quarta-feira, 23 de maio de 2007

Música Urbana

Duas pessoas sentam, uma de frente pra outra, no Cidade Nova 5. Um calor da porra, janelas fechadas, suvacos chechelentos e aquele brega da periquita tocando na rádio não conseguiram eliminar o humor dos alunos da universidade eremita da Br-316.

- Meniiino, tu soubestes daquele moleque que deu o cu pra não ficar de PEC?
- Não... que merda...
- Literalmente!
- Hahahahahahahah...

O ônibus deu uma curva errada a oitenta por hora, acertando uns oito pedestres e fazendo um carro capotar duas vezes. E foi vidro e passageiro pra tudo quanto é lado.

Ao mesmo tempo, um grupinho de punks corria atrás de uns emos na saída do Habib´s. Esses conflitos de tribozinhos pré-adolescentes que toda pólis em ascenção tem. Estavam fazendo graça com a franja breada dos projetos de emotivos europeizados em plena Belém do Pará.

- Bando de viadinho!
- Vão dar o rabo, bando de fresco chorão!!!

Entre risos e cusparadas, expulsaram os meninos(as) da calçada. E eles não tinham por onde andar. Atravessaram a passarela pra se refugiar no shopping. Na mesma hora.

Dali duas esquinas, dava pra sentir o cheiro de cachaça e sêmen que exalava do motel – devidamente escondido atrás de um posto de gasolina. Um homem engomado, de uns quarenta anos, saía meio às pressas dum quartinho – onde dizia-se, um dos seres mais exóticos da cidade, uma mistura de homem, mulher e liquidação de sex-shop, vendia seu corpinho bizarro a preço de Diário do Pará. Falava ao celular.

- Não, eu já estou indo. Estava numa reunião, o Júnior tá vindo encontrar comigo e a gente compra as entradas, já... é, hoje estréia o Homem-Aranha, amor. Claro, a gente já vai ficar na fila... beijos, liga pra Mariana mais tarde, te am...

De novo, na mesma hora.

Dois amigos vinham se degladiando dentro de um carro, no caminho de volta pra casa. Um tinha flagrado o outro fumando maconha ou algo assim; às vezes, um pouco de dor de consciência faz bem à amizade. Entre ofensinhas e ameaças vãs, um dos dois lembra pro outro:

- E sabes com quem eu arrumei? Com aquela tua amiga que fala o cacete de tudo e todos, mas sai vendendo birra pela cidade... depois, não vem me dizer que sou eu o porra-louca que tu pensas! Olha pro teu umbigo, Mariana... tu tá grávida e nem sabe quem é o pai, porra!

E a Mariana olhou pros olhos vermelhos do amigo e se distraiu... mal teve tempo de frear, bichinha. De novo, na mesma hora.

Duas esquinas adiante, um menino meio delicado e magricela, carregando uns ingressos do Moviecom, atravessava a rua.

- How does it feel, to treat me like you do... – cantava uma música qualquer, transmitida de seu Ipod Nano. Realmente não sabia andar pela rua sozinho.
- Atravessa a rua com calma, e passa esse negócio aí – um cara do lado falou.
- O quê?!? – gritou, logicamente por não ter ouvido nada, absorto no seu fone de ouvido.

Bang-bang. A presuntada só não chamou atenção do povo porque, na mesma hora, um ônibus se estraçalhava na esquina, levando a carcaça do seu pai que o esperava pra entrar no Castanheira; de um bando de emos, que justo nessas horas não tinham força pra chorar; de dois amigos, prensados nas ferragens de um Corsa verde; e de um traveco em fim de carreira, que saiu correndo do quartinho, reclamando da nota de cinco reais falsa que o gentleman engomado lhe deu de pagamento. E os amigos do ônibus, intactos, abriram os olhos; pela primeira e última vez, não reclamaram do repertório musical do Cidade Nova 5, que entoava, meio que epicamente, em meio a um banho de cacos de vidro, gritos, tripas e fumaça:

“Os uniformes, os cartazes, cinemas e os lares, favelas, coberturas, quase todos os lugares.
E mais uma criança nasceu.
Não há mais mentiras nem verdades, aqui só há música urbana...”


(créditos à foto: Pollock, nº8)

sábado, 19 de maio de 2007

Contos Burgueses II

Eram Camilla, Giselle e Mariana. As três tinham a mesma tendência à melancolia senil de adolescentes rejeitadas pelo mundo. Eram como irmãs: dividiam roupas, noites amargas e copos de bebida, e nada – nada – no mundo podia penetrar naquele círculo de amizade e medo. Estudavam num colégio escroto de uma cidade escrota, cheia de gente suada e feia e com um gosto péssimo para tudo. Tudo que a vida lhes revelava no dia a dia era entediante, chato, perturbador e fútil; família e princípios ali incluídos.

Certa vez, descobriram o sexo. Ele foi escape para toda sorte de problemas enfrentados por todas; especialmente por Camila, criada numa família católica apostólica romana, do tipo que quer que a filha sangre na noite de núpcias. Ela sangrou na boca de Mariana, aos catorze. E gostou do que sentiu. Desde então, mantinha relações com quem visse à sua frente. E as outras duas... bem, as outras duas estavam lá vendo tudo acontecer. Com o tempo passou a cobrar. Descobriu o poder da independência.

Eram de irritar. Tinham tudo em mãos, educação das boas, pais ótimos, uma mesada polpuda... mas o bombardeio de possibilidades e exigências do mundo moderno as atordoava; seja isso, seja aquilo, comporte-se assim ou será malvista... não beba, não fume, não foda! Como já dizia um poeta, the lights are much too bright. Era tudo supostamente feliz demais, era fácil demais ser assim, fingido. As luzes dessas três eram as que menos brilhavam em meio ao festival de flashes programados da sociedade.

Certa vez, descobriram as drogas. E foi aí que Giselle, em especial, encontrou o passatempo para as tardes amareladas que rasgavam a janela do seu quarto. Maconha, cocaína, ecstasy, crack, heroína, lança, ópio, anfetamina, GHB, GLB, PCP, LSD, cogumelos, plantas, líquidos, pós, pílulas, gases; todos ingeridos em quaisquer ocasiões. Despistava os pais para ir comprar mais com as amigas, e, a mesada, trocava por pacotinhos no final da Doca. No fim, pensava naquela fúria urbana e se descobria atrelada a ela, vendendo a alma por um punhado de alucinógenos, comprando, das mãos do seu futuro assassino, uma passagem para a realidade de poucos. E as outras duas... bem, as outras duas estavam lá vendo tudo acontecer. Sempre.

Eram Silveira, Mendes e Vianna. Famílias compostas por doutores, mestres, especialistas e titulados de toda sorte. Freqüentavam os mesmos lugares, encontravam os mesmos amigos e conhecidos e voltavam para casa com a mesma sensação de que a cidade era a mesma bela merda de dois mil anos atrás; uma penca de construções habitadas por uma ou duas famílias que resolveram criar nomes diferentes para si. Eram todos iguais, feudais como a dinastia que tinham orgulho em divulgar nas páginas da Troppo.

Certa vez, descobriram o rock n´roll. A terra do brega repetitivo e dos ritmos pseudo-regionais pseudo-defendidos tinha, enfim, seus sebos, onde se vendiam os clássicos da música européia a preço de banana. Mariana, em especial, gostava de chupar a boceta de Camila ouvindo David Bowie e Joy Division, enquanto Giselle se injetava num canto. Os ídolos de Mariana variavam entre hippies e drogaditos new wave; para ela, era lindo cortar os pulsos no banheiro, que nem a Christiane F. fez na Alemanha e que nem sua mãe fizera dois anos atrás. Sentia-se bem em apagar as luzes da vida com o vício do martírio.

Eram de dar pena, as três. Camilla e seu sexo arrombado, seu vício pelo dinheiro. Giselle e seu olhar lânguido, sua pele ferida pelas agulhas. Mariana e suas tatuagens ridículas, seus pulsos cortados e seus vinis estraçalhados. Era o prazer da autodestruição que reunia-as na mesma rotina transviada. Tudo que a vida lhes revelava no dia a dia era entediante, chato, perturbador e fútil. Acabaram com a repetição a golpes frios.

Camilla é prostituta. Giselle morreu. Mariana é a que vos fala.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Sobre Deus e o Dia das Mães

Havia muito tempo em que não ia à missa. O convite da mãe, porém, me pareceu indiscutível. A bichinha gosta que eu vá na capela com ela. Fazer o quê, né - mãe é mãe, e seja no dia das mães ou nos 364 restantes, elas e Deus podem tudo. Aceitei com um sorriso falso e me apressei, já que a missa era dali a cerca de meia hora e tinha acabado de acordar.

Chegamos. A Igreja estava lotada. Toda a nata belenense disputava lugares à beira do altar, trocava gestos à distância, como que comentando entre si: "Oi, tudo bom? Que legal, você também por aqui!", e coisas do tipo. Enfim, não era hora de me aborrecer com colunismo social. Encontrei alguns amigos, e acenei para eles com a mesma expressão blasé, tendo a certeza de que estavam ali pelo mesmo motivo. Apesar do sono, do calor e da vontade de acender um cigarro, o ambiente estava bem legal. Sou católico, e odeio qualquer manifestação pseudo-agnóstica do tipo "odeio missas" e "não preciso de religião". Na verdade, admiro, e muito, quem tem fé, e queria ter ânimo para ir à Igreja todos os domingos. O problema é que, como diz a minha sábia mamãe, a gente não aprende essas coisas em casa ou na escola. Ser religioso depende única e exclusivamente da nossa índole. Eu, segundo ela, preciso de mais uns anos de reflexão para abraçar de vez o catolicismo. Deus a escute.

Músicas muito bonitas, cartas dos apóstolos da Bíblia - alguém aí arrisca dizer que aquele livro não é genial? - e salmos à parte, chega-se na omilia. O padre, um senhor de uns oitenta anos de idade, simpático e querido pela paróquia local, estava gripado. E aborrecido. A vinda do Papa no Brasil despertara nele uma certa fúria conservadora, do tipo que só faz irritar católicos "frios", como eu. Criticou a torto e a direita a tendência dos religiosos ditos modernos a "liberar tudo", a tirar da Igreja seu caráter de contestação ao pecado do mundo e adequá-la aos moldes dos novos católicos, como se a instituição Dele fosse apenas um bando de tiranos com cruzes e dentes de alho nas mãos.

Porra, eu juro que senti raiva daquele senhorzinho tão gente fina e sábio! Tudo bem, a idade faz com que pessoas como ele tenham um certo asco ao mundo moderno, cheio de contraceptivos, jovens grávidas e casais homossexuais, mas... custa ter um pouco de bom senso? A Igreja está perdendo espaço justamente por ser arcaica, e o primeiro passo para recuperar seus fiéis foi dado pelo Papa João Paulo II, que trouxe um ar mais jovial ao Vaticano e, vá lá, até que abriu um pouco mais a cabeça do alto escalão católico. Mas a bobagem que é fechar os olhos pr´o mundo, assim perdendo gente para "religiões" porras-loucas, ainda é cometida por muitos dos nossos padres e freiras - única comunicação direta que nós temos com a nossa religião. E toda a juventude de Belém que estava ali, na missa de dia das mães de uma Igreja de bairro nobre, ia sair de lá com ainda menos vontade de voltar no domingo seguinte.

Com ou sem a vinda do Papa Bento XVI ao Brasil, nossos sacerdotes não podem tomar partido, e soltar farpas contra tudo e todos diante do altar. Além do mais, lembremos que eles falam a uma audiência potencialmente infinita, meus amigos comunicólogos. Falar mal de gays e mulheres não-virgens só porque a Bíblia de dois mil anos atrás o fala é ser infantil. Não respeitar as diferenças - um Direito Humano, com as letras maiúsculas - não é o papel de um transmissor dos ensinamentos de Cristo. Resmunguei tudo isso baixinho, e a minha mãe até concordou comigo às vezes. Alguns dos jovens presentes deviam pensar no mesmo. Minha mãe é jovem também, oras.

Nos ritos finais, ele tornou a tossir. Levantou as mãos pálidas e, antes de dar a benção final, disse: "Lembrem que, se o mundo é cada dia mais cheio de pecado, a Igreja e seus fiéis têm que ser, a cada dia, mais santos". É, padre, eu concordo plenamente com você. O mundo realmente tem muito a aprender com a fé católica. Mas que tal a outra mão do fluxo também existir, e a Igreja saber respeitar a mentalidade e os costumes do novo milênio? Juro que ninguém vai sair machucado, ou vai perder os seus princípios; varrer a poeira, às vezes, cai bem. Saí da missa de bom humor, abraçado com a minha mãe, satisfeito por ter acompanhado ela à Igreja. Elas, assim como Deus, podem tudo. E nós, pobres mortais, devemos seguir nossa vida ouvindo os dois e aprendendo com eles. Eles são os mais sábios, oras.

domingo, 6 de maio de 2007

Clipping Papa-Chibé

Meu gato vira-lata dorme em cima do Diário Polícia. Todos os dias, limpo o cocô que ele faz na caixinha de areia e troco os seus jornais. Invariavelmente, os classificados ficam em cima do pote de comida e o caderno policial, na caixa de sapatos que faz as vezes de cama.

Todos os dias, minha secretária pega o jornal da cama do gato e dá uma lida, pra saber quantos amigos dela morreram na semana passada. Eu já me cansei de implicar com seus hábitos, ela diz que é por segurança própria que lê todo aquele lixo. E eu, eu só faço engolir em seco e compro o jornal de novo.

Meu cachorro não é tão educado. Ele tem um quarto que é só dele, cheio de jornais da semana passada pincelados de xixi e merda. A cara da governadora está estampada embaixo do saco de ração, junto com o Bernardino e todos os badalados de Belém. E eu, eu só queria ter saco para ler as mesmas coisas todo dia, e não desperdiçar papel e dinheiro em novas edições de mesmo conteúdo.

Todos os dias, eu acordo e fumo um cigarro. Enquanto engulo uma xícara amarga de café preto, leio o Magazine e o Caderno D, procurando algo pra fazer nos fins de semana. Descubro que não, não há nada pra fazer nos fins de semana. Saio de casa, fumo uma carteira e bebo uma grade. Volto às duas da manhã. E, bêbado e entediado, troco o jornal dos bichos enquanto preparo a cama pra dormir.

Minha família é ótima. Minha mãe é uma pessoa culta, educada. Já foi assaltada no meio da Rui Barbosa, e reagiu. Milagrosamente, não virou matéria de capa, com uma tarja preta no rosto estourado. Deu uma cabeçada no pivete e fugiu. E eu, eu só faço ligar os pontos e entender por quê certas publicações “fazem a cabeça” da bella villa belenense. E dou graças a Deus por ela – a minha mãe – estar viva.

Todos os dias, eu acordo e durmo com a mesma sensação de que tudo se repete. O jornalismo brasileiro serve de penico para animais domésticos; os homens, assim como os bichos, cagam para tudo e levam suas vidas à base das necessidades primais. E eu, eu só faço engolir tudo em seco... e compro o jornal de novo.

Decepções à parte, jornalismo é jornalismo, né... o jeito é dar o fora daqui o quanto antes.