em nome de um amor impossível.Meu desejo era ter forças de te esquartejar de forma mais ardente,no meio da rua,e,como disseste naquela vez,ser o primeiro a levantar e te aplaudir.Levantaria a lâmina para o céu,e teu sangue pingaria,formoso e purificado,no asfalto jovem.Mas não.Estou aqui,do teu lado,apenas eu,teu eterno michê,teu único amor,ostentando no peito um coração que já definha.O veneno que corre pelas minhas veias está em tua boca,que permanecerá calada por toda a eternidade.Olhe em volta novamente.Estranhas o silêncio,Carmen?São as pessoas fingindo não te ouvir.São as gargalhadas por trás das sombras,daqueles que te traíram e te humilharam a cada segundo da tua breve caminhada terrena.Eu estou,e sempre estive,com você aqui.Agora sou o responsável pela poesia de nossos últimos segundos nessa terra.Selando nosso pacto de sangue,farei eternas tuas palavras:
Esta vida é sua.Não posso tirá-la de você sem tirar a minha.
O sangue cairá de nós dois,então.
Iremos juntos ao inferno.

José Augusto Mendes Lobato 30/11/05

domingo, 27 de novembro de 2005

Vânia

Ah, pai, eu não tenho culpa! Não me julgue, o senhor já teve libido um dia e sabe como essas coisas não dependem da gente... poxa! O senhor sabe que eu sou um menino ainda, os hormônios estão transbordando junto com as espinhas. E eu não posso ser tão santinho assim, a ponto de ser assexuado. O senhor conhece seu filho, sabe que tantas horas no banheiro não são passando condicionador! Sem falso celibato, por favor, não está lidando com um santo!

Veja só que ironia, meu pai: eu fui abusado sexualmente. Tá bom, engole a risada, e afasta esse cinto de mim, senão nem pagar as fraldas do bebê vou poder. Mas eu fui mesmo! Não estava em um pouco mal-intencionado, muito pelo contrário, tentei até evitar. Mas aquela mulher, papai... meu Deus! Aquilo era muito mais que uma mulher... era uma ninfa! Sim, eu sei, não tenho idade para pensar nessas coisas. Mas tenho cabeça para isso já, sou um cara maduro. Não, a situação atual não afeta isso em nada, ainda me considero um cara de cabeça no lugar.
(...)

Bom, como ia lhe dizer antes de levar as porradas de cinto, estava jogando bola com meus amigos e acabei sofrendo uma contusão das brabas, isso o senhor já deve ter tomado conhecimento. Meu joelho estava completamente deslocado, e meus amigos, desesperados, decidiram me levar pro pronto socorro, que, magicamente, é do lado da pracinha. Sei cultivar boas amizades, o senhor sabe disso.

Entramos esmurrando as paredes, gritando por ajuda, mas o plantão parecia ter se transformado numa imensa partida de poker. Apenas uns poucos médicos ainda estavam de pé, e estes poucos conversavam e jogavam papo pra cima das enfermeiras. Sim, pai, parecia início de filme pornô... elas esfregando aquelas canetinhas no canto da boca, rindo de tudo que os doutores falavam, e por aí vai.Mas quebramos a eminência de uma suruba clínica para resolverem meu pequeno “causo” na perna. A essa altura, nem ligava mais para a porcaria da minha perna: estava de olho numa moça, que...

É pai, é ela mesma. Sim, foi ela. Sim, vai ser ela.

No crachá, lia Vânia; no corpo, lia a loucura em versos... a dor da minha lesão foi curada só pelo imagem daquele corpo coberto por aquela batinha de enfermeira, pai! E não estou sendo metafórico! Já a olhava desde a entrada, e ela me respondia o olhar com um sorrisinho cínico. Desde aí já estava ligadão, não tinha jeito.

Calma, o senhor pode fazer o favor de me ouvir? Ainda não me expliquei, relaxe!

Sim, voltando. Entramos na sala, vieram ela e um doutor (nem vi o rosto do figura) me atender. O cara foi rápido, disse que foi apenas um “mau-jeito”, passou uma pomada qualquer, me deu um antiinflamatório, um relaxante e foi embora. Logo meus amigos resolveram voltar para o campinho, alegando que eu “precisava ficar sozinho” (aqui está a prova do quanto cultivo boas amizades). Resumindo, em questão de minutos, ficamos só eu e Vânia na sala.

Tentava olhar para a tevê e fugir da tentação, meu pai, mas a coisa tava complicada, o senhor nem imagina o quanto. A mulher estava a fim mesmo! Ela ficava cruzando as pernas, para exibir aquele par de coxas definidas, e a ditacuja, escondida entre elas, vez ou outra, aparecia coberta pela fina renda da calcinha. Que era preta e transparente, por sinal. Ela ficava me olhando, fazendo perguntinhas, até que uma hora veio a investida a la Sylvia Saint:

- Você tem fetiche com enfermeiras?

- Err... tenho...

- Hum-hum! Percebi,já! Sabia que eu tenho fetiche por garotinhos como você, inexperientes, bobinhos, taradinhos?

- É?

- É.

- Ah...

Fiquei sem resposta. Mal sabia o que fazer. Ela veio andando em minha direção, tirando
cada peça de sua roupa lentamente, fechou a porta da sala com chave, e me deu um olhar sugestivo.

- O que será que temos debaixo desse lençol?

Desnecessário dizer o que ela fez, né pai? E isso não foi nada! Quando eu já estava nas estrelas, ela se jogou por cima de mim! Acho que o ranger da cama deve ter acordado até os pacientes que estavam em coma na UTI. A mulher urrava, me arranhava, até me socava na sua gloriosa cavalgada, e eu lá, “desfalecido” como um bom paciente deve ser. Nem sabia mais o que estava fazendo: o remédio que tomado já estava fazendo efeito, e via várias Vânias, uma mais enlouquecida do que a outra. Em alguns minutos, a festinha acabou, e lá caímos os dois encharcados na cama, cada qual acendendo seu cigarrinho.

Não, pai! Eu não fumo! Foi só para dar o clima!

...E Vânia começou a chorar! Vai entender essas mulheres, né, meu pai? Perguntei para ela porque ela estava assim, mas minha resposta não foi nada fácil de ouvir.

- A gente não usou camisinha...

Bom, desnecessário dizer algo mais! Agora estamos aqui, eu, um futuro pai de 14 anos, o senhor, um futuro avô que nem nos cinquenta chegou ainda, sentados vendo uma enfermeira ninfomaníaca gritar lá da sala de cirurgia pelo meu nome... é, ela se apaixonou por mim.

Não, não vou dar papo. Sigo seus conselhos, papai.

O que quis dizer nessa história toda? Narrar para o senhor a progressão dos fatos, como fui seduzido, como ela que tem a culpa e eu mereço é uma mulher de verdade, como ainda sou o mesmo garoto pé-no-chão que o senhor criou, como estou disposto a arcar com as consequências e fazer o melhor e mudar minha vida, e estudar pra passar no vestibular e trabalhar, e como posso explicar meus erros por ser ingênuo e bem-intencionado, e...

Tá certo, tá certo, desisto.

Pode me bater.

José Augusto Mendes Lobato 26 e 27/11/05

sábado, 26 de novembro de 2005

Andrea

A foto já havia sido tirada.Mesmo assim,continuava reunindo suas amigas em um arco perfeito,focando a câmera no centro de forma que nem um centímetro do grupo escapasse da foto.Ela sorria com cada flash,já articulando qual seria o próximo sorriso falso que faria.Pensava em como gostaria de passar o dia inteiro naquela pose,com aquelas roupas e pessoas ao seu redor,e não tivesse que voltar para casa,e lá se deparar com seu reflexo no espelho.
Era inconformada com sua beleza,embora todos os meninos a vangloriassem.Todo artifício que tinha em mãos para se sembelezar utilizava,e isso não se restringe a maquiagens e pingentes.Já tinha feito certas intervenções cirúrgicas para tirar as gordurinhas herdadas da infância,e suas amigas nem sonhavam com isso,admirando-a como uma "privilegiada de corpo".O modelo que seguia e difundia era o ideal para alimentar suas frustrações,ela sabia disso.Talvez por covardia,hesitava em mudá-lo.
Voltou as atenções para a festa.Andrea ainda sorria,mas agora sentada na mesa com as amigas.Taças de vinho e cigarros embalavam a conversa plastificada do grupinho.Ela,lá pelas tantas da noite,olhava o relógio,à espera do motorista.Queria ir embora,mesmo sabendo o que lhe aconteceria quando chegasse em casa,estava cansada.Não enxergava mais as amigas:vultos indistintos eram tudo que via à sua frente,e isso a colocou de volta trancafiada na sua cabeça.Era ela indistinta,exatamente daquele jeito?Vivia sob o efeito de alguma droga,forçada a moldar-se inconscientemente?Será que não estava se descobrindo (como acreditava) , e sim se perdendo mais ainda?
Será que sua vida não era tão estática e tão monocromática como aquela fotografia que haviam acabado de tirar?
Não,não.Aquilo devia ser coisa de porre.Buscou mais um cigarro na bolsa,e acendeu-o,enfiando goela abaixo o pouco de vinho que tinha em sua taça,só para pedir outra ao garçom que passava por perto.A situação piorava,sua cabeça rodava e rodava,e ela via os vultos se multiplicarem à sua volta.Resolveu ir dançar um pouco,curtir a liga.
Essas festas tinham teor semelhante à sua vida.Ela tinha que se divertir.Tinha que beber,dançar,pirar,beijar...se "libertar",nas palavras de suas amigas.Ela tinha que fazer aquilo,invariavelmente,toda sexta-feira,na mesma boate.Aliás,as festas por si só já eram iguais.Só mudavam os rostos que apareciam no clip de 15 anos.Era isso e pronto.Cerca de 8 horas de trabalho semanal,em nome do status que ostentava no círculo de adolescentes transviados da escola.
Andrea estava calada naquela noite...apenas sorria,e deixava os flashes a banharem.Não queria abrir a boca,ao menos ali.Dentro de si,tinha guardada mágoas,pensamentos de relevância,medos,sonhos,desejos...mas quem ali a ouviria?Nunca teve o costume de se abrir com ninguém.Só tinha o espelho para ouvi-la.Talvez por isso,temesse encará-lo.Assim como agora,via que nada sabia encarar sozinha,percebeu que sua face não era digna de ser encarada.
Que ela não era nada.
A dança,caótica,seguia.Os corpos à sua volta,os pensamentos percorrendo sua cabeça em espirais,o vinho exalando na sua pele,o cheiro de maconha no ar,os casais se agarrando pelos cantos,a luz difusa e multicolorida refletida nos olhos distantes.Já não se sentia bem.A certeza de um desespero que crescia dentro de si,uma sensação de deslocamento e frustração indescritível tomaram Andrea.A menina que antes estava de divertindo (ou fingindo se divertir) com as amigas,a que iluminava as fotos da Troppo com seu lindo sorriso,já não estava mais ali dentro.Nem mais um pingo de vontade de estar ali restava.A ficha tinha caído para ela.O passo,porém,tinha se tornardo paradoxalmente firme.As amigas observaram Andrea indo em direção ao pátio e a chamaram.Ela se virou,pediu-as para ficar sozinha e saiu da boate.
Chegando ao pátio,os pensamentos se esvaíram da mente de Andrea,e as sensações acabaram.Restou somente o gosto do vinho na sua boca,e a crescente dor dos pés calejados de tanto dançar.Olhava do pátio as ruas da cidade,vazias em plena madrugada.Olhou a lua,o céu limpo,a fonte d´água lá embaixo,as árvores em volta,a iluminação fraca...aquele ambiente quase teatral à sua volta.Propício.Perfeito.Inevitável.
Olhou para baixo.

José Augusto Mendes Lobato 26/11/05

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

Silvia


Tudo começa com a libido.Essa voluptuosa força que empurra os dois corpos,jovens,atraentes e inexperientes,em direção à cama.A loucura do momento é tamanha que detalhes "ínfimos",como a proteção,são esquecidos.Se entregam ao prazer,e o namoro de dois meses começa a tomar o molde de uma relação madura.
Passam-se dois meses.Os dois,claro,já estão devidamente terminados e nem se olham mais.Já é notícia em todo o morro do término dos dois.Ele já voltou a "trabalhar",e ela já está com outro,esse mais velho e mais esperto do que nunca.Largou os estudos e os pais para ir morar com ele,todos a criticam.Na sua consciência,apenas um desejo:o de dar uma vida digna para si...e para quem estava por vir.
A silueta não enganava mais:estava grávida.Desesperos à parte,estava decidida a levar a gravidez adiante.Seus pais a aconselhavam a abortar,suas amigas se afastavam gradativamente.Seu novo par parecia ser o único a aceitar a situação.Ele pensava que o filho era dele,e,se Deus fosse justo,o bebê nasceria moreno,e ele continuaria achando.Ela não podia acreditar que se via sozinha em situação tão linda como a de ser mãe!E a injustiça desse mundo com ela não acabaria aí.
Novamente,o morro assume sua forma de formigueiro humano,e as fofocas giram pelo distrito onde morava o ex-casal.Ele,traficante temido no lugar,já imaginava que o bebê era produto daquela noite que passaram juntos.O novo namorado dela era,coincidentemente,outro homem do serviço e inimigo mortal do futuro pai biológico.Ele olhava por através da janela de sua casa e via ela e o homem atravessando a rua.Apalpava sua arma,mas ainda não faria nada."Esperarei o momento certo",pensou,enquanto guardava numa caixa fotografias dela.
Os meses passavam,e ela já sentia os chutinhos da criança.Aqueles aparentemente bobos momentos de mãe e filho eram,na verdade,marcos na vida dela,que vinham como alívio em meio ao caos em que vivia.Tiroteios,mortes,chacinas,sangue,morro...pensava em fugir daquela favela quando seu bebê nascesse,e tentaria levar consigo seu namorado.Caso ele não quisesse largar a vida,ela iria mesmo assim.Sonhava em colocar o filho numa escola,arrumar um emprego e conseguir sua casa.Tinha visto na tevê que a prefeitura estava alojando famílias em um novo residencial para ex-favelados...era sua chance.
Ele já não queria mais fazer mal:os planos dela haviam chegado aos seus ouvidos,e,de repente,uma saudade,aquela solidão esganiçada,que corroe por dentro,tão comum aos homens ditos de ferro,veio.A dor parecia prever o que iria acontecer com ela,mas ele guardou para si,mais uma vez,o que sentia.Iria espera o filho nascer para conversar com ela.
Mas,como toda história envolvendo jovens sonhadores de classe média baixa,a história da menina que sonhava em mudar de vida terminou em tragédia.Em trabalho de parto,Silvinha morreu,deixando a criança antes mesmo de ver seu rosto.Um menino,nasceu branco,a cara do pai.Enfezado,o novo namorado foi entregá-lo ao ex,que já havia guardado sua arma numa gaveta,tamanho seu arrependimento de nunca ter dito para ela...que ainda a amava.Segurou-se por tanto tempo para não dar o braço a torcer,e agora tinha apenas aquele seu clonezinho,que representava uma história inacabada,como companhia no morro.Havia se tornado uma espécie de vilão na região,teria "a largado quando soube que estava grávida",estava marcado para morrer.Mas o medo não o atingia.O que o atingia era imaginar seu filho sozinho no mundo.Decidiu jogar tudo para o ar,largar o crime,reconstruir sua vida.Decidiu levar nas costas apenas o seu filho,uma muda de roupa,algumas memórias e - por que não - um pouco de esperança.
Seguiu morro abaixo.A metrópole o esperava de braços abertos.

José Augusto Mendes Lobato 25/11/05

Celine


Porque não posso sentir mais o aroma das rosas fazendo espirais no ar,dançando em torno da minha mente?Porque as palavras agora me consomem,e não mais são para mim libertárias,aconchegantes?Onde estão as minhas mãos,além de dentro de meus bolsos,enroscadas em papéis dobrados cheios de poesias inacabadas?
Aliás...cadê a poesia que escrevia com meus passos neste mundo?
Porque nada mais brilha diante de meus jovens olhos,se é dito que o sol está sempre à minha espreita?Porque não recebo mais de mim mesmo aprovação,e tudo que desejo é pecado?Porque sou tão inseguro,e minhas mãos trêmulas não me dão equilíbrio?
Aliás...cadê o meu equilíbrio?
Cada momento que estipulo eternizar se torna apenas um instante,volátil e breve esse,que leva minha mente ao infinito e me joga de volta na realidade.Meus olhos ainda estão secos,tenho forças para não chorar ainda.
Não,eu ainda não admiti a derrota.
Porque essas cicatrizes se abrem a cada conversa,a cada palavra que ouço de um amigo?Porque minhas vitórias de cada dia não compensam esssa dor imensa que é estar sozinho?Onde estão os bons conselhos,quando largo-me das presilhas e ajo pelo instinto?
Aliás...o que é o instinto?
Minha boca teima em tremer e pronunciar um nome que agora não me vem à cabeça.Seria isso o inconsciente?O mesmo que nos afasta agora,o mesmo que nos coloca frente a frente numa batalha sem vencedor ou perdedor?
Aliás...para quem eu construo minha história?Para mim,para o que fomos?
Cada lágrima que contenho,tento tornar mais um motivo de orgulho,amargo e frágil esse,que se quebra com um simples toque do teu olhar.Meu coração disfarça o desespero com o lento bater no seio que agora acelera ao te olhar.
Me faltam palavras para repetir os mesmos conceitos sob outro viés,o que posso me dar?Senão esperanças falsas,outro aroma de rosas,essas artificiais,sem cor,sem sabor,sem nada além do cheiro vazio de quem não mais pode amar?
Porque insisto em apunhalar-me a cada segundo,e contar os minutos em que pude enxergar o quão falsa minha fortaleza era,e o quanto me apeguei a uma terra onde não mais posso pisar?
Porque agora minhas mãos mal escrevem,e as letras tortas ainda conseguem um significado formar?
Porque elas ainda te desejam,Celine,querem teu corpo ao meu lado para nele repousar.
Meu amor agora está em suspenso,e meu corpo,tenso,busca um chão para pisar.Ainda sinto que,denso,meu caos será eterno:agora busco uma saída.Uma chance de recuperar minha solidão passiva.Deixo-te um adeus,conforme me entrego,olho para o chão que me espera,me atiro e sinto o vento meu corpo cortar.

José Augusto Mendes Lobato 24/11/05

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Caroline


Tudo no que acreditei fede. Às traças, entrego os meus sentimentos - agora já não me valem nada -, esses patéticos devaneios que já tive me atormentando, praticamente pedindo para serem vomitados no mais sujo penico que aparecer na minha frente.

A porta da casa range toda hora, pessoas entram e saem, balbuciando as mesmas lições de moral fajutas. Teu cheiro está aqui, em cada um destes objetos que, agora, são levados para longe de mim. Não tenho mais o direito legal de ter memórias? Ora! Quero todos os meus livros e cartas mofentos aqui, apodrecendo comigo no passar decadente de cada minuto!

Quero sentir, sim, à mercê das horas, teus lábios já póstumos alfinetando minhas orelhas, enquanto ouço tuas doces sonatas de piano... gravadas ainda em fita! Meu deus, fita! O que seria do mundo sem essas tecnologias ultrapassadas? Chega a soar bem falar de coisas passadas, não é? Acho que dedicarei a ti meus últimos momentos, sentado a fumar um charuto, escrevendo o livro dos teus dias ao meu lado.

As noites movidas a ópio me trazem tua sombra, envolta em fumaça cinzenta, da cor dos meus já doentes olhos, te ver traz, quem diria, uma lágrima do meu interior. E tarda a cair, este subproduto do meu sofrimento. Quando cai, a dor passa, e mais uma tragada me trará novo ânimo.

Tudo cheira mal. Minhas roupas, fétidas e manchadas, não são lavadas por ninguém; minha alimentação é tratada com a mesma higiene com que trato minhas fezes; meu apartamento é viveiro de ratos e de vermes, esses que me comem, no passar decadente de cada dia.

As pessoas ainda entram, fazendo ranger a porta enferrujada. Não me estendem a mão. Sequer olham para mim, como que me culpando pela tua falência. Dizem que te "matei de tristeza". Ora, que tristeza é essa? Seria ela proveniente do órgão que tanto fizestes o uso enquanto jovem? Ou viria ela dos colares, jóias, vestidos e diamantes que te dei? Teu corpo era, sim, o espelho mais belo, onde refletia o ouro e a beleza dos deuses! Ostentava-te tal qual um troféu, eras minha musa. E eu, teu marido exemplar. O que nunca ficou bebendo até cair, o que pagava as despesas, o que não te traía. O teu amante ideal!

Nossa fama na cidade era péssima, e não por tua culpa. Aquela louca que nós bem conhecemos saiu se desembestando a falar por aí coisas absurdas! Por sorte, sua sanidade já era comprovadamente afetada, e consegui colocá-la num manicômio com os outros loucos que nos malfalavam. Sempre fui um homem influente.

Mas, vangloriações à parte, agora sei que não estás mais aqui. Se pudesse, daria minha vida por ti, Caroline. O mofo começa a impregnar o ar a ponto de impedir minha respiração, e, não fossem as memórias purificando meu coração, já estaria morto. Teu segredo maior, tua idade, é o que me assusta. Teu ainda alvo seio carregava dentro um coração puro, fiel e inocente. Uma alma virgem, de míseras três décadas de caminhada terrena, morta pela vontade de Deus?Não! Deveria eu ter morrido, se Ele fosse mais sensato...

Mas não! Ele te levou, e me deixou aqui, entre livros incompletos, fotografias rasgadas e lençóis encardidos. Agora os abutres estão à espreita, esperando por sua mais nova carniça, Caroline. Meu livro acaba aqui, junto com a promessa de um eterno - e bizzarro para o leitor,talvez - amor. O ar que respiro já está rareando, e os vermes já sobem pelo pé da cama, prontos para penetrar pelas feridas, que abri com a simples ato de te escrever, e consumir minha alma e minha já podre carne.

Tua mãe já está no céu, Caroline: os loucos se libertam deste mundo mais cedo. E teu pai, que te honrou e amou até o último minuto, está indo ao teu encontro.

Espere por mim.

Cornell Thrust