segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

C´est Fini

Mais ou menos um ano atrás, um grupo chamado Torture Squad veio tocar aqui, em Belém do Pará. Ao lado do meu prédio, em uma sede de escola carnavalesca. Na ocasião, fiquei aborrecido com a barulheira que chegava no nono andar e, literalmente, me tirava o sono. Lembro, porém, que senti como nunca a atmosfera provinciana e decadente da minha cidade ressoar naqueles riffs e guturais que faziam a cabeça dos poucos amantes do estilo que davam as caras lá embaixo. Um grupo reconhecido nacionalmente, digno de respeito... tocando em um galpão pós-carnavalesco, cheirando a suor e cachaça?!? Só Belém mesmo... um misto de pena e revolta tomou conta de mim, e lá fui eu escrever uma crônica.

“Isso é Belém, isso é Pará, isso é a Puta que o Pariu”, era o nome dela. Tão atual, a crônica! Muita gente diz que as coisas mudam drasticamente em um ano. Ok, eu concordo, mas salvas as devidas proporções. Os governos mudam, os partidos trocam de (o)posição, senador vira governador, ex-governador vira ex-candidato; uns trocam de emprego e/ou faculdade, uns casam, uns morrem, outros nascem; a escola do Quem São Eles concorreu mais dois anos no carnaval belenense, o galpão foi reformado. Mas a mesma atmosfera sufocante de aqui viver, não: essa não muda nunca. Continuo revoltado com o preconceito e a falta de espaço para as camadas culturais que aqui existem. Continuo querendo dar o fora daqui o quanto antes.

Eles – o Torture Squad – voltaram. Sim, e nesse exato momento estão no ápice de seu concerto, levando “metaleiros” estigmatizados ao êxtase (e moradores da vizinhança à loucura) lá embaixo. O que posso eu fazer? Reclamar do barulho? Não, dessa vez não. As coisas mudaram, ao menos para mim. Depois de abrir shows para nomes internacionais do Metal como Dimmu Borgir e lançar-se em novas turnês, a banda retorna à Belém, para novamente fazer o melhor que pode e lutar contra a acústica pífia e a produção inconsequente dada a eles, garantindo um pouco de entretenimento aos jovens amantes do estilo. Nunca que iria me irritar com o show. Simplesmente fechei a janela e ignorei o barulho, sentindo-me um pouco mais humano do que no ano passado. E, respeitosamente, voltei a escrever.

(...)

Sabe... o pior de tudo é saber que os caras não são os únicos a sofrer com isso. Enquanto aqui (e lá fora) só se fala de Joelma, Chimbinha e Tremendão Tupinambá, grupos de teatro e música popular degladiam-se em reuniões com o Governo para conseguir investimentos e patrocínios; cinemas locais resistem para manter-se de pé e abrir suas salas gratuitamente à população, com mostras de exposições e filmes nacionais; barzinhos decadentes pagam uns poucos trocados para músicos frustrados tocarem hits radiofônicos à clientela e a quem mais passar na rua; obras de pintores e escultores ficam expostas em buracos enfiados na Cidade Velha, esperando indefinidamente por um crítico de arte decente que as analise! Esses mártires estão pagando um preço alto, enquanto tentam se sustentar e dar, se não um banho, ao menos um respingo de cultura na nossa mentalidade atrofiada e preconceituosa. E nós... nós deveríamos ao menos aplaudi-los e pagar o convert, não é?

É, meus amigos, é a nossa metrópole com requintes de lugarejo mostrando suas garrinhas afiadas mais uma vez. É Belém do Pará, a mesma puta-que-pariu de um ano atrás, terra-de-ninguém onde artistas não têm o que comer; é a cidade onde jamais criarei meus filhos e netos, a pseudo-metrópole cujos requintes de decadência apagam todas as cores dos cartões postais e transparecem nos sorrisos tortos dos assaltantes. A mesma com a qual, porém, ainda terei mais três anos de convivência pela frente, resmungando calado em um prédio na Doca enquanto pobres cabeludos se empurram dentro de um galpão, tudo ao som da suposta “orquestra do demo”, sem nem sentir os trombadinhas roubando suas carteiras. Ai, ai.

* Quem quiser conferir a tal crônica de um ano atrás, ela está disponível aqui:

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

No Mundo, na Lua

Andam dizendo que, com o aquecimento global, o efeito estufa, os furos na camada de ozônio e tudo o mais, o temperatura global média subiu cerca de 0,74º Celsius no século passado. Pode ver: de ano em ano, os verões são mais abafados e densos, e os períodos de frio, mais inconstantes e curtos. A tendência é que, em poucos séculos, nosso planeta se torne um lugar inóspito para se viver, calorento, alagado por mares salobros e cheio de gente doente e morta de fome. Por outro lado, os avanços da ciência moderna, as viagens espaciais e as pesquisas em novas formas de se adaptar à vida abriram novos panoramas (leia-se escapatórias) para nós, ó péssimos administradores da biosfera condenados à barbárie.

É aquela velha desculpa esfarrapada: já que aqui não dá para ser, vamos pra Pasárgada. Dadas as atuais condições, parece uma solução plausível. Se nós, que supostamente nos achamos sozinhos na imensidão quântica do Universo e fizemos tudo errado com um planeta – veja só, um dentre tantos outros mil –, estamos arrependidos e amadurecidos, porque não podemos buscar por outros ares e, vá lá, evitar cometer o mesmo erro de novo? Ora, nossos vizinhos intergalácticos que nos entendam! Como não há nada comprovando a existência de outras organizações em sociedade galáxia afora, astrônomos já começaram a estudar as luas de Júpiter, nosso famigerado vizinho Marte e até mesmo uma discretíssima lua que nos aquece nas azuladas noites terráqueas, como possíveis astros habitáveis. E pensar que fazem míseros quarenta anos desde que os russos e os americanos se digladiaram no arcaico sonho de fincar uma bandeira na Lua... agora queremos morar, casar, ter filhos, trabalhar, ver novela, jogar bola, estudar, transar, fazer guerra, acabar com a natureza... tudo por lá!

Os nossos cientistas querem, enfim, transplantar a vida humana para outros planetas, e isso o quanto antes. Deus do céu, como terei saudade da Terra! Mas se ainda estiver vivo na época, confesso a vocês que serei um dos primeiros entusiastas a pagar milhões para me mandar daqui. Vou mesmo. Dormir em uma câmara despressurizada, vendo as novelas da Globo e o Big Brother via satélite, comendo McDonalds em pílulas, com gotículas de Coca-Cola pairando no ar... um verdadeiro astronauta do novo milênio. Vou p´ro espaço sideral, e para lá levarei meus filhos, irmãos e netos, as fotografias dos meus pais e avós, minha guitarra, minhas memórias e meu videogame. E vou passar a velhice por lá mesmo, eu, minha prole e o que restar de mim.

Vou saudar as idas à praia, o pôr-do-sol na beira do Rio Guamá, a barulheira dos carnavais e da vida corrida que seguia até a meia-noite; vou lembrar do calor enjoado que fazia no meu quarto às nove da manhã, das curvas que a fumaça fazia no ar ao se desprenderem de um cigarro, da minha pele bronzeada a contragosto no sol do meio-dia, do sol caloroso do verão que se anunciava todo mês de Julho. Tudo não passará de memória, minha e de toda a gente que comigo quiser ir viver o final de sua vida fria, mas dignamente.

Andam dizendo que, por lá, vai tudo ser igual; pura ilusão. No mundo ou na Lua, na América Latina ou na Estação Internacional, a gente vai fazer as mesmas besteiras de novo; alguém vai arrumar confusão, inventar novos valores econômicos e meios de produção, descobrir um novo combustível, e lá vamos nós explorar o solo, a natureza e as riquezas do novo planeta até a sua exaustão! Sorte a de caras como eu, que irão viver apenas o mar-de-rosas, apenas a fase nupcial da nossa colonização interplanetária. O que mais me dói, porém, é saber que terei uma morte sem dor, despressurizada, mas culposa. Vou morrer assim, triste como nenhum velhinho jamais morreu, apenas por saber que tudo o que eu vivi por aqui meus netos e bisnetos jamais irão viver; Por tudo o que vivi e pelo que lutei não passar de um pontinho azul-escuro e alheio à vida, visto das janelas impermeáveis de uma cápsula qualquer. É, meus amigos, seja no mundo, seja na lua, vamos sempre nos arrepender apenas quando a coisa não tiver mais jeito.

* Créditos à foto: capa do livro "O Mundo é Plano", de Thomas L. Friedman

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Status Quo


A tevê denuncia, às oito da noite ou às três da manhã. O tempo todo. Vídeos, reportagens e devaneios jornalísticos são produzidos em larga escala, mostrando a barbárie que domina as favelas e lages. Antes tudo isso se resumisse uma capital bela, megalópole do Sudeste, oásis de um país feioso e sorridente. Antes isso não fosse apenas a ponta de um dantesco iceberg vermelho, flutuando sob nossos narizes remelentos e hipócritas.

Eu vi! E você, viu? Criança de doze anos fumando maconha, criança arrastada no asfalto por criança, trilhas de cocaína na festa natalina do PCC, orgias alucinógenas para quem não tem comida, ladrão-protótipo assistindo à festança, criança, criança e mais criança brincando de pega-pega no meio daquela bodega criminosa. Tudo de uma vez só. Muita, mas muita revolta, por parte dos adultos daqui do outro lado. O Youtube está aí pra quem quiser ver na telinha do computador: o Brasil acordou p´ra vida e se aborreceu! Teve passeata, gente carregando vela em luto silencioso pelas esquinas do Leblon. Os ricos sempre, sempre hão de lamentar a desgraça que ensangüenta as lages dos morros, para depois dormir em seus lençóis engomados e ter pesadelos com os favelados roubando suas casas. E quem há de os culpar por serem realistas?

De tanta angústia e melancolia, desisto de tentar me informar. Entro na Internet, para ver meus e-mails, e vejo o mundo do qual me ausento em meus estudos diários saltar em uma janela pop-up virulenta. É tanta confusão, tanta notícia deprimente, que dá vontade de desligar o computador. Desligo. Aí volto para a televisão, e o noticiário me lembra novamente de que sou brasileiro, e que poucos milhares de passos me separam da “terrinha sem lei”, comandada pelos punhos de ferro do tráfico; poucas horas de avião me separam de sete quilômetros de sangue e pedaços de uma criança, distribuídos pelas ruas charmosas da Zona Norte do Rio. Deus do céu! Antes o episódio fosse um filmeco trash dos anos 80. Antes o vídeo da festinha de Natal do Primeiro Comando não passasse de uma inocente noitada junkie: o que dói é saber que tudo isso é verdade, parte do cotidiano brasileiro, tão meu e seu quanto os calos nos nossos pés ou a cor da nossa pele. Nós somos violência pura.

Permito-me calar a boca e assumir o dolorido: poucas vezes o jornalismo brasileiro foi tão honroso, e olha que eu, como mero aspirante a jornalista, tenho que criticar o atual uso da mídia para ver se consigo enxergar além das telinhas do teleprompter. Mas a verdade é que eventos trágicos como esse devem mesmo ir parar nos ouvidos de cada um de nós; penetrar no nosso íntimo, pincelar nosso imaginário com a gota d´água do descontrole social. Mais do que carregar velas, mais do que pedir pena de morte e redução da maioridade penal, a gente precisa mesmo é mudar. E mudar logo, antes que nossos cemitérios não comportem mais tantas vítimas e mártires de seis anos de idade.

O brasileiro bonachão e encachaçado dos cartões postais já era: agora é um latino cabisbaixo e amedrontado, que mal consegue sair pra dar uma volta de carro às sete da noite sem sentir o perigo à sua espreita. O jornalismo e o boca-a-boca dos pseudointelectuais estão aí para comprovar: ninguém está seguro nesse país de doido! E depois me dizem que a gente não precisa de uma arma debaixo do travesseiro...

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Um Papinho sobre Belém


- Me fala um pouco de Belém!

- Cara, Belém é uma cidade sem compromisso. Sem compromisso com a verdade, com a mentira e com o silêncio; sem compromisso com as pessoas, com os animais, com as ruas, esquinas e becos; sem compromisso com ela e com sua própria história, até. É uma traíra, uma desvairada sem face.

"Todo mundo se conhece de vista, mas ninguém sabe o suficiente de si e dos outros; tudo o que fizeres por aqui será recordação coletiva, especialmente se for errado. Fofoca é uma coisa que belenense gosta... e como gosta! Aquele porre que a noiva tomou no casamento da semana passada ficou para a história - junto com os outros quinze que andou tomando, segundo eles. A falácia corre solta como se fosse parte do vento quente que nos abafa. Não confie em todos, embora todos pareçam confiáveis: tem traficante e puta fazendo faculdade, prefeito sem diploma, advogado dando uma de taxista... é um povo estranho, mesmo!"

"Outra coisa que deves saber de antemão: ô cidadezinha violenta. É gente sendo morta e estuprada, cachorro sendo atropelado, árvore sendo podada, arrastão em pleno Círio... nada contém essa fúria urbana que transplantaram pra selva! Se conheceres alguém que nunca foi assaltado por lá, me apresenta. Enfim, a cidade é perigosinha, mas tem um sabor especial. Não há nada mais divertido do que desafiar o toque de recolher dando uma volta pela Doca às três da manhã, ou mesmo indo tomar uma cervejinha com os amigos no bar da Valda - por sinal, há muito pouco o que se fazer por lá, isso já deves saber. Cinemas são ralos - o Moviecom chegou, comprou/faliu a concorrência e agora faz a festa na sua monarquia -, boates são lugar de playboy e o único clube grande da cidade tem um atendimento horrível. Motel bom só tem um, lá na Pedro Álvares Cabral, e Drive-In discreto tem um, perto do Mangal das Garças. E é tudo muito caro. Então, se queres diversão, recomendo comprar comida enlatada e refri de quinta, alugar uns filmes e chamar os amigos pra jogar porrinha."

"Além do mais, Belém é uma cidade de aparências. O casamento dela com o desenvolvimentismo acabou faz tempo, há anos ela vive de um orgulho poeirento. Se pensas que o Teatro da Paz, a Estação das Docas ou o Aeroporto Internacional a resumem, precisas ver ela de pertinho. Tem muita pobreza, nossa! Crianças cuspindo fogo nos sinais e os hippies da Praça da República são nossas especiarias abundantes. Os guardadores de carro também estão dominando o mundo por aqui, ganham mais de 400 por mês fingindo nos vigiar. Os prefeitos e governadores investiram em revitalizar a Cidade Velha, as Docas, os espaços artístico-culturais, a produção local e os projetos sociais e etc. e, vá lá, muita gente ganhou com isso tudo. Mas o retrato de Belém é, em geral, bem mais cinzento do que os cartões postais insinuam."

"Sabe aquele negócio de Belle Époque? Pois é, Belém é a mais mal-acabada imitação da França de 1900 que jamais existiu. Sei lá como, com o tempo os nativos conseguiram dar um ar regional a tantas lajotas importadas e abóbadas neo-renascentistas. Um monte de "iguarias" daqui, como o Tacacá, o Ver-o-Pêso, as índias sensuais e o Círio, venceram a imitação e ganharam espaço mundo afora, e chove turista aqui todo fim de ano. Os coitados, é claro, geralmente voltam para casa decepcionados. Sem pessimismo, o turismo daqui é extremamente material e sem vida; nossa cidade é uma carcaça subdesenvolvida como qualquer outra."

"Quando te falo que Belém não tem compromisso, falo justamente desse lado moleque dela: ela engana, engana como São Paulo enganou os nordestinos na década de 50, ou como o Brasil enganou os mercantilistas sedentos por ouro no século XVI. Talvez seja até vingança, não sei. Só sei que esse choque que provavelmente vais sentir quando fores lá lembra aquele famoso Mito do Platão. A metrópole da Amazônia é só um punhado de sombras emaranhado entre cipós e mangueiras, perdido na selvageria de um país decadente: cabe ao resto dos iludidos sair do escuro e descobrir sua real aparência. Ela não tem culpa de ser o que é, assim como quem vive aos trancos e barrancos nela não a tem... ela é uma desvairada sem face, já disse! Ataca em silêncio."

"Mas olha, se posso dar minha opinião nada parcial, recomendo ela pras tuas visitas ainda assim. Afinal, falando de Brasil, toda visita é uma decepção parcial, seja com o lugar, seja com o país que o abriga. Ao menos, pra ela, já vais preparado. Vem pra Belém do Pará, porque aqui a decepção tem sabor de maniva e as ruas ainda têm pedrinhas por baixo do asfalto. É uma estadia aberta à aventura - sem jacaré e com muita poluição e correria."

- Ahhh, tá...