sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Toda revolta é um pouco Kitsch

Sempre fui avesso ao caderno de polícia dos jornais. Para quê ficar vendo estampada lá a desgraça que atravessava a cidade, que viva nas esquinas e nos cantos sujos da nossa existência? Já basta o que nossos olhos vivenciam, o engolido em seco na vida moderna. Deixa de besteira, garoto. Violência aliada a exposição midiática é Kitsch.

Um belo – belo não, horrível – dia, porém, minha empregada chegou em casa chorando. Berrava desesperada pela casa, empunhando o caderno policial (que devia ter conseguido com os porteiros do prédio) e um telefone celular. Nervoso, coloquei-a na mesa do café e perguntei qual era o problema. Ela engoliu uns goles de café, junto com ele levando a histeria, e caiu em uma lenta e chorosa dissertação.

É, o queixo deste homem feito, acostumado com tempos de violência e com crimes escabrosos, caiu. O sobrinho da dona Zélia, menininho de 11 anos, estudante e filho único de uma viúva, morreu eletrocutado. Tudo obra de uma cerca eletrificada ilegal, posta sobre uma região lamacenta por um pescador aborrecido com pequenos furtos de açaí em sua propriedade. O menino jogava futebol com os amigos e saiu correndo atrás da bola, que havia penetrado o matagal após uma jogada mal-sucedida. Ao pisar na água, eletrificada pela cerca, sofreu ataque cardíaco fulminante e morreu na hora, não resistindo às investidas de populares da área em revivê-lo.

O episódio tornou-se motivo de revolta nos moradores do bairro. Também pudera. A que ponto chegaram a barbárie e a falta de senso dos cidadãos de um espaço comum, né? Dona Zélia se debulhando em lágrimas na minha frente, ódio pulsando no meu peito, uma xícara vazia posta sobre a mesa. Passamos horas assim, conversando sobre o pescador insano. Soube que ele era viúvo também, cara amargurado pela vida, perdera três filhos, vivia só no meio de um matagal indistinto. Mas e daí?

É como o grande João Ubaldo Ribeiro disse uma vez: vivemos em uma sociedade de absolvidos e ausentes em potencial. Ninguém é culpado em primeira instância: a suposta inocência há de ser o ponto de partida. O homem ainda estava livre. Más línguas diziam que ele era louco, doido varrido mesmo. Ia, portanto ter um destino bem melhor do que o menino: ia para um manicômio. O menino, inexoravelmente, para debaixo da terra. É de revoltar a injustiça da Justiça nessas horas de fervor.

A irmã da Zélia estava inconsolável. O pai, transtornado. Na foto estampada na capa do caderno policial, estava ela, a mãe, agarrada nos ombros do marido, irreconhecível na sua lamúria materna. Prometeram matar o pescador. De fato, tocaram fogo na sua casa e na sua propriedade, num acesso de passionalidade. O corpo esturricado do menino fora velado algumas horas depois do almoço, enquanto eu e Zélia almoçávamos na santa paz, do outro lado da cidade, encarcerados no conforto cinzento de um arranha-céus qualquer.

Também sempre fui avesso a falsos sentimentalismos. Por isso não direi que fiquei “inconsolável” pela morte do menino que não conhecia. Apenas senti-me temporariamente revoltado com a injustiça dos fatos, com a impotência das mãos que aqui escrevem de mudar um fim tão trágico dado a uma criança de onze anos. Dei tchau à pobre Zelinha, e fui pro meu quarto dormir. Como disse, foi temporário. Lexotan debaixo da língua. Filme pornô na televisão. Sono vespertino. Esqueça o menino, a cerca e o pescador, garoto. A vida é injusta assim mesmo.