sábado, 20 de outubro de 2007

Ensuite

Sentia raiva da inocência daquele menino. A pequenez de suas atitudes, sempre tomadas a esmo, com notável boa intenção; seu olhar distante, porém sempre belo, frágil, como se aguardasse emergir de algum fosso lamacento. Sempre uma criança... já passados doze anos.

Às vezes pôs palavras em sua boca. Quando lhe faziam perguntas, prontamente as respondia sem qualquer pudor. "Sim, ele é especial". "Não, ele não está entendendo o que vocês falam". "É, ele ainda tem alguma chance de melhorar". "A gente sempre leva ele ao médico". "Os remédios estimulam o cérebro". Júlia ficava calada, bebericando o uísque de Márcio discretamente, enquanto ele se preocupava em - sempre - explicar as coisas para os convidados. Luiz assistia ao desenho do canal por assinatura.

Para Júlia, aquela criança era um castigo abençoado. Amava Luiz mais do que qualquer coisa no mundo - Deus sabia -, mas era inegável que se sentia impotente e frustrada pelo filho. Seus amigos, vendo do ângulo de uma jovem mãe de trinta e poucos anos, pareciam tão felizes com seus meninos sadios, inteligentes, futuros universitários, pais de família, comedores de menininas, coisa e tal... mas, ao contrário de Márcio, não via Luiz como um atraso em sua vida, e sim como chance de fazê-la um pouco menos fútil. A cada passo que dava, tinha isso em mente.

Liege, porém, via o menino com outros olhos. Sentia ódio daquele patrão filho da puta, que o desdenhava desde o café-da-manhã até a hora de deitar-se. Depois de deitar, pensava ela, transformava-o em um troféu. Maldito homem. Lembrava do dia do casamento de Júlia, sua patroa desde a juventude, as duas sentadas na recepção, já meio bêbadas. Júlia tinha tantos planos.

- Liege, vais comigo para a minha nova casa, né?
- Ah, doutora, se a sua mãe deixar, claro que eu vou... quero ver seu filhinho nascer, vai ser lindo! Loiro como os avós...
- E o Márcio ainda vai emprestar aqueles olhos verdes, aquele jeito meio machão, meio sensível... Vamos ser uma família feliz, não é?
- Claro, doutora!

Dez anos, porém, foram o suficiente para o filho especial e o marido alcóolatra lhe revelarem o possível inferno da vida de empregada em uma família infeliz. Não fosse por Júlia, já haveria entregado os pontos e voltsdo para a casa dos avós de Luiz. Acima de tudo, não fosse por ele... sentia tanta pena, mas tanta pena daquela criança que não via a rua, que não namorava, que nem sequer pegava nas mãos de uma coleguinha de sala. Liege meio que guardava aquela pena dentro de si, tentava transparecer euforia quando brincava com Luiz. Mal sabiam os pais, os patrões, que um dos únicos sorrisos que a criança já havia esboçado tinha sido para ela. Naquela mesma noite... olhando os carros passarem na rua, lá da janela da cozinha.

- Liege, traz mais uma garrafa de Uísque pros convidados!

Luiz, por enquanto, assistia à tevê - desta vez, um documentário sobre formas de educação especial que Júlia encontrou num canal educativo e agora assistia, esperançosa, bebericando discretamente do copo do marido. Liege deixou o menino por um instante, foi à cozinha e abriu mais uma garrafa, sabendo muito, muito bem o que aconteceria dali a duas horas. Serviu os convidados, copo por copo, e tirou Luiz da beira da janela.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Unplugged

Júlia acordou, vestiu-se e saiu de casa correndo, como de costume. Márcio a seguiu até a porta, pegou dinheiro e voltou para o quarto. Luiz estava tomando café, e via todo mundo sair de casa sabendo que nunca o faria. Olhou pela janela, e lá estavam as árvores e prédios. Sentia fome. Liege fez o nescau aguado de sempre para o menino.

Júlia chegou no trabalho e se trancafiou em uma reunião. Márcio acordou na hora do intervalo de almoço da esposa. Luiz assistia os desenhos animados da Globo, e, quando acabaram, engatou o choro. Liege chamou Márcio e os dois o calaram à força. Sob ameaças, Luiz foi para o quarto, ligou a tevê e colocou nos desenhos dos canais fechados. E deu risadas até o pai ficar bêbado.

Quando Júlia saiu do trabalho, pensou: vou levar alguma coisa para o meu menino. Comprou uma barra de chocolate da Hershey´s, daquelas bem baratinhas e gostosas, para Luiz. Chocolate o fazia ficar mais esperto, reavivava os neurônios já envelhecidos. Ao voltar para o prédio, porém, sentiu uma dor forte no peito. Encostou-se nas paredes da escada que subia todos os dias, forçou a vista que já escurecia, e subiu, a mão no seio esquerdo e a certeza de que algo corria muito, muito errado.

A casa estava a mesma coisa de antes. As taças e cristais da sala estavam cheirando a uísque. Liege limpava o vômito de Márcio na sala, a baba de Luiz do carpete, cantarolando a música nova do Calypso com um Derby em mãos. O cheiro de cigarro dava um tom meio etéreo àquela sala. Júlia havia construído a família há uns dez anos, e veja só - tudo se resumia, agora, em fracasso.

Já tonta e sentindo o ar lhe faltando, Júlia abriu a porta do quarto do menino e lá os viu, deitados. Como sempre. A criança que não crescia, o homem que a mantinha dentro de si. E a mulher que guardava segredos na intimidade. Apagou a luz, beijou os dois no rosto e foi deitar-se no outro quarto.