sábado, 22 de dezembro de 2007

Choix

Hoje ele quis dizer o quanto os amava: as pessoas, as grandes e pequenas coisas, a vida como um todo, as paredes, os amigos. Mas não, os remédios não permitiam. Havia meses não falava coisa com coisa. Ao menos, assim acreditava-se lá fora – que sua capacidade natural de comunicar e apreender fora comprometida, ela a última de várias outras, como andar, sentir dor, fazer sexo, escutar. Era um ciclo que, sabia, o aproximava de mais uma grande reviravolta. E, doloroso aceitar ou não, ia vivenciar tudo aquilo sozinho, falando consigo mesmo e tentando, em vão, extrapolar as entranhas de seu cérebro e o limiar da tal inconsciência.

Ao contrário do que pensavam, ele sentia o ar frio lhe tocando a pele – aquela porcaria de frio que afeta a todos os moribundos; o tato dos outros a senti-lo, penoso e quente; o cheiro da carne alheia, vívida e pulsante, como foi a sua em outros tempos. Outro pêlo se arrepiava por baixo dos lençóis grossos, e impossível era cobri-lo mais do que já estava, afundado entre edredons e travesseiros. Que lugar frio! A parede do quarto – ou seria sala –, era azul – ou seria verde –, e pouco faziam os olhos diferença entre aquelas sutis tonalidades que se mesclavam diante de seus olhos. Mas é impressionante, pensou consigo, como estes são capazes de observar melhor as coisas quando elas são o que lhes resta enxergar. Pois aquele pedaço de parede, aquele muro fosco que lhe limitava a vista, era a única coisa que enxergava há semanas – ou seriam meses –, e, sabe-se lá porquê, já havia sido retocado um monte de vezes. Seus olhos como que conheciam cada centímetro dele.

Ele quis, ontem, dizer à esposa que preferia quando a parede tinha aquela pequena infiltração indesejada próxima ao canto direito, mas não. Os remédios não permitiram. Alguém fez o favor de retocar o único traço de naturalidade daquele quarto politicamente correto, sepulcral e plástico como um dormitório de motel. Enfim, aquela paredinha, infiltrada ou não, servia-lhe para refrescar a memória quando os medicamentos tolhiam-na de quaisquer arroubos no pretérito. A cada vez que despertava e sentia os tubinhos lhe limparem das necessidades fisiológicas, estava ela lá, como que espelhando sua rotina diária, a previsão do tempo e o que o dia lhe esperava. A cada vez que ia dormir, dopado e só na claridade constante do recinto, estava ela lá, como que lhe resumindo as atividades do mesmo dia. Nele, azul – ou verde. Quarto – ou sala. E, claro, a incomunicabilidade, pois os que dessa se serviam sabiam estar em um abismo de torpor e ócio.

A princípio, porém, adorava sentir-se isolado. O próprio homem natural, que fora desmentido pela ciência e pela modernidade. Havia um quê de misterioso naquele silêncio, algo de humor negro em ver aquele monte de gente chorando e sacudindo seu corpo sem ter qualquer resposta senão o pulsar do coração debilitado e a umidificação natural das pupilas. Mas, como tudo que é rotineiro converte-se em castigo, logo passou a buscar estímulos no mundo externo. Estes não o faltavam – os filhos liam livros à beira da cama, a esposa contava o desenrolar da papelada da venda da casa –, mas como respondê-los? Certa vez, quase emitiu um som ao ver o médico entrar no recinto. Mas não. Os remédios não permitiram. Chegou à conclusão de que, sim, o silêncio dizia tudo, para ele e para quem estava do lado de fora. Estava morrendo, só não sabiam que ele o sabia.

Outro aspecto daquele fim de vida era que, não importando a gravidade do ocorrido, sempre que sentia algo de diferente, convertia-o em agradável surpresa. Mesmo faltar-lhe o ar era um alívio. Alívio, pois aquilo era uma prova, mesmo que escassa, de sua quase existência – as pessoas cercavam-no, enchiam seu corpo de pequenos fluidos, e vinha, de novo, o êxtase, o entorpecimento terapêutico permitido pelos manuais modernos de medicina. Aqueles segundos de drama traziam à beira da cama não só médicos, mas a esposa, os filhos, os amigos que porventura visitassem-no àquele momento. O azul tornava-se uma profusão de roupas, que mudavam conforme a estação, de cores, cheiros e olhares distintos. E, de repente, sentia saudade de sua própria solidão – melhor estar a sós com sua morte do que compartilhá-la com o pesar alheio.

Lembrou-se que, certa vez, sua mulher correu da porta do banheiro, nua, ao ouvir os gemidos fracos saírem do corpo inerte. Era a falta de ar. Ele a viu daquele jeito, afoita, pressionar-lhe o peito e forçar algumas pequenas pílulas goela abaixo. Mesmo com a eminência do torpor, deu conta de que os seios enrijecidos e a pele morena já não despertavam qualquer libido em seu corpo e mente. Seria, de fato, a impotência, manifesta mesmo diante de belas manifestações de vida como o corpo desnudo de uma fêmea? Não sabe. Só sabe que, a partir dali, passou a gemer cada vez mais baixinho, talvez para não reencontrar aquele ser platônico novamente. E, cada vez mais, passou a experimentar e fruir de mais alguns segundos de sofrimento a sós. Pena que não conseguia sentir qualquer dor física para acompanhá-lo.

Não só hoje, como várias outras vezes, ele quis que alguém lhe desse um soco. Ao invés daquele monte de remédios, daquelas expressões frustradas diante do homem que tirava-lhes a noite e os salários da casa, gostaria tanto de ver uma manifestação sincera do que pareciam sentir dentro de si! Sempre compartilhou daquela velha mentalidade estampada nos rostos da casa, a de que idosos e inválidos são como produtos fora do prazo de validade. Sim, pois, antes daquele certo dia, podia vangloriar-se de ser um homem honrável, dominador, dono de si e do mundo. Agora, vivia enfurnado em um quarto azul – ou seria verde? –, cagando e mijando por um tubo, ansioso para que alguma coisa de útil lhe acontecesse. Mais do que vergonhoso, aquilo era algo triste.

Das poucas coisas que conseguiu guardar na memória após anos de definhamento induzido, podia construir, pouco a pouco, o que o levara àquele ponto. O carro acelerando, as marchas sendo trocadas por outras mãos, um cada vez mais distante sentimento de culpa... e aquele homem, ao seu lado, aguardando, ansiosamente, para que chegassem ao destino. Havia decidido tudo às pressas, mal arrumou direito suas coisas. Aquele final de semana seria crucial para que fizesse sua escolha, descobrisse o que, afinal, lhe valia a pena para o resto da vida. Uma mulher, filhos, estabilidade, emprego garantido, respeito, fotos em colunas sociais, festas, décimo terceiro salário – ou, então, a incerteza diária, a paixonite, a casa alugada e o viver pelo viver.

Quando conhecera aquele homem, não sabia exatamente porquê, mas sentia-se insatisfeito. Ele passava, todos os dias, pelo corredor à frente da sua sala no trabalho, da mesma forma que a mulher, agora, passava com os medicamentos à frente da parede azul – agora, sabe-se lá como, havia conseguido distinguir a cor, era azul mesmo. Depois de algum tempo, passou a entrar lá e gastar alguns minutos de conversa trivial. Alguns meses depois, mantiveram relações sexuais. Passaram a se encontrar nos fins de semana à noite, quando o escritório deixava-lhes de plantão nas ruas. Ele, o homem, também era casado, e das esposas ambos deleitavam-se em bemdizer, eram as melhores mulheres do mundo, inexoravelmente companheiras, trabalhadoras, dedicadas, compreensivas... mas, na hora em que o desejo deveria reger alguns dos mais institivos movimentos corporais, havia algo de enfadonho naquele corpo liso, doce e indefeso. E, assim, ele e o homem passaram a nutrir uma grande paixão um pelo outro, calcada na mesma sensação de completude que tinham com um semelhante.

De volta àquela viagem de carro, ele recorda que o homem passara boa parte do caminho para as casas de campo olhando pela janela. Era estranho, raramente não gastava sua saliva falando bobagens, divagando sobre a existência e sobre a sexualidade alheia. De súbito, então, veio-lhe a notícia, no meio de uma curva fechada de quarta marcha:

– Eu tenho AIDS.

Daí em diante, poucas coisas lhe vêm à tona; somente gritos, muitos gritos, uma grande luz surgindo à sua frente, na estrada escura, as mãos balançando no ar, indicadores erguidos em direção ao banco do passageiro, um inútil berro de aviso, descuido nos movimentos de controle da direção do carro, o celular tocando pela enésima vez – era a esposa dele, perguntando se deveria esperá-lo para o jantar –, um grande estrondo e nenhuma dor. Depois, a sala azul. A esposa chorosa, junto com o pesar alheio. Os filhos em torno da cama, lendo os boletins finais da escola. Os tubinhos lhe penetrando os órgãos excretores. A doença que, pouco a pouco, consumia as sobras do acidente. A incomunicabilidade.

Hoje ele se lembrou de tudo e pensou consigo, Vou morrer. Mas não, os remédios não permitiram. Às vezes tudo o que queria era fechar os olhos e passar o resto da eternidade a contemplar o breu de seu remorso, esquecer de tudo pelo que já passou para chegar até aqui, para ver se realmente, nada valeu a pena. Hoje ele queria ter a certeza de que amanhã estaria morto. Mas não. Os remédios não permitirão.

(Inspiração tirada de Philadelphia e tragos de Marlboro Azul, tenham um Feliz Natal e feliz Ano-Novo)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Il n´y a pas...

...poesia, tampouco prosa, nestes versos alinhados, produzidos e metrificados ao sabor do tempo; ou seriam das concordâncias? Em poucas nuances, as muitas instâncias que me levam ao dizer às palavras trazem lembranças. E o verbo, essa verborragia - nas palavras de, quem diria, deixou-se levar a esmo -, esse verbo está cansado de concordâncias e predicados e sujeitos e conectivos, pois esse monte de pequenos sentidos nasce no cruzar de duas letras ou dois sonetos.

Há algo de belo em renegar metalinguagens, mas, dubiamente, sentem-se infelizes os que se entregam a diretrizes, metas e sonhos inconcebíveis de tanto realismo; e sabes que, como eu, há poucos, desses que renegam e abraçam as mesmas coisas, os mesmos discursos ocos de quem sente muito, fala pouco e cospe ainda menos a bagagem que traz no verbo. E o verbo, essa pequena orgia de sentimentos, ações, hipóteses ou atos, ele se mistura ao que nos é substrato, uma tal de realidade, palpável quanto maior o desejo de tocá-la, esganá-la, asfixiá-la, pois real demais é a insatisfação dos poucos que pensam com o muito que vejo.

Homens ou mulheres, jovens ou impotentes, viris ou velhos demais para berrar, roucos ou loucos demais para acreditar em qualquer coisa, não há poesia, tampouco prosa, em dizer o que lhes vem à cabeça; se lhes aspiraram os miolos, e a objetividade fez dos homens uns imbecis, sejam vocês mesmos hostis e reneguem sua própria beleza! Racionalismo, pragmaticismo, evolucionismo, sapiência (maniqueísmo), inteligência, genialidade, praticidade, fraternidade, (vaidade), decência, paciência, altruísmo, confiança (demência); nada disso é, em verdade vos digo, nossa parte - é, antes de existir, demagogia, hipocrisia e - quanta inocência - não vão acreditar; deixem esse arroubo de vida, pulso e ódio lhes atingir e lhes fazer jogar a própria merda de vida no ventilador. Não há verbo, tampouco linguagem; esqueçam o amor, o torpor e a sobriedade,

e, por fim, esqueçam do que constrói vocês mesmos:
arranquem-me os olhos cortem-me a língua.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

No dia em que os ameaçadores abalos sísmicos caribenhos chegaram ao coração da Amazônia,

O marido dormia, quietinho, no lado esquerdo da cama. A mulher lia um livro poeirento, lutando para enxergar as letrinhas miúdas no papel encardido. No quarto ao lado, um dos filhos jogava videogame, o outro se masturbava no banheiro e a filha mais velha falava ao telefone. A empregada fazia o café na cozinha. Alguém tinha esquecido o som da sala ligado; tocava algumas daquelas músicas vespertinas da Diário FM, que parecem cuspidas de um sintetizador multicolorido europeu. Eram quatro e meia da tarde, o horário de verão, teimosamente, fazia tudo acontecer cedo, mesmo sem quaisquer mudanças no nascer e pôr-do-sol amazônida. O menino do banheiro voltou ao quarto, a irmã saiu do telefone e o videogame do outro desligou. A mãe sentiu um aperto e tacou o livro no chão. O pai despertou num sobressalto.

(...)

Cinco minutos depois, todo mundo na rua, comentando o polêmico acontecido. Montes e montes de gente curiosa comentando entre si, gerando versões, vítimas, escalas de abalo, rachaduras hipotéticas e, claro, a teatralização do desenrolar do, nas palavras de um amigo, "arroto sísmico" que atingira Belém. O pai e a mãe se abraçaram, a irmã mais velha pegou na mão do autêntico nerd - pela primeira vez, provavelmente - e até mesmo o punheteiro achou abrigo, nos braços da empregada calorosa e trêmula. Todo mundo se olhou, trocou olhares de alívio, conversou com a vizinhança que jamais lhes interessou por anos, tratou bem o porteiro. Ao final, houve até uma pequena troca de abraços nojentinhos, apaziguadores, babantes de demagogia.

(...)

Após a devida liberação dos bombeiros, cada um subiu e voltou ao seu apartamento. E, depois de uns segundinhos de união em torno da desgraça, todo mundo retomou a tradicional vida enfadonha. Consultórios, escritórios, gabinetes, apartamentos, lojas, armarinhos, supermercados, shoppings, locadoras, lanchonetes, restaurantes, bares, boates; médicos, secretários, advogados, engenheiros, estudantes, professores, jardineiros, psicólogos, geólogos, historiadores, manobristas, flanelinhas. Até mesmo os jornais, daqui a alguns dias. A cidade se manteve de pé, nenhum prédio caiu. Mas aquela família não. No dia seguinte, metade fugiu de casa e a outra metade foi morar com os avós. Só o pai, que estava de viagem há semanas, voltou a pisar no apartamento duplex na Doca. Alguém deve ter pirado com a estranha ameaça ambiental em plenas terras tupiniquins...

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Trois


Três tragos de cigarro. Foi a medida exata para saber a hora de entrar no quarto à vontade. O marido a esperava, deitado na cama, com um copo de uísque e um cigarro, ambos no fim, vendo distraidamente aquele programa do Serginho Groisman que passa nas madrugadas de sábado. Era sempre a mesma coisa: ela pedia, implorava para que ele não fumasse no quarto, o cheiro pegava nas roupas, forçava-a a inalar aquele monte de substâncias tóxias - quantas são mesmo? 1700? -, lhe tirava o sono e a pouca paz que restava no fim de semana. Era uma noite quente, então nem dava para desligar o ar-condicionado.

Ao deitar-se com o marido, ele logo retrucou: tás do lado errado da cama. Trocou de lugar com ele e buscou o livro que estava lendo na mesinha de cabeceira. Nunca Esqueça dos Seus Sonhos ou algo assim, coisa do sempre oportuno Augusto Cury. Vinha sendo uma mão na roda nesses últimos seis meses, o cara: seus livros pareciam uma espécie de contra-indicação para tudo o que ela vivenciava, o que lhe conferia um papel iluminador em sua vida. Umas dez páginas de livro depois, olhou para o lado, e o marido continuava lá, olhos vidrados no programa de tevê; o cigarro já apagado no cinzeiro e o gelo derretendo no copo. Estava inerte, e assim podia vê-lo sem quaisquer disfarces cotidianos. Barrigudo, mal-cuidado, barba por fazer, bêbado, cheirando a suor e, o pior de tudo, de cueca, nos seus lençóis novinhos em folha. De qualquer forma, a última coisa que faria seria reclamar.

- Márcio, sabes se a Liege comprou coisa pro café da manhã?

Silêncio. É um saco quando você tenta falar com alguém, e sabe que esse alguém está ouvindo, mas finge não o estar, ou por preguiça de responder, ou na tentativa de impor superioridade, ou os dois. Júlia, contendo a raiva e o nojo daquele homem prepotente, repetiu:

- Márcio, a Liege comprou coisa pro café?

Dessa vez, ouviu apenas buzinas que ressoavam nove andares abaixo, o que conferiu inigualável ar blasé ao quarto. Já não bastava que ele a ignorasse diante dos amigos, de Liege e até mesmo do filho? Custava, ao menos ali, na intimidade de uma cama de casal, corresponder à sua dúvida funcional com um simples aceno de cabeça? Estava de saco cheio, mais do que ele, com aquele livro otimista em mãos e aquela vida imbecil, e ele não imaginava o quanto. Tinha uma vontade imensa de jogar tudo no lixo, o filho retardado, o marido bêbado, a empregada confidente, o trabalho e os amigos. Podia trocar tudo aquilo por uma taça de vinho - sim, uma taça de vinho! Se ele pode beber, eu também, pensou, levantando de súbito rumo à cozinha, para pegar o Cabernet mais caro que Márcio havia comprado.

Liege via tevê com Luiz no quarto ao lado; passou direto, ignorando o olhar vago da criança à porta, momentaneamente ditraída com o movimento no corredor. Abriu a adega e, sorrindo para si mesma e para seu ato íntimo de libertação, encheu uma bela taça de cristal com o tinto especial. Pegou, também, alguns pedaços de queijo, presunto e azeitona que haviam sobrado do jantar, levando-os ao quarto de hóspedes. O canal de filmes da tevê a cabo apresentava algum novo clássico cult, daqueles que adorava ver em companhia das amigas de faculdade; vinho em mãos, cigarro aceso com as janelas escancaradas, pegou o maior porre de sua vida desde que havia passado no vestibular.

No quarto ao lado, sob os efeitos da forte bebida, acometido por uma silenciosa dor, que o impedira de falar ou mover-se, Márcio morreu aos poucos, ao som de buzinas de carro e de uma pequena sucessão de gemidos roucos. Deixou de respirar enquanto Júlia dava o terceiro trago de seu cigarro no quarto vizinho.

sábado, 20 de outubro de 2007

Ensuite

Sentia raiva da inocência daquele menino. A pequenez de suas atitudes, sempre tomadas a esmo, com notável boa intenção; seu olhar distante, porém sempre belo, frágil, como se aguardasse emergir de algum fosso lamacento. Sempre uma criança... já passados doze anos.

Às vezes pôs palavras em sua boca. Quando lhe faziam perguntas, prontamente as respondia sem qualquer pudor. "Sim, ele é especial". "Não, ele não está entendendo o que vocês falam". "É, ele ainda tem alguma chance de melhorar". "A gente sempre leva ele ao médico". "Os remédios estimulam o cérebro". Júlia ficava calada, bebericando o uísque de Márcio discretamente, enquanto ele se preocupava em - sempre - explicar as coisas para os convidados. Luiz assistia ao desenho do canal por assinatura.

Para Júlia, aquela criança era um castigo abençoado. Amava Luiz mais do que qualquer coisa no mundo - Deus sabia -, mas era inegável que se sentia impotente e frustrada pelo filho. Seus amigos, vendo do ângulo de uma jovem mãe de trinta e poucos anos, pareciam tão felizes com seus meninos sadios, inteligentes, futuros universitários, pais de família, comedores de menininas, coisa e tal... mas, ao contrário de Márcio, não via Luiz como um atraso em sua vida, e sim como chance de fazê-la um pouco menos fútil. A cada passo que dava, tinha isso em mente.

Liege, porém, via o menino com outros olhos. Sentia ódio daquele patrão filho da puta, que o desdenhava desde o café-da-manhã até a hora de deitar-se. Depois de deitar, pensava ela, transformava-o em um troféu. Maldito homem. Lembrava do dia do casamento de Júlia, sua patroa desde a juventude, as duas sentadas na recepção, já meio bêbadas. Júlia tinha tantos planos.

- Liege, vais comigo para a minha nova casa, né?
- Ah, doutora, se a sua mãe deixar, claro que eu vou... quero ver seu filhinho nascer, vai ser lindo! Loiro como os avós...
- E o Márcio ainda vai emprestar aqueles olhos verdes, aquele jeito meio machão, meio sensível... Vamos ser uma família feliz, não é?
- Claro, doutora!

Dez anos, porém, foram o suficiente para o filho especial e o marido alcóolatra lhe revelarem o possível inferno da vida de empregada em uma família infeliz. Não fosse por Júlia, já haveria entregado os pontos e voltsdo para a casa dos avós de Luiz. Acima de tudo, não fosse por ele... sentia tanta pena, mas tanta pena daquela criança que não via a rua, que não namorava, que nem sequer pegava nas mãos de uma coleguinha de sala. Liege meio que guardava aquela pena dentro de si, tentava transparecer euforia quando brincava com Luiz. Mal sabiam os pais, os patrões, que um dos únicos sorrisos que a criança já havia esboçado tinha sido para ela. Naquela mesma noite... olhando os carros passarem na rua, lá da janela da cozinha.

- Liege, traz mais uma garrafa de Uísque pros convidados!

Luiz, por enquanto, assistia à tevê - desta vez, um documentário sobre formas de educação especial que Júlia encontrou num canal educativo e agora assistia, esperançosa, bebericando discretamente do copo do marido. Liege deixou o menino por um instante, foi à cozinha e abriu mais uma garrafa, sabendo muito, muito bem o que aconteceria dali a duas horas. Serviu os convidados, copo por copo, e tirou Luiz da beira da janela.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Unplugged

Júlia acordou, vestiu-se e saiu de casa correndo, como de costume. Márcio a seguiu até a porta, pegou dinheiro e voltou para o quarto. Luiz estava tomando café, e via todo mundo sair de casa sabendo que nunca o faria. Olhou pela janela, e lá estavam as árvores e prédios. Sentia fome. Liege fez o nescau aguado de sempre para o menino.

Júlia chegou no trabalho e se trancafiou em uma reunião. Márcio acordou na hora do intervalo de almoço da esposa. Luiz assistia os desenhos animados da Globo, e, quando acabaram, engatou o choro. Liege chamou Márcio e os dois o calaram à força. Sob ameaças, Luiz foi para o quarto, ligou a tevê e colocou nos desenhos dos canais fechados. E deu risadas até o pai ficar bêbado.

Quando Júlia saiu do trabalho, pensou: vou levar alguma coisa para o meu menino. Comprou uma barra de chocolate da Hershey´s, daquelas bem baratinhas e gostosas, para Luiz. Chocolate o fazia ficar mais esperto, reavivava os neurônios já envelhecidos. Ao voltar para o prédio, porém, sentiu uma dor forte no peito. Encostou-se nas paredes da escada que subia todos os dias, forçou a vista que já escurecia, e subiu, a mão no seio esquerdo e a certeza de que algo corria muito, muito errado.

A casa estava a mesma coisa de antes. As taças e cristais da sala estavam cheirando a uísque. Liege limpava o vômito de Márcio na sala, a baba de Luiz do carpete, cantarolando a música nova do Calypso com um Derby em mãos. O cheiro de cigarro dava um tom meio etéreo àquela sala. Júlia havia construído a família há uns dez anos, e veja só - tudo se resumia, agora, em fracasso.

Já tonta e sentindo o ar lhe faltando, Júlia abriu a porta do quarto do menino e lá os viu, deitados. Como sempre. A criança que não crescia, o homem que a mantinha dentro de si. E a mulher que guardava segredos na intimidade. Apagou a luz, beijou os dois no rosto e foi deitar-se no outro quarto.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Irreversível


Música das boas. Drinks, melhores ainda. Goles de uns e outros, algumas pílulas coloridas debaixo da língua. A voz de Ian Curtis recorta o ar. O menino dança como nunca se viu, agarra-se às paredes para conter a tontura e o vômito. Mas não parece nem um pouco infeliz. Pelo contrário - transmite energia como quem jamais havia, genuinamente, se chapado até o limite. Enfiou-se no banheiro.

Havia sido um dia e tanto. Tudo tinha virado merda. Perdera a mulher, o emprego e - pasmem - trancara a matrícula do mestrado. Os amigos estavam preocupados, tiraram o menino de casa aos berros, arrombando a porta da frente com uma garrafa de Vodca barata nas mãos. Ele não era de beber, mas fixou os olhos na destilada. Aceitou ir, contanto que não dirigisse. "Hoje vocês tomam conta de mim", disse à beira da escada. Atravessaram o centro e, lá estavam, em um daqueles buracos sebosos da Anhangabaú.

Era uma festa temática, anos 80, daquelas amplamente divulgadas no meio gay da capital. Agora, era a voz de Robert Smith. Ele adorava The Cure, muito embora já tivesse quisto se jogar da varanda entre uma audição e outra dos discos mais antigos da banda. Aliás, como diabos ele tinha ido parar naquele banheiro mesmo? Olhou ao seu redor, e nenhum dos amigos. Estava com medo das bichas e putas; não estava a fim de esquecer da mulher. Infelizmente, lembrou-se dela, e tudo virou merda outra vez.

Havia viajado para São Paulo a estudo, largando família e amigos. Nunca punha expectativas em nada; para a cidade sem limites, porém, só tinha grandes planos. Virar professor. Pesquisar. Correr no Ibirapuera todas as manhãs (para lembrar do ar puro do interior), e depois tomar café na Subway. Amar alguém especial. Conseguiu tudo isso no primeiro mês; uma chance de mestrado em economia, e uma menina sensacional, vinda do interior baiano. Morena, seios fartos e estudante de filosofia. Mas tudo, como prevê a bela fugacidade da vida urbana, se desfez em um piscar de olhos. Acordou-se sem ela e, meia hora depois, foi ao trabalho para pedir a demissão. Depois, foi à Usp e fechou a matrícula. E foi pra casa, com doze carteiras de cigarro e uma pilha de filmes cult.

O banheiro escureceu. Não sabia ao certo se eram as luzes, ou parte do efeito das drogas que tomara sem perceber; apenas concentrou-se no turbilhão de imagens lisérgicas que passavam pela fechadura, refletidas no espelho em um borrão verde e vermelho. Agora, a voz de Morrissey cantando um ode à melancolia. E um drum n´bass modernoso ao fundo, que lhe lembrava a juventude certinha de uma semana atrás...

Sentiu, então, o tato de um corpo que se colou ao seu. O corpo foi descendo, deslizando pelo seu abdômen... e logo depois, surgiu um clarão de luz. A porta aberta deu espaço a outra pessoa. Fechou os olhos, não queria saber quem ou o que era. Entregou-se de olhos fechados, e seu corpo foi usado, explorado por mãos perdidas, línguas trêmulas e um hálito chapado que colou nos seus lábios. Sentia, ainda, o vômito na garganta, junto com mil perguntas e mil respostas àqueles corpos que o usavam arbitrariamente; a sensação de prazer, porém, era imensa, imensa demais para dizer qualquer coisa.

Sorria e sentia que os outros corpos também sorriam. Nem mesmo os cinco graus lá fora fizeram algum frio desfazer a fornalha do pequeno albergue. A garrafa de Vodca tombou no meio de um movimento estranho de flexão. Encharcou-se em álcool. Gozou e fez gozar mil vezes, e mil idéias lhe vieram à cabeça. Onde estavam os amigos? Onde estava sua mulher naquele momento? Onde estava seu projeto incompleto de mestrado? Quantos litros de álcool havia bebido? Com quem fodia tão intensamente?

Lá fora, a música era de um tresloucado David Bowie. Look Back in Anger sempre lhe lembrava do filme da Christiane F., e dava uma imensa vontade de dançar. Abriu a porta do banheiro e correu, o pau de fora e a blusa aberta, para o meio da boate. A essa altura, seus amigos se misturavam com o ambiente, agarrando putas e travestis sob o efeito de fumo e bebida. Ninguém ia lembrar de porra nenhuma, bando de viados enrustidos.

Ria, ria descontroladamente, vomitava entre gargalhadas e sentia o ar lhe faltando - que delícia era fazer loucuras na vida! Engolia mais pílulas, tomava goles e mais goles, agarrava uma das únicas mulheres bonitas do local - que delícia era sentir a vida lhe percorrer as veias! Enfiou uma seringa suja no antebraço. Que maravilha era o submundo brasileiro! Tudo corria às soltas. O menino de vinte e poucos anos sentia-se homem, ao som da voz cavernosa do Bowie, com uma garrafa de cerveja barata nas mãos. Sentia seu pau ser agarrado por mãos familiares, a tontura voltando, cada vez pior. O ar começa a rarear, a fumaça e o gelo seco lhe escurece a vista, o cheiro de merda e urina subindo pelas entranhas, o tato de outra mão pegando em seu corpo...

De novo, ouviu a voz de Ian Curtis. E seu sorriso desfaleceu, calmo como se os acordes arrastados de Twenty Four Hours lhe fossem trilha sonora...

* Título e idéia central emulados do filme homônimo...

sábado, 28 de julho de 2007

Os Corrêas

A família se apressou toda para chegar a Salinas a tempo. Último fim de semana de julho. A mãe, Márcia, já havia comprado o material escolar dos quatro filhos; o marido, Ulysses, pago todas as mensalidades prévias da escola do Luciano e da Mari, da universidade da Carol, da natação do Luciano, do espanhol, alemão e francês do Pedro, do inglês da Carol, do balé da Mari... enfim, tudo encaminhado. Todo mundo já estava de saco cheio das férias em Belém - 20 dias de trabalho para os pais, 20 de idas e vindas à AP e ao Moviecom para os filhos. Era hora de ir curtir dois dias de praia, ao menos. Os seis e o cocker spaniel da família, Luke.

O estresse já começou na estrada. O cachorro enjoava no carro, e o engarrafamento já tinha rendido um vômito no banco e duas paradas pra dar uma voltinha. O pai fumava muito, o que fazia a família inteira compartilhar fumaça e calor de 35 graus dentro do carro. Haviam saído da cidade às duas, já eram quatro da tarde e mal haviam passado Castanhal. Mari dormia. O celular da Carol não parava de tocar; ela e o namorado brigavam desde a semana anterior.

- Porra, Marcos, eu tou na estrada, caralho! Não quer me esperar, vai pra praia duma vez! - e desligava na cara do menino, que, como posteriormente constatado, estava bebendo sem parar na praia desde quarta-feira.

Pedro, que era um pouquinho mais calmo, conversava com a mãe e lia Schopenhauer no banco de trás do Crossfox verde. Ele bem se lembrava do trabalho que fora comprar aquele carro; Ulysses se endividou todo, não conseguiu pagar as prestações e ainda por cima se enrolou com a conta do celular da Carol. Provavelmente, aquela viagem à Salinas ia ser a última do carro novo, e a família iria devolvê-lo e trocá-lo por um Palio na volta. Na verdade, Pedro odiava Salinas, estava indo só para acompanhar a família. Seu namorado ia ficar em Belém.

Márcia estava inconsolável. Primeiro: descobriu que Pedro era gay no dia anterior. E desconfiava que Ulysses tinha uma amante. Tinha a viagem como esperança para reaproximar a família, que não andava muito bem das pernas desde que Mari nasceu. O clima de férias talvez salvasse o casamento e o brasão dos Corrêa. Resolveu puxar um assuntozinho esperto com o filho preferido:

- Pedrinho, e como vai a faculdade? Em que semestre que você vai entrar agora, meu filho?
- O sexto, mãe...
- Ah, tá, e que matérias você vai ter?
- Umas lá...

Silêncio enjoado. Claro que o pai nunca gostou muito do curso de Filosofia que o filho inventou de fazer. Primeiro, por ter que sustentá-lo até o fim dos tempos. Segundo, porque aquilo era coisa de fresco. Para seu Ulysses, muito afeto à vida e aos costumes militares, Pedro devia ou servir ao exército, ou fazer Direito. Ele nunca se conformou com a delicadeza do filho, notoriamente o mais bonito dos quatro: olhos verdes como os da mãe, cabelos ruivos e cara de ator da Malhação. Sem os músculos e a voz de homem, claro. Ulysses achava estranhíssimo tanta beleza nunca ter trazido uma namorada pra casa; um "desperdício".

- Puta que o pariuuuuuuuuuuu!!! - Márcia berrou quando um ônibus cortou o carro no meio de uma curva e fez Ulysses jogar o carro no acostamento. Baixaram o vidro, mandaram cotocos e fizeram um escândalo com o motorista. Tudo que o barbeiro fez foi mandar um beijo para Carol, a essa hora muito puta com o peso da Mari no seu colo. Ulysses voltou pra pista, acelerou o carro, correu, correu e correu... até chegar no famoso engarrafamento da Nova Timboteua. Culpa daquelas lombadas imbecis.

- Mãe, tem Dramin pra me dar?
- Luciano, a gente já está chegando, meu filho... já te dei no começo da viagem, vê se dorme um pouco!
- Mãe, eu tou com dor de cabeça!!!
- Então o remédio não é Dramin, porra! - e jogou uma caixa de Tylenol nas mãos do filho.

Luciano era o quase-caçula. Mimadíssimo, era uma desgraça na escola, já havia reprovado a quinta e a sétima série, e agora estava em ano de vestibular. Não tinha nem idéia do que fazer. Márcia e Ulysses não tinham mais paciência para tomar conta dele: deixavam tudo, cagavam para tudo e confiavam a tutela de Luciano a Pedro, que era seu único amigo dentro da casa. Ele levava o cachorro, que já demonstrava certa inquietação, no colo.

Apesar de tudo, os Corrêa eram pessoas inteligentes. Carol cursava Psicologia, e já tinha emprego garantido numa clínica famosa da cidade quando se formasse; Pedrinho era cultíssimo, chefe do Centro Acadêmico de Filosofia e querido pelos professores da UFPA; e Mari, do alto de seus três anos de idade, já havia ganho diversas medalhinhas de bom comportamento dos irmãos do Nazaré. Exceto por Luciano, era uma família de responsáveis.

Carol olhava pros pais pelo canto do banco. Márcia rezava um terço ("para proteger a gente nessa estrada cheia de bêbado!"), Ulysses fumava, segurando o volante com o dedinho da mão direita. Eram um casal bonitinho... estavam juntos há exatos 24 anos. Márcia e Ulysses se conheceram em uma roda de fumo na Federal e logo tornaram-se namorados. Casaram-se em Curitiba, quando faziam pós-graduação. O tempo, porém, tirou deles tudo o que restava de porra-louquice e naturalidade, e agora, casados e imersos na enfadonha vidinha a seis, eram estranhos dividindo cama, filhos, contas a pagar e o mesmo psiquiatra. Carol foi quem prontamente endossou a viagem da família; nem lembrava da última vez em que tinham curtido férias; provavelmente, naquela vez para a Disney, quando Mari ainda estava na barriga da mãe...

Voltando à viagem. Eram cinco e meia da tarde, e ainda não tinham chegado a Salinas. Mas que porcaria de feriado era esse, se eles tinham que voltar no domingo de manhã e iam perder um dos dois dias de praia?!? Sem contar a gasolina, as diárias do Hotel... "puta merda", Ulysses pensou, "ao menos a gente não vai se preocupar tanto com os meninos". O Luciano ia ficar na praia com os amigos e, no máximo, tomaria um porrezinho. Pedro ficaria no resort, lendo. A Carol ia grudar no namorado, nas noites do Atalaia. Só a Mari - tadinha da Mari - que ia precisar de atenção. Para Ulysses, a razão maior para a viagem era a caçula de três anos, que não sabia o que eram férias com os pais, longe de babás e cuidados da avó. Márcia e o marido decidiram levá-la à praia, para correr um pouco na areia e largar de mão o uniforme da escola. Mas enfim, né... só se o engarrafamento andasse!!!

Só sabe-se que, às sete, o Crossfox estava exatamente embaixo daquela placa "Bem-vindo a Salinópolis", que fica a dois quilômetros da entrada verdadeira da cidade. Os celulares já não funcionavam, e Mari acordara inquieta com a demora. Luke estava começando a ficar com fome, enfiando o focinho no pacote de remédios de Luciano. Márcia já desistira do terço, e agora lia a Caras da semana.

- Alemão e Siri, juntos no casamento da Flávia... quem diria, hein, Ulysses!

É. Quem diria, sua filha duma égua. Eu aqui, torrando minha gasolina, com um monte de gente que não aguento mais ver a cara, indo pra Salinas só pra fingir que tenho vida social, e tu lendo essa merda aí. Ulysses se assustou: por pouco não pensou isso em voz alta! Não fosse pela Mari, já tinha largado o carro com os três filhos, cachorro e a mulher, e tinha ido encontrar a tal amante em Moscredo. Para piorar, começou a sentir um cheiro horrendo no carro: alguém estava com vontade de cagar!

- Quem quer ir no banheiro aí, pessoal?

Mari estava encolhida num canto, lagrimando. Por debaixo do vestidinho rosa, um fluido marrom escorria e deslizava pelo banco novo em folha do Crossfox. Os irmãos mais velhos começaram a dar risada; Luciano fez menção de vômito, mas logo depois caiu na cargalhada. Luke foi cheirar a cagada. Mari berrou. Márcia começou a chorar. Ulysses pegou o Bom Ar da sacola e deu umas borrifadas pra trás:

- Chegando em Salinas, a gente dá um jeito nisso!

Eles chegaram na cidade cerca de meia hora depois. O Crossfox vomitado e cagado ficou no estacionamento do Privé, numa vaga distante de possíveis olfatos aguçados. A família, exausta, se preocupava em dar água para o cachorro, que viera o caminho inteiro babando e agora mal abria os olhos. Ulysses, cansado, emputecido, com câimbra nos pés e sem cigarro, foi no balcão pegar as chaves do quarto. Mas, que chaves?

- Senhor, nós estamos lotados... você fez reserva conosco?
- Claro que eu fiz reserva, porra! Tenho quatro filhos, um cachorro e a minha esposa comigo, alugamos duas suítes de frente pro mar, inclusive!
- Calma, senhor, que eu vou chamar nosso responsável pelas reservas...

Responsável é o caralho, meu amigo. Dessa vez, Ulysses pensou alto: voou por cima do balcão, e esqueceu das férias tão merecidas. Espancou o pobre recepcionista e quebrou jarros e peças decorativas nele, até que o segurança o conteve, expulsando Ulysses do hotel. Humilhado, ridicularizado, expulso, sentindo as picadas de carapanãs e a raiva lhe subir pelas entranhas diante da exposição ao ridículo, Ulysses literalmente ligou o foda-se.

- Vão à merdaaaaa! Seus filhos duma puta! Caralhooooooooooooooooo!

E saiu correndo em direção à praia. No caminho, tirou a roupa. Primeiro, teve uma crise de riso. Depois começou a espumar. Depois o olho revirou. Depois cagou-se nas calças. Depois, teve uma convulsão; voltou pra Belém de ambulância. Acompanhando-o, só o médico da Unimed e o Luke, intoxicado após comer quase uma cartela de Dramin. Márcia, Pedrinho, Carol, Luciano e Mari ficaram no hotel Privé - sim, o responsável pelas reservas tinha, de fato, reservado os quartos da família, inclusive oferecendo-os de graça devido à confusão com o recepcionista -, curtindo Salinópolis com aquele ar saudoso de quem não imaginava como era a cidade longe do Ulysses.

Como a praia estava muito lotada, passaram sábado e domingo no hotel, à beira da piscina: Márcia e Carol discutindo a gravidez da Carolina Dieckmann; Pedrinho lendo e ensinando Luciano a distinguir socialismo de comunismo; Luciano fumando um e batendo punheta no banheiro, entre uma e outra aula do irmão; e Mari, tadinha... de novo esqueceram da Mari. Ninguém reparou quando a ambulância foi embora pela estrada de volta do Atalaia. Ela quis seguir o paizinho e saiu andando a pé atrás do carro. Está perambulando pela estrada. Provavelmente, vai chegar em Belém antes do Ulysses.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Trip

É a máxima de todo velhote de espírito dizer que o mundo corre mais rápido do que a retina é capaz de processar. Soltar esse tipo de comentário geralmente faz as pessoas ao seu redor olharem torto, pensarem que você anda com uma síndrome de saudosismo precoce ou algo do tipo. Mas nossa, que merda, hoje eu vou dormir pensando nisso. E só com dezoito anos na cara espinhenta.

Já tinha ouvido falar nesse tal de Google Earth havia algum tempo, e confesso que, à primeira vista, não senti qualquer atração. Mesmo com os comentários enfáticos da Veja sobre o software – qualquer leitor da revista sabe o quanto é difícil ver os redatores dela empolgados com alguma novidade –, a idéia me passou desapercebida. Além do meu completo analfabetismo turístico, a lentidão do meu computador e a falta de tempo para baixar o programa me afastaram de vez da nova novidade: um programa de computador, capaz de, via satélite, mostrar todas as curvas e nuances do mundo com uma nitidez impressionante. Tudo ao alcance do seu mouse, terráqueo. Coisas do mundo moderno.

A famosa busca no Google me revelou as fontes para um download rápido, eficiente e, vá lá, seguro, do tal programa. Em quinze minutos, o bicho chegou no computador. Em mais cinco, instalou-se. Em mais dez, eu tinha o mundo em minhas mãos. Imagens digitalizadas dos milhões (talvez bilhões, trilhões) de km2 que rodeavam minha vidinha infinitesimal bombearam a tela em questão de minutos. O computador começou a travar, coitado, vai ver ele estava entrando em parafuso junto comigo. Fechei umas janelas e comecei a me aventurar nesta tão peculiar vertente do turismo contemporâneo.

O primeiro passo era procurar a rua da minha casa, claro... todo mundo faz isso no Google Earth. Em alguns segundos, ele achou o cruzamento da Boaventura com a Wandenkolk, e lá estava meu predinho branquelo. Com uma pixelagem satisfatória, dava até para ver os carros estacionados na frente de casa, os cruzamentos e tudo o mais. Só faltava o cheiro de poluição, as buzinas e o arzinho quente. Disque a foto era deste ano mesmo. A primeira coisa que o que vos fala pensou: o que estava eu fazendo enquanto os nerds do Google clicavam a porra da esquina da minha casa?!? Devia estar na faculdade... vamos procurar a faculdade!

Mais uns minutos... pera, que ele tá confundindo a Unama da Alcindo Cacela com a da Br. Isso que dá o programa querer conhecer todas as cidades do mundo, há-há-há! Eu sei mais do que ele, oras. Enfim, mais uns cliques e esperas (o satélite não é tããão rápido assim), e o campus da Unama da Br apareceu pra mim. Verdinho, lindo; provavelmente todo mundo estava torrando debaixo daquele sol fodido, atravessando a passarela numa correria pra não perder a aula de Impresso. Lá de cima dá pra ver melhor a ridiculeza dos nossos centros urbanos.

Não resisti à empolgação: pedi pra ver São Paulo. Ele logo atendeu. Como a cidade é pop, bem mais famosa do que a nossa villa amazônida, em menos tempo estava no meio da Paulista. Ora, porra, e não é que São Paulo também não é grande vista de cima? É uma das maiores, sim, mas é pequena vista de um satélite do mesmo jeito. Lá pela frente do Masp (cubículo vermelho), um sinal cheio de carros, provavelmente fechado. Dava para sentir o cheiro de alcatrão exalando dos cigarros e carros naquela correria danada, dava pra ouvir as buzinas estressadas. Abri um sorrisão... ê, São Paulo! Até tu já virou cartão-postal de nerd!

Agora, o além-mar. Europa, meus queridos; a terra civilizada, onde todo mundo fuma com cinco anos e lê Nietszche no recreio da escola. Portugal era a menina dos meus olhos, junto com a Inglaterra e sua Manchester fumacenta. Visitei os dois e deu vontade de abrir o site da TAM e comprar passagem pro primeiro vôo. Que coisa bonita, aquela malha urbana toda quadradinha, os parques e prédios sem invadir o espaço da natureza. Acendi um Marlboro azul imaginário para entrar no clima e chamei a mãe pra ver. Era aniversário dela.

Procuramos a casa da vovó em Portugal. Achamos. Procuramos o Hospital Metropolitano de Belém. Achamos. Procuramos o hotel falido em que a gente se hospedou uma vez em São Luís. Achamos. Procuramos a Praça Batista Campos. Achamos. Procuramos aquela tal esquina onde ela foi assaltada. Achamos. Procuramos a porra da curva da estrada pra Salinas onde, uma vez, o papai atropelou um cachorro. ACHAMOS.

- Eras, isso é demais pra minha cabeça, como eles conseguiram isso? – mamãe resmungou, indo dormir com aquele mesmo ponto de interrogação na cabeça. Eu disse tchau pra ela e passei, pelo menos, mais umas duas horas na frente do computador, procurando lugares estranhos e inomináveis, como que o desafiando a conhecer tudo e todos. Se digitasse “vão se foder” na busca, ia aparecer alguma cidade com o nome parecido. Uma hora, desisti. O Google venceu! Ele, assim como Deus e o Chuck Norris, conhece tudo e todos. E ainda tira fotos por satélite e sai exibindo por aí. Metido...

É nessas horas que fico pensando no que mais falta acontecer com a nossa ciência. Chegou num ponto em que nada parece impossível. Tudo está mudando, pessoal. Desde as nossas inter-relações até o tráfego de satélites high-tech espaço afora. Está na cara que não somos mais os mesmos de um minuto atrás, e as bilhões de cabecinhas pensantes do mundo já estão pensando em como dar mais velocidade e conforto ao servidor que você usa para me ler. Empresas virtuais estão em alta, e, ao que parece, esse verão promete me mostrar a dor e a delícia dos zilhões de pontos turísticos do planeta. Tudo via Google Earth. Existe de tudo nesse mundo louco e historiofágico em que a gente vive, e conhecerei este tudo com a cara de otário de quem não conhece nada.

Como diria o mestre, são tantas emoções que nem o Jornal Nacional nos põe a par de tudo. É gente clonando bicho, gente mapeando o mundo inteiro com um clique de mouse, gente levando informação ao mundo todo via fibra óptica... acima de tudo, é gente que, a cada dia, é menos sujeito e mais objeto da tecnologia. Não que isso não tenha um imenso saldo positivo. Mas, Deus do céu, se até o turismo, única coisa a qual acreditava ser imutável, também está passando pela mediação da Internet, o que mais falta? Se até o sexo – o sexo! – já é descarnalizado nas webcams por aí, que o diga a aparentemente respeitabilíssima alma dos mochileiros de plantão! Atravessar o mundo de Google Earth é mais seguro – só não esqueça de pagar a conta do seu provedor.

Eu sei, você deve estar pensando “bom, pelo menos não existem alucinógenos online, ora bolas!”. Engano seu. Procure um troço chamado I-Doser na Internet, e descubra o que é ser um drogado sem seringas ou idas ao final da Doca. Eu já usei LSD, “cheirei” e “injetei” um monte de merda à base de fones de ouvido, e achei legal por demais, viajei gostoso sem gastar um puto ou ferir minha consciência. Que nem o Google Earth, que, com seus 15 megabytes e imagens semi-distorcidas, me fizeram repensar em tudo que anda passando pelos meus olhos sem que eu perceba ou sinta. É, rapaz, são as coisas que vamos contar pros nossos netos daqui a uns cinqüenta anos. Nós aqui, nos gabando da tecnologia medieval do século XXI, e eles esperando, prontos para nascer, crescer, derrubar e construir novos paradigmas. Mas, enquanto a hora deles não chega, a gente se fode e se diverte na Era da Informação – ou seria Era do Google? Enfim, tudo está ao alcance do seu mouse, terráqueo. É só clicar e digitar para onde você quer ir. Thank you for flying Google Earth... são as garrinhas do mundo moderno dando as caras mais uma vez.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Cena de Supermercado

Hipermercado 24 horas, lotado. Final de fim de semana. As duas estão há minutos na frente da balança. Uma fica empurrando a outra, encorajando a ir em frente, e a fila atrás delas já começa a inchar – aliás, por quê diabos todo mundo tem essa mania de se pesar no supermercado aos domingos? O sorriso sem rugas das mulheres insinua um nervosismo plastificado.

- Ai, amiga... faz muito tempo que eu não me peso, sabe? Me dá até um medo...
- Menina, vai logo, antes que o povo comece a reclamar dessa nossa enrolação!

Nesse meio tempo, até o segurança do estabelecimento já olha torto pras duas. Uma delas comenta sobre as dificuldades em se pesar sem peso sobressalente, sobre os 500 gramas que ela deve relevar devido às proteses de silicone, sobre o analista que a afastou das balanças, etc, etc. A fofoca já começa a ficar forçada; afinal, estão ali para quê mesmo? Se pesar. E, sacos de supermercado à parte, elas já estão com um certo peso na consciência de ter se metido na fila.

- Mana, te juro... se eu passar dos 48, vou no banheiro vomitar aquela coxinha!
- E eu? Se passar dos 50, juuuro que me jogo da varanda!

Enfim. As duas decidem que a de 48 é a primeira. Pendura a bolsa na amiga, coloca os pezinhos ossudos na balança, dá uma rebolada (“pra equilibrar a balança”)... e berra. 49,753. Desce do aparelho enfurecida, largando farpas para o objeto inanimado, e conclui desde já uma fraude. A balança está louca!

- Impossível! Como, se semana passada me pesei e estava com 48? Não pode... ai, Ju, sobe nesse troço e te pesa pra ver se tá errado também!!!

O povo da fila já começa a dar risada. Um senhorzinho mirrado meio bobo pra vida, daqueles desbocados que têm como desculpa para tudo o Alzheimer, começa a vaiar e berrar: “Putinhas! Putinhas!”. O neto o segura, prendendo riso na mesma hora.
Ju prostrou-se diante do temível medidor de massa. Pensou logo em quanto pedir pro marido de dinheiro, caso passasse dos 50. Sobe com o pezinho – não tão ossudo –, dando uma sacudidela na balança (“só pra equilibrar”). O bom humor já era, e as duas se olhavam nervosamente.

50,648!!! Como, meu Deus?!? Agora era um fato sólido: a balança estava adulterada. Ou era uma conspiração de esteticistas belenenses, ou o supermercado tinha algum acordo com as empresas de produtos light. As moças começaram a dar tapas no aparelho, colocar a bolsa em cima dele e exigir alguém para fazer o tira-teima. O segurança, que já observava aquela cena com certo dó, ofereceu pesar-se; tinha, afinal, feito isso dois dias antes, na mesma balança. A primeira a se pesar deu logo o palpite:

- Tu é até jeitosinho, mas quer ver que ela vai te dar uns 80?
- Senhora, eu peso 84,500... vamos ver no que dá, né?

Voilà. Exatos 84 quilos e 503 gramas. Já tinha gente dos caixas olhando a cena; a fila começava a acumular gente aborrecida, do jeito que o paraense gosta. As duas, diante de uma derrota irrefutável, desceram do palanque e rumaram, furiosas, de volta às compras. Largaram todos os sacos de biscoitos e comida congelada no chão, à mercê dos pedintes (sim, eles já entram nos supermercados para pedir esmola), e foram direto para a fila das sopas e bebidas diet. Ainda preocuparam-se em virar para o pessoal da fila e dizer “Tá adulterada, com certeza! Nem se estressem com o que essa porra disser do corpo de vocês!”. Todo mundo deu de ombros. Para o desespero do neto, o velhinho caduco, no auge de sua sapiência secular e ódio ao materialismo pós-moderno, logo gritou para quem quisesse ouvir:

- Putinhas gordas! Putinhas gordas!

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Canapés, Alianças e Copos de Uísque.

Todo mundo em um casamento. Dois casais e um amigo em comum. A noiva era amiga do namorado da convidada, e também prima da outra convidada. O namorado da primeira convidada não conhecia a noiva, nem o amigo em comum. O último entrou de penetra e estava com medo de ser expulso. A prima da noiva foi quem colocou ele pra dentro. O outro casal estava louco pra encher a cara. Enfim. Era quinta-feira, e em julho as quintas-feiras não passam de sábados com menos gente na rua.

Todo mundo emocionado com a cerimônia e tal, e o casal libera comida e bebida. O casal amigo da noiva não tinha jantado, mas preferiu tomar umas antes de comer. E depois. Resultado: meia hora depois do buffet ser servido estavam bêbados, bêbados. O casal e o amigo acompanharam. Os cinco dividiam a pista de dança, a chave do carro e uma carteira de Benson & Hedges. As meninas fumavam escondidas dos holofotes da festa, escoradas nos namorados ou atrás de alguma planta decorativa. A música ia se misturando num funk turvo, engolido por um disco, engolido por um forró... e no mesmo ritmo as figuras entornavam uísque com guaraná, cerveja, Ice e outros drinks de casamento. Estavam algo discretos na massa de convidados, até que alguém resolve começar a falar merda em voz alta.

- Porra, eu quero uma cachaça pura!

Lembrem-se: é um casamento, e as pessoas tendem a beber no auge da emoção de ver a melhor amiga casando. A amiga da noiva se senta com o namorado, e logo os outros três resolvem acompanhar. "Amor, olhá só... a gente dá um tempinho, e depois bebe mais um pouco, tá?". Ela reclama, mas aceita. Os outros três sobem no palco. A essa hora a noiva já está na noite de núpcias. Restam na festa os cinco e alguns familiares que já recolhem presentes e decoração. E, quando já são duas e meia e um deles pensa que já vai embora, eis que a clássica começa a ecoar no salão vazio:

"First i was afraid, i was petrified
Kept thinking i could never live without you by my side..."

Foi o suficiente para que os cinco invadissem de vez o palquinho e resolvessem encenar "Priscila: a Rainha do Deserto" em uma versão urbana e heterossexual (será?). Todo mundo ainda bêbado, falando merda e passando vergonha, até que um lembra que tem trabalho amanhã, que a mãe da outra já tá ligando, que o Dj tá tocando Xuxa e que nem a mãe da noiva está mais. É hora de ir embora.

Não importa o quanto a gente tente negar - e não importa o quanto isso é clichê: o tempo passa mais rápido do que os nossos ponteiros indicam. Temos amigos que já casam a essa altura da vida, leitor; parece que foi ontem que todo mundo entrou na faculdade! E nós, nós ainda temos muitos porres homéricos pra tomar nas festas deles, afinal everybody´s glamourous, never drunk. Que venham mais canapés para encher o bucho, alianças para a nostalgia e copos de uísque... para fazer as quintas-feiras com casamentos de amigos ainda mais inesquecíveis.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Calor, Frio, Filosofia e Ocidentalismo

"É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira..."

Psiquiatras afirmam que o frio é um clima introspectivo por natureza. Incita a reflexão, a melancolia, o existencialismo egocêntrico e algumas frescurinhas mais. É o clima da razão, por assim dizer. A Europa, com seus floquinhos de neve e roupas de frio, sempre foi berço da filosofia e das grandes revoluções de mentalidade pelas quais a gente passou. O que está abaixo da linha do Equador... é, é calor. E é pouco pensamento e muita ação.

Eu sei, parece implicância. Mas não é, vou tentar lhes explicar melhor. Já é provado que as condições climáticas afetam nosso comportamento, até demais. Dia desses, me peguei conversando com um amigo sobre essa afirmação dos psiquiatras; a conclusão que tiramos é de revirar os olhos. O calor, enquanto antítese do tal "clima filosófico", é ambiente de extroversão, de fervor corporal, de paixão, ação e primariedade. Encaixa perfeitamente na percepção que temos atualmente da estrutura do mundo. A Europa, fonte da filosofia, antropologia, sociologia, fenomenologia, lógica, metafísica, das ciências exatas, humanas, biológicas e o diabo a quatro que venha da inteligência; versus a América do Sul, fonte de mão-de-obra barata, matéria-prima, morenas tesudas e música popular brasileira. Humanos versus humanóides.

O ambiente em que a gente vive favorece isso tudo. A história que a gente carrega nas costas, de colonização, extrativismo e dependência social e política, só reafirma nosso cantinho na civilização. Primatas que se penduram em cipós e comem (sim, comem) açaí. Que tocam fogo na floresta e se matam por terra. Que têm um presidente semi-analfabeto e um caderno policial nos jornais. Oh yeah, nós somos uns merdas... perdão a parte que lhes toca. E vivemos no calor... o tal clima da "felicidade", que se opõe à frieza dos europeus, o fervor que produz(iria) um povo caloroso, receptivo, otimista e sorridente - com dentes amarelados e barriga vazia. Explorado pelo mundo e motivo de chacota nas rodinhas de conversa.

Realmente, aqui no Brasil, especialmente no Norte, a gente personifica os versos do Tom. A gente passa o final do ano sofrendo com um calor estafante, correndo no meio-dia debaixo do que parece ser o bafo do diabo... e chega na tal "época de chuva" sofrendo com um calor ainda pior, o da evaporação da água no asfalto e do solzinho safado que se insinua por trás das nuvens nubladas. No Nordeste, pior ainda: o calor racha o chão, que diga as cabeças dos coitados que lá vivem. Sudeste e Sul são nossa redenção - mas não esqueça, lá já existe chuva ácida e as temperaturas beiram os 40 graus no verão. É complicado ter veia filosófica em meio à vida corrida e abafada que a gente leva; só nos resta correr, correr o dia inteiro pra ver se alcança o nível de vida dos friorentos.

Despedi-me do amigo, desliguei o computador e olhei pela janela. Um sol esturricante banhava a rua lá embaixo: dava até para ver aquelas distorções no ar típicas de estrada, causadas pelo calor! E depois querem que a gente consiga pensar direito debaixo desse sol... filosofia é coisa de viado, enfiado debaixo de cobertas francesas com uma garrafa de vinho tinto na mão. A gente é cachaça, é dança, trabalho braçal e açaí com farinha - canseira e conversa ribeira até demais, Tom. E não são três meses de chuvisco às duas da tarde, cada vez mais rarefeitos devido ao so-called aquecimento global, que nos vão fazer ser mais reflexivos e menos parasitas do pensamento europeu-ocidental. Rendamo-nos à cultura do fervor amazônida.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Teoria geral das juventudes falidas

Dia desses me peguei pensando sobre a juventude. Ô épocazinha complicada da nossa vida, não é? Pois é, ninguém gosta de se lembrar do número de espinhas pipocando na cara, dos trocentos amores não-correspondidos, das brigas com os pais e das punhetas batidas no banheiro da casa da avó. Dá uma certa vergonha. Mas será que a adolescência é a mesma coisa pra todo mundo? Acho que não.

Eu, por exemplo, tive uma um tanto quanto conturbada. No entanto, feliz. Bebi, e muito. Fumei o primeiro cigarro cedo, com 14 anos. Entrei em coma alcóolico. Conheci o submundo da minha cidade, entre idas ao final da Doca, matinês de filmes trash (com amigos fumando maconha ao meu lado), bandas de rock (já tive três), hospedagens alternadas na casa dos meus pais. Estudei pouquíssimo, e só fui dar valor pra essas coisas, como muita gente, já dentro de uma faculdade - particular. Enfim. Ao menos, não tenho tantas coisas ruins pra lembrar.

Eu e você, leitor, somos exceção. É só olhar pros lados. Tem um flanelinha na frente de uma lanchonete famosa que eu sempre vou, deve ter uns 17 anos. Sempre dou uma moeda pra que ele tome conta do carro da minha namorada. Pela expressão, passa o dia inteiro fazendo isso. Tem um grupo de crianças de doze anos na África, que opera uma Ar-15 melhor que os nossos militares. Geralmente, se alimentam de areia e não passam dos quinze anos. Um pouco mais em cima, tem um bando de adolescentes europeus se drogando, talvez por falta do que fazer. Muito dinheiro, pouca convivência com os pais, um certo tédio... às vezes dá em suicídio. Ou overdose.

Ah! Também temos, logo depois da linha do Equador, os americanos, coitados, que passam a vida estudando sem más intenções e, do nada, levam tiros dentro da sala de aula, invadida por um nerd aborrecido com a vida. Esses são os piores, nem têm chance de lembrar de nada. E, aqui dentro do Brasil mesmo, temos os jovens nordestinos, que não estudam nem comem, e vivem à base de esmolas nas grandes metrópoles - ou do crime. A média de filhos por casal é 5.

É nessas horas que penso, com um certo niilismo: o mundo não está pronto para receber os jovens, não é? Somos empurrados a uma penca de responsabilidades desde a infância. Chegamos à adolescência moldados para ser determinada coisa (nada do que descrevi acima), maltratados por uma cultura violenta e exigente, que pressiona todos a ser de determinada forma, vestir-se de um jeito, comer de outro, falar assim, ouvir assado, etc. Por inércia, alguns vão contra isso. E se dão mal. Os pais não percebem o tormento dos filhos - estão na rua, trabalhando para pagar as contas. Os educadores dão aulas pensando no contra-cheque. Os irmãos, avós e demais parentes estão absortos em suas vidinhas igualmente pré-fabricadas. E aí... aí a molecada se junta pra fazer besteira. E se dá mal.

Dia desses me peguei pensando sobre o futuro de um mundo assim. Onde todos estão cagando para tudo, onde os jovens vivem uma vida fútil e totalmante alheia à que lhes espera fora da redoma que é a adolescência. Ô épocazinha chata, essa nossa tal de pós-modernidade. A gente estuda, sai, bebe, se droga, trepa, mata, morre... e mesmo assim sempre sente que algo está faltando. Os jovens aborrecidos de hoje serão os maníaco-depressivos de daqui a uns dez anos, vivendo à base de café, cigarros e pílulas, fazendo tudo o que há de errado por trás da cortina enquanto alimentam o arcabouço hipócrita da sociedade que os cuspiu.

Você deve estar se perguntando o porquê de todo meu pessimismo. Deixa eu explicar: acabei de fazer 18 anos, e ainda me sinto jovem. Como já falei lá em cima, eu e você, leitor com olhar crítico, somos exceção. Que Deus nos permita ser sempre homens de corpo e moleques de espírito, podendo assim inflar o peito para falar de si e odiar tudo e todos. Afinal, a crítica é a força motriz do mundo.

terça-feira, 5 de junho de 2007

Subjetividade

Sábado à tarde, era o mesmo sol amarelado do qual sempre tivera tanto medo. Tudo tão comum, a mesma sensação de paz, quietude que um sábado confere após uma semana estafante. O animalzinho de estimação estava lá, brincalhão, sorridente. Corria pela casa, arranhando os pés dos seus donos e deixando rastros de água com a patinha molhada. Três meses.

E tudo era brincadeira, enfim. As provas que dali a uma hora seriam feitas sem qualquer esforço, a auto-escola que começava segunda, o ensaio da banda que seria uma terapia, o almoço gostoso com a companhia da mãe, a noite com a namorada e os amigos, a eminência da viagem pra São Paulo... tudo. Onde sempre houvera felicidade, porém, um contratempo tinha que aparecer e colocar a aparente força de espírito em risco. Venceste, acaso.

E quem diria. No meio de uma despedida, um rápido movimento mal-calculado entre cócegas, as mãos soltaram-no; um arranhãozinho de nada foi trocado por uma vida. O bichinho começou a se debater no chão, e o desespero saiu das entranhas, percorreu os caminhos duvidosos do instinto e novamente colocou-me no estado de irracionalidade infantil. Chorei. Corri. Berrei. Tentei reavivar. Clamei. Por fim, o estático. Olhinhos vidrados. Mãe e filho chorando, com um filhotinho de três - três! - meses na mão. Um gatinho vira-lata que trouxe harmonia para a casa.

Os dias que se sucederam foram desafios à parte. A correria do dia-a-dia deu poucos momentos para se pensar no ocorrido. Cigarros fumados na varanda à noite e viagens de ônibus eram exceções. E, seja lá pra onde olhar, vou ver um traço pequeno de culpa no céu amarelado. Nos sapatos, nos potes de água e nas pequenas bagunças que cederam espaço a uma organização artificial. O animalzinho de estimação não está mais lá no quarto, e quem passar por perto percebe que algo está faltando. Agora ando pela casa, com as luzes apagadas e o cigarro em mãos, como que procurando com o que me ocupar e fazer sumir o gosto amargo da culpa. Quem diria. Quem diria.

sábado, 2 de junho de 2007

Mal du Siècle


Desde ontem eu sou o mesmo, mas de onde vim, não posso dizer. Não, não me olhem estranho assim; sou familiar, próximo como poucas pessoas, coisas e entidades já o foram de todo mundo. Não dá pra me reconhecer pela cor dos olhos, pelo jeito com que me visto ou pelas músicas que escuto. São parâmetros vagos demais para uma (pré?)concepção. Vocês devem lembrar, sim, que sou mais humano que qualquer ser de carne e osso.

Hoje me sinto mais vivo do que nunca, refletido nos olhos do mundo. Nos cantos escuros das ruas, nas pequenas coisas que não são aceitas por aí, nas pequenas transformações que os corações e mentes do mundo moderno teimam em ignorar. Estou certo de que todo mundo me conhece... será que você não vai mesmo se lembrar? Nem que ponham um espelho diante da sua cara enrugada? Sou totalitário, invejoso, razão de brigas e oposto à paz. Porém, não sou puramente violência. Ela é conseqüência e nada mais.

De amanhã em diante, serei esquecido - espero. Um dia, vocês hão de recordar de mim como um mal para a humanidade, como um resquício da evolução que impedia certos progressos espirituais. Sou a causa de tudo de ruim que já existiu e existe; desde a crucificação de Cristo, as fogueiras da Idade Média, até os massacres Nazistas, as bombas de Hiroshima, as ditaduras, os embates no Oriente Médio, os sutiãs que tiveram que ser queimados. Toda a História é permeada pela minha ação. Dei uma mãozinha aos imprestáveis, fiz uns sofrerem em vida e outros em morte. Tenho espaço garantido na vida de cada um de vocês, mártires. Sou a desgraça de vocês, tiranos.

Desde sempre, tentaram inventar nomes estranhos para mim. Não me venham com (pré?)conceitos. Basta que, cada um de vocês, saibam o que eu significo. E, acima de tudo, lutem até a morte para se ver livres de mim.

(Fruto de um impasse filosófico aí...)

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Música Urbana

Duas pessoas sentam, uma de frente pra outra, no Cidade Nova 5. Um calor da porra, janelas fechadas, suvacos chechelentos e aquele brega da periquita tocando na rádio não conseguiram eliminar o humor dos alunos da universidade eremita da Br-316.

- Meniiino, tu soubestes daquele moleque que deu o cu pra não ficar de PEC?
- Não... que merda...
- Literalmente!
- Hahahahahahahah...

O ônibus deu uma curva errada a oitenta por hora, acertando uns oito pedestres e fazendo um carro capotar duas vezes. E foi vidro e passageiro pra tudo quanto é lado.

Ao mesmo tempo, um grupinho de punks corria atrás de uns emos na saída do Habib´s. Esses conflitos de tribozinhos pré-adolescentes que toda pólis em ascenção tem. Estavam fazendo graça com a franja breada dos projetos de emotivos europeizados em plena Belém do Pará.

- Bando de viadinho!
- Vão dar o rabo, bando de fresco chorão!!!

Entre risos e cusparadas, expulsaram os meninos(as) da calçada. E eles não tinham por onde andar. Atravessaram a passarela pra se refugiar no shopping. Na mesma hora.

Dali duas esquinas, dava pra sentir o cheiro de cachaça e sêmen que exalava do motel – devidamente escondido atrás de um posto de gasolina. Um homem engomado, de uns quarenta anos, saía meio às pressas dum quartinho – onde dizia-se, um dos seres mais exóticos da cidade, uma mistura de homem, mulher e liquidação de sex-shop, vendia seu corpinho bizarro a preço de Diário do Pará. Falava ao celular.

- Não, eu já estou indo. Estava numa reunião, o Júnior tá vindo encontrar comigo e a gente compra as entradas, já... é, hoje estréia o Homem-Aranha, amor. Claro, a gente já vai ficar na fila... beijos, liga pra Mariana mais tarde, te am...

De novo, na mesma hora.

Dois amigos vinham se degladiando dentro de um carro, no caminho de volta pra casa. Um tinha flagrado o outro fumando maconha ou algo assim; às vezes, um pouco de dor de consciência faz bem à amizade. Entre ofensinhas e ameaças vãs, um dos dois lembra pro outro:

- E sabes com quem eu arrumei? Com aquela tua amiga que fala o cacete de tudo e todos, mas sai vendendo birra pela cidade... depois, não vem me dizer que sou eu o porra-louca que tu pensas! Olha pro teu umbigo, Mariana... tu tá grávida e nem sabe quem é o pai, porra!

E a Mariana olhou pros olhos vermelhos do amigo e se distraiu... mal teve tempo de frear, bichinha. De novo, na mesma hora.

Duas esquinas adiante, um menino meio delicado e magricela, carregando uns ingressos do Moviecom, atravessava a rua.

- How does it feel, to treat me like you do... – cantava uma música qualquer, transmitida de seu Ipod Nano. Realmente não sabia andar pela rua sozinho.
- Atravessa a rua com calma, e passa esse negócio aí – um cara do lado falou.
- O quê?!? – gritou, logicamente por não ter ouvido nada, absorto no seu fone de ouvido.

Bang-bang. A presuntada só não chamou atenção do povo porque, na mesma hora, um ônibus se estraçalhava na esquina, levando a carcaça do seu pai que o esperava pra entrar no Castanheira; de um bando de emos, que justo nessas horas não tinham força pra chorar; de dois amigos, prensados nas ferragens de um Corsa verde; e de um traveco em fim de carreira, que saiu correndo do quartinho, reclamando da nota de cinco reais falsa que o gentleman engomado lhe deu de pagamento. E os amigos do ônibus, intactos, abriram os olhos; pela primeira e última vez, não reclamaram do repertório musical do Cidade Nova 5, que entoava, meio que epicamente, em meio a um banho de cacos de vidro, gritos, tripas e fumaça:

“Os uniformes, os cartazes, cinemas e os lares, favelas, coberturas, quase todos os lugares.
E mais uma criança nasceu.
Não há mais mentiras nem verdades, aqui só há música urbana...”


(créditos à foto: Pollock, nº8)

sábado, 19 de maio de 2007

Contos Burgueses II

Eram Camilla, Giselle e Mariana. As três tinham a mesma tendência à melancolia senil de adolescentes rejeitadas pelo mundo. Eram como irmãs: dividiam roupas, noites amargas e copos de bebida, e nada – nada – no mundo podia penetrar naquele círculo de amizade e medo. Estudavam num colégio escroto de uma cidade escrota, cheia de gente suada e feia e com um gosto péssimo para tudo. Tudo que a vida lhes revelava no dia a dia era entediante, chato, perturbador e fútil; família e princípios ali incluídos.

Certa vez, descobriram o sexo. Ele foi escape para toda sorte de problemas enfrentados por todas; especialmente por Camila, criada numa família católica apostólica romana, do tipo que quer que a filha sangre na noite de núpcias. Ela sangrou na boca de Mariana, aos catorze. E gostou do que sentiu. Desde então, mantinha relações com quem visse à sua frente. E as outras duas... bem, as outras duas estavam lá vendo tudo acontecer. Com o tempo passou a cobrar. Descobriu o poder da independência.

Eram de irritar. Tinham tudo em mãos, educação das boas, pais ótimos, uma mesada polpuda... mas o bombardeio de possibilidades e exigências do mundo moderno as atordoava; seja isso, seja aquilo, comporte-se assim ou será malvista... não beba, não fume, não foda! Como já dizia um poeta, the lights are much too bright. Era tudo supostamente feliz demais, era fácil demais ser assim, fingido. As luzes dessas três eram as que menos brilhavam em meio ao festival de flashes programados da sociedade.

Certa vez, descobriram as drogas. E foi aí que Giselle, em especial, encontrou o passatempo para as tardes amareladas que rasgavam a janela do seu quarto. Maconha, cocaína, ecstasy, crack, heroína, lança, ópio, anfetamina, GHB, GLB, PCP, LSD, cogumelos, plantas, líquidos, pós, pílulas, gases; todos ingeridos em quaisquer ocasiões. Despistava os pais para ir comprar mais com as amigas, e, a mesada, trocava por pacotinhos no final da Doca. No fim, pensava naquela fúria urbana e se descobria atrelada a ela, vendendo a alma por um punhado de alucinógenos, comprando, das mãos do seu futuro assassino, uma passagem para a realidade de poucos. E as outras duas... bem, as outras duas estavam lá vendo tudo acontecer. Sempre.

Eram Silveira, Mendes e Vianna. Famílias compostas por doutores, mestres, especialistas e titulados de toda sorte. Freqüentavam os mesmos lugares, encontravam os mesmos amigos e conhecidos e voltavam para casa com a mesma sensação de que a cidade era a mesma bela merda de dois mil anos atrás; uma penca de construções habitadas por uma ou duas famílias que resolveram criar nomes diferentes para si. Eram todos iguais, feudais como a dinastia que tinham orgulho em divulgar nas páginas da Troppo.

Certa vez, descobriram o rock n´roll. A terra do brega repetitivo e dos ritmos pseudo-regionais pseudo-defendidos tinha, enfim, seus sebos, onde se vendiam os clássicos da música européia a preço de banana. Mariana, em especial, gostava de chupar a boceta de Camila ouvindo David Bowie e Joy Division, enquanto Giselle se injetava num canto. Os ídolos de Mariana variavam entre hippies e drogaditos new wave; para ela, era lindo cortar os pulsos no banheiro, que nem a Christiane F. fez na Alemanha e que nem sua mãe fizera dois anos atrás. Sentia-se bem em apagar as luzes da vida com o vício do martírio.

Eram de dar pena, as três. Camilla e seu sexo arrombado, seu vício pelo dinheiro. Giselle e seu olhar lânguido, sua pele ferida pelas agulhas. Mariana e suas tatuagens ridículas, seus pulsos cortados e seus vinis estraçalhados. Era o prazer da autodestruição que reunia-as na mesma rotina transviada. Tudo que a vida lhes revelava no dia a dia era entediante, chato, perturbador e fútil. Acabaram com a repetição a golpes frios.

Camilla é prostituta. Giselle morreu. Mariana é a que vos fala.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Sobre Deus e o Dia das Mães

Havia muito tempo em que não ia à missa. O convite da mãe, porém, me pareceu indiscutível. A bichinha gosta que eu vá na capela com ela. Fazer o quê, né - mãe é mãe, e seja no dia das mães ou nos 364 restantes, elas e Deus podem tudo. Aceitei com um sorriso falso e me apressei, já que a missa era dali a cerca de meia hora e tinha acabado de acordar.

Chegamos. A Igreja estava lotada. Toda a nata belenense disputava lugares à beira do altar, trocava gestos à distância, como que comentando entre si: "Oi, tudo bom? Que legal, você também por aqui!", e coisas do tipo. Enfim, não era hora de me aborrecer com colunismo social. Encontrei alguns amigos, e acenei para eles com a mesma expressão blasé, tendo a certeza de que estavam ali pelo mesmo motivo. Apesar do sono, do calor e da vontade de acender um cigarro, o ambiente estava bem legal. Sou católico, e odeio qualquer manifestação pseudo-agnóstica do tipo "odeio missas" e "não preciso de religião". Na verdade, admiro, e muito, quem tem fé, e queria ter ânimo para ir à Igreja todos os domingos. O problema é que, como diz a minha sábia mamãe, a gente não aprende essas coisas em casa ou na escola. Ser religioso depende única e exclusivamente da nossa índole. Eu, segundo ela, preciso de mais uns anos de reflexão para abraçar de vez o catolicismo. Deus a escute.

Músicas muito bonitas, cartas dos apóstolos da Bíblia - alguém aí arrisca dizer que aquele livro não é genial? - e salmos à parte, chega-se na omilia. O padre, um senhor de uns oitenta anos de idade, simpático e querido pela paróquia local, estava gripado. E aborrecido. A vinda do Papa no Brasil despertara nele uma certa fúria conservadora, do tipo que só faz irritar católicos "frios", como eu. Criticou a torto e a direita a tendência dos religiosos ditos modernos a "liberar tudo", a tirar da Igreja seu caráter de contestação ao pecado do mundo e adequá-la aos moldes dos novos católicos, como se a instituição Dele fosse apenas um bando de tiranos com cruzes e dentes de alho nas mãos.

Porra, eu juro que senti raiva daquele senhorzinho tão gente fina e sábio! Tudo bem, a idade faz com que pessoas como ele tenham um certo asco ao mundo moderno, cheio de contraceptivos, jovens grávidas e casais homossexuais, mas... custa ter um pouco de bom senso? A Igreja está perdendo espaço justamente por ser arcaica, e o primeiro passo para recuperar seus fiéis foi dado pelo Papa João Paulo II, que trouxe um ar mais jovial ao Vaticano e, vá lá, até que abriu um pouco mais a cabeça do alto escalão católico. Mas a bobagem que é fechar os olhos pr´o mundo, assim perdendo gente para "religiões" porras-loucas, ainda é cometida por muitos dos nossos padres e freiras - única comunicação direta que nós temos com a nossa religião. E toda a juventude de Belém que estava ali, na missa de dia das mães de uma Igreja de bairro nobre, ia sair de lá com ainda menos vontade de voltar no domingo seguinte.

Com ou sem a vinda do Papa Bento XVI ao Brasil, nossos sacerdotes não podem tomar partido, e soltar farpas contra tudo e todos diante do altar. Além do mais, lembremos que eles falam a uma audiência potencialmente infinita, meus amigos comunicólogos. Falar mal de gays e mulheres não-virgens só porque a Bíblia de dois mil anos atrás o fala é ser infantil. Não respeitar as diferenças - um Direito Humano, com as letras maiúsculas - não é o papel de um transmissor dos ensinamentos de Cristo. Resmunguei tudo isso baixinho, e a minha mãe até concordou comigo às vezes. Alguns dos jovens presentes deviam pensar no mesmo. Minha mãe é jovem também, oras.

Nos ritos finais, ele tornou a tossir. Levantou as mãos pálidas e, antes de dar a benção final, disse: "Lembrem que, se o mundo é cada dia mais cheio de pecado, a Igreja e seus fiéis têm que ser, a cada dia, mais santos". É, padre, eu concordo plenamente com você. O mundo realmente tem muito a aprender com a fé católica. Mas que tal a outra mão do fluxo também existir, e a Igreja saber respeitar a mentalidade e os costumes do novo milênio? Juro que ninguém vai sair machucado, ou vai perder os seus princípios; varrer a poeira, às vezes, cai bem. Saí da missa de bom humor, abraçado com a minha mãe, satisfeito por ter acompanhado ela à Igreja. Elas, assim como Deus, podem tudo. E nós, pobres mortais, devemos seguir nossa vida ouvindo os dois e aprendendo com eles. Eles são os mais sábios, oras.

domingo, 6 de maio de 2007

Clipping Papa-Chibé

Meu gato vira-lata dorme em cima do Diário Polícia. Todos os dias, limpo o cocô que ele faz na caixinha de areia e troco os seus jornais. Invariavelmente, os classificados ficam em cima do pote de comida e o caderno policial, na caixa de sapatos que faz as vezes de cama.

Todos os dias, minha secretária pega o jornal da cama do gato e dá uma lida, pra saber quantos amigos dela morreram na semana passada. Eu já me cansei de implicar com seus hábitos, ela diz que é por segurança própria que lê todo aquele lixo. E eu, eu só faço engolir em seco e compro o jornal de novo.

Meu cachorro não é tão educado. Ele tem um quarto que é só dele, cheio de jornais da semana passada pincelados de xixi e merda. A cara da governadora está estampada embaixo do saco de ração, junto com o Bernardino e todos os badalados de Belém. E eu, eu só queria ter saco para ler as mesmas coisas todo dia, e não desperdiçar papel e dinheiro em novas edições de mesmo conteúdo.

Todos os dias, eu acordo e fumo um cigarro. Enquanto engulo uma xícara amarga de café preto, leio o Magazine e o Caderno D, procurando algo pra fazer nos fins de semana. Descubro que não, não há nada pra fazer nos fins de semana. Saio de casa, fumo uma carteira e bebo uma grade. Volto às duas da manhã. E, bêbado e entediado, troco o jornal dos bichos enquanto preparo a cama pra dormir.

Minha família é ótima. Minha mãe é uma pessoa culta, educada. Já foi assaltada no meio da Rui Barbosa, e reagiu. Milagrosamente, não virou matéria de capa, com uma tarja preta no rosto estourado. Deu uma cabeçada no pivete e fugiu. E eu, eu só faço ligar os pontos e entender por quê certas publicações “fazem a cabeça” da bella villa belenense. E dou graças a Deus por ela – a minha mãe – estar viva.

Todos os dias, eu acordo e durmo com a mesma sensação de que tudo se repete. O jornalismo brasileiro serve de penico para animais domésticos; os homens, assim como os bichos, cagam para tudo e levam suas vidas à base das necessidades primais. E eu, eu só faço engolir tudo em seco... e compro o jornal de novo.

Decepções à parte, jornalismo é jornalismo, né... o jeito é dar o fora daqui o quanto antes.

sábado, 28 de abril de 2007

Seis

Um grupo de amigos se reúne, às dez horas da noite de um sábado modorrento, meio que procurando com o que se ocupar. Em uma cidade como a deles, realmente não há muito o que se fazer: ou você aluga filmes e fica em casa pensando na vida, ou vai para as boates “badaladas” do momento e fica escutando um funk sexualizado qualquer enquanto revira alguns Birinights. O problema é que os seis, esses seis de sempre, não estavam a fim nem de um nem de outro. Queriam novidade.

Muita divagação, combos do McDonalds e alguns cigarros fumados depois, decidiram ir para um bar que nunca haviam freqüentado antes – pra quê dizer o nome dele? –, afinal, “vai lá que alguma novidade ainda exista por trás dessa cidadezinha de merda, né?”. Acharam o bar – era uma casa da Cidade Velha, reformada e convertida num nightclub com requintes vitorianos. Bonitinho. Entraram no bar. Pediram a primeira rodada de alcoólicas. E o papo começou a fluir.

A casa, antes vazia, começava a aglomerar uma massa cada vez maior de homens e mulheres, enquanto os amigos trocavam piadas, entretiam-se com as trapalhadas de um e brincavam com a sexualidade do outro. Mal perceberam que, pouco a pouco, o lugar lotava, e aquele DVD da Madonna que passava tornava-se cada vez menos audível.

- Eras, a Madonna era muito doida naquela época, né?

- Mas vocês já ouviram o novo cd dela? A voz dela foi ficando cada vez melhor...

Divagação, divagação, divagação. Boate cheia, garrafas de cervejas e drinks arroxeados e esverdeados chegavam à mesa, engolidos calmamente pelos rapazes e moças ali presentes. O sábado, antes razão de desespero e melancolia (“não tem porra nenhuma p´ra fazer hoje!”), estava se convertendo em uma noite deliciosa, regada a muito papo lisérgico e considerações pseudo-filosóficas. Isso até um deles olhar p´ro lado e ver dois homens se beijando.

- Êêê, caralho! Tem homem se beijando aqui!

- Sim, e tu não sabias que aqui era GLS?!?

Pelo visto, não. Uma parcela considerável dos casais dali era composta por duplas homossexuais; na verdade, héteros eram minoria, comprovando aquele negócio de que, para você se sentir diferente, basta estar no lugar “errado”, na hora “errada”. Naquele barzinho, num fim de mundo qualquer, num sábado modorrendo como qualquer outro, estranhos eram normais e normais eram estranhos. O problema é que os seis, aqueles seis de todo santo sábado, sabiam muito bem que era melhor andar juntos por ali. Eram estranhos.

Alguns deles, visivelmente mais porras-loucas, não se assustaram nem um pouco com o que viam; aproveitaram a chance para conhecer aquele meio que tanto era abominado. Descobriram que todos, todos estavam errados: o mundo estava todo errado! Aquela gente cantava as músicas junta, dançava coladinha ao som de Cássia Eller e Marina Lima, trocava beijos com carinho, conversava sobre política e pagava a conta antes de ir embora, igualzinho ao povo dito “normal”. Tudo bem que uns se empolgavam e iam juntos ao banheiro e tudo, mas isso é produto de outro tipo de preconceito.

Enfim. Papo vai e papo vem, os seis começam a se espalhar pelo lugar. Uns ficam putos, levam cantadas de gays e vão embora. Outros dão risadas, divertem-se com a diferença do ambiente e vão para casa ainda mais felizes. Ainda mais héteros. E essa é graça de andar entre amigos: cada um aprende a lição à sua maneira. E os seis, aqueles seis de todo santo sábado, logo combinarão de ir de novo no pub belle-epoquiano onde os “normais” são estranhos e os “estranhos” são normais... quer apostar?

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Cotidiano

Belo dia, ele acordou com uma presença estranha ao seu lado. Há anos não sentia a respiração de alguém batendo em sua nuca, ou mesmo dedos entrelaçados aos seus por debaixo do lençol. Eram cerca de quatro da manhã, e, lá fora, alguns bêbados gritavam para o nada enquanto entornavam doses de cachaça no bar do Aldo. Ele precisava acordar lá pelas 5, estaria na fábrica às sete e ah!, se um dia chegasse atrasado. Nem que os metrôs parassem, nem que aquela São Paulo ufânica e fumacenta explodisse em um atentado megalômano, nem que acordasse preso em algum quartel militar; ele batia ponto às sete, e produzia latarias de carros até as seis da tarde. Sem direito a réplica.

Com o rosto virado para a parede, ainda pensando no dia cansativo que teria pela frente, lembrou que alguém - ainda - dormia ao seu lado. Mas como, como diabos aquela pessoa fora parar ali? Tudo o que lembra é que saíra com os amigos algumas horas antes, tomara algumas cervejas e, por volta de uma da manhã, já dormia sereno. Já havia acontecido isso algumas vezes, mas... ao menos ele lembrava do sexo, da gritaria que incomodava os vizinhos, do ranger dos assoalhos e paredes e dentes encardidos. Principalmente, recordava do aroma das dezenas de mulheres fáceis com as quais se deleitava toda primeira sexta-feira do mês - quando o salário permitia. Daquela vez, não havia cheiro, não sentia-se cansado dos movimentos, não estava suado. Sentia apenas aquela presença, peso a mais no colchão seboso, vez ou outra mexendo-se e tossindo de leve.

Estava tão assustado que o sol começava a se insinuar na janela do outro lado, e ele permanecia fingindo dormir. Eram quase seis! Dali a pouco teria que levantar, e que fosse o que Deus quisesse. Se fosse uma mulher feia, desconversaria com um bilhetinho deixado na mesa da sala; se fosse aquela droga de viúva carente do apartamento ao lado, chutaria para fora mesmo! Pelo toque das mãos, parecia ser gorda. A respiração era um pouco forte, provavelmente uma lavadeira fumante ou algo assim. O problema dos bêbados era justamente esse: o de ignorar completamente o juízo estético, vulgo bom-senso. Mas o radinho despertador seria sua redenção... a música-tema de todas as manhãs, Veloso, Gil ou Chico Buarque, quando a censura permitia, tocaria dali a uns dez minutos! E o ser dorminhoco ao seu lado ia acordar, querendo beijos calientes e mais uma foda antes do trabalho. Não dava tempo; melhor levantar logo, Josival!

Levantou. Ainda olhando para a parede, caminhou na ponta dos pés até a porta do quarto e, coração acelerado, virou-se para o recinto tipicamente proletário da década de 60. Uma cama, uma mesinha cheia de contas a pagar e um pôster do Chico escondido atrás da tevê. O lençol cobria quase que totalmente a pessoa deitada. Como ela era grande! Ainda tentando manter o silêncio fúnebre, foi até a beira da cama e puxou o lençol com toda a cautela possível, essa que todo brasileiro tinha nas horas difíceis. E viu. E o radinho tocou.

"Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã..."

- O que é isso, caralho?!?

Deu um grito, chutou a armação da cama, deu um soco na cara do seu Aldo e correu de pijama para as ruas. E nunca mais voltou p´ra casa.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Blue Monday


“O lazer é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se, ou ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais.” (Joffre Dumazedier, 1976)

Ando meio sem inspiração para escrever esses tempos. Dizem que um bom cronista, escritor ou seja lá o que for, tem como matérias-primas sua própria experiência e sua imaginação; viaja dentro da sua cabeça, por vezes aliando um pouco do que vivencia enquanto escreve seus "filhos" - devidamente salvos em Word. O problema é que, ultimamente, não acho que esteja vivenciando muita coisa além das escadas do meu prédio e das paredes verdes da Unama. Imaginando, menos ainda.

É claro, nem tudo se resume a escrever. Tenho que estudar, fazer academia, estudar, dormir, cuidar do gato e do cachorro, estudar, procurar estágio... mas e o entertaining? Aonde fica ele? Há quem diga que essa ladainha pós-moderna seja coisa da maioridade, ou mesmo do excesso de reflexão. Para mim, porém, é muito mais do que isso. O problema é a auto-exigência, o problema são as 24 horas apertadas e tudo o que a gente pode ou deve fazer nelas.

Nada é mais melancólico do que essa vida absorta em responsabilidades, obrigações, paradas de ônibus e cigarro. E, perdoem os yuppies, sortudos eram os gregos, que tinham o dia inteiro p´ra beber, transar e pensar no cosmo. Às vezes a gente não tem tempo nem para pensar na vida que leva... que o diga buscar inspiração para escrever! Dá uma vontade tremenda de sentar e passar um dia inteiro dormindo, pegando faltas nas trocentas aulas que vou ter, quebrando a expectativa de trocentas pessoas que esperam tudo e mais um pouco da nossa inesgotável energia. Mas enfim... a gente precisa garantir o futuro, né?

Pois é, já passa de meio-dia e eu nem almocei; ainda não tomei banho, nem arrumei minhas coisas. Atrasei meu dia inteiro por quinze minutos de escrita (des)interessada! Por isso que digo e repito: pensar demais é decadência...

terça-feira, 20 de março de 2007

Sinal Vermelho

(Solavanco, daqueles de quando se passa a marcha errada)

- Passa a marcha, filho!

- Caralho, mãe, assim tu não me deixa dirigir direito! Calma!

Ele já tinha a carteira havia tempo, e esse era o problema. A mãe teimava em não dar as chaves do carro pra ele já havia um ano... ou seriam dois? Sempre, era sempre a mesma conversa furada. Dizia estar preocupada, achar que o filho não conhecia bem o trânsito da cidade, os nomes das ruas e tudo o mais; mal sabia ela que ele já havia dirigido o carro dos amigos, estivessem as ruas lotadas ou vazias, estivesse ele bêbado, chapado ou os dois... nem lembrava da última vez que chegara em casa sem ser carregado. E a coitada da mãe achando que ele vivia de táxis, caronas e Smirnoff Ices devidamente contados...

O sinal abriu. Dobraram pela décima vez na Doca. Ela queria ver se ele sabia medir bem a distância entre os carros, postes e calçadas, pegar a faixa certa p´ra fazer aquela merda de curva que tem no começo da avenida (quem foi o jumento que projetou aquilo?!?), etc e tal... e ele, ele só queria mesmo era pegar o carro à noite e levar a namorada para o drive-in. Coisa de jovem. Conforme a mãe, tadinha, ia ganhando confiança no filho, o papo dentro do carro ia fluindo mais sossegado:

- E aí, meu filho? Como andam seus amigos? Nunca mais vi o Joílson!

Joílson era o traficante do grupo. Conseguia LSD, maconha e Marlboros mentolados para todo mundo. Uma vez dirigia seu carro - a "Máquina do Mistério", uma Kombi verde-limão, cheia de camisinhas usadas, papéis de seda e seringas encardidas - pela Pedro Álvares Cabral, a 130Km/h, quando por acaso passou a marcha errada. O carro desguiou, rodopiou, e o bando de junkies só fazia rir lá dentro, até o carro dar de frente com a estátua da Belém Importados. Perda total, mas nenhum ferido. No outro dia, acordou na Unimed com um soro enfiado no braço e nunca - nunca - mais ouviu falar do Joílson. Os seus pais e os do figura estavam viajando e nada ficaram sabendo.

- Ah, mãe... disque ele ia se mudar pra fazer faculdade em Sampa, né? Ele sempre quis estudar na Unicamp...

- Ah, tá... poxa, encontrei com a mãe dele dia desses na rua e acho que ela nem me viu!

- É, ela é meio distraída mesmo!

Sua mãe, assim como a mãe de todos seus amigos, tomava Prozac, Rivotril, Topamax e todos os Tarjas-Pretas da farmácia como se fossem tic-tac; era a moda do momento, sentir um minutinho de tristeza e tomar aquele monte de remédios controlados como se fossem passaportes para outra vida. Mal enxergavam um palmo à sua frente, faziam análise com o personal-trainer da academia e se masturbavam juntas no banheiro da AP. Escapismo total. Queriam viver segundos de êxtase, longe da família, dos filhos e do trabalho maçante, longe do mundo e da chatice inerente ao matrimônio...

Ah, se ela soubesse que ele também já estava de saco cheio daquela merda toda, daquela hipocrisia com ares provincianos; se ela sequer pensasse na quantidade de vezes em que ele já ralou aquelas pílulas para cheirar pó no banheiro, no número de provas que ele já comprou na Unama, no número de vezes que já bateu o carro dos outros, em todas as drogas que ele já experimentou, na quantidade de mulheres, homens e transexuais que ele já fodeu e pelos quais foi fodido, na overdose de ontem à noite e...

(Freios súbitos e buzinas frenéticas)

- Porra, Júnior, olha direito pro trânsito, cacete!

Só arranhou um pouco da lateral do carro mas foi o suficiente para de uma vez por todas o aidético-junkie fodido disfarçado de menino de família mandar um cotoco para a senhora do carro vizinho e engatar a quinta e enfiar o carro num poste e dar tchau-tchau pr´aquela merda de vida bandida que vivia estragando às escondidas.