sexta-feira, 30 de novembro de 2007

No dia em que os ameaçadores abalos sísmicos caribenhos chegaram ao coração da Amazônia,

O marido dormia, quietinho, no lado esquerdo da cama. A mulher lia um livro poeirento, lutando para enxergar as letrinhas miúdas no papel encardido. No quarto ao lado, um dos filhos jogava videogame, o outro se masturbava no banheiro e a filha mais velha falava ao telefone. A empregada fazia o café na cozinha. Alguém tinha esquecido o som da sala ligado; tocava algumas daquelas músicas vespertinas da Diário FM, que parecem cuspidas de um sintetizador multicolorido europeu. Eram quatro e meia da tarde, o horário de verão, teimosamente, fazia tudo acontecer cedo, mesmo sem quaisquer mudanças no nascer e pôr-do-sol amazônida. O menino do banheiro voltou ao quarto, a irmã saiu do telefone e o videogame do outro desligou. A mãe sentiu um aperto e tacou o livro no chão. O pai despertou num sobressalto.

(...)

Cinco minutos depois, todo mundo na rua, comentando o polêmico acontecido. Montes e montes de gente curiosa comentando entre si, gerando versões, vítimas, escalas de abalo, rachaduras hipotéticas e, claro, a teatralização do desenrolar do, nas palavras de um amigo, "arroto sísmico" que atingira Belém. O pai e a mãe se abraçaram, a irmã mais velha pegou na mão do autêntico nerd - pela primeira vez, provavelmente - e até mesmo o punheteiro achou abrigo, nos braços da empregada calorosa e trêmula. Todo mundo se olhou, trocou olhares de alívio, conversou com a vizinhança que jamais lhes interessou por anos, tratou bem o porteiro. Ao final, houve até uma pequena troca de abraços nojentinhos, apaziguadores, babantes de demagogia.

(...)

Após a devida liberação dos bombeiros, cada um subiu e voltou ao seu apartamento. E, depois de uns segundinhos de união em torno da desgraça, todo mundo retomou a tradicional vida enfadonha. Consultórios, escritórios, gabinetes, apartamentos, lojas, armarinhos, supermercados, shoppings, locadoras, lanchonetes, restaurantes, bares, boates; médicos, secretários, advogados, engenheiros, estudantes, professores, jardineiros, psicólogos, geólogos, historiadores, manobristas, flanelinhas. Até mesmo os jornais, daqui a alguns dias. A cidade se manteve de pé, nenhum prédio caiu. Mas aquela família não. No dia seguinte, metade fugiu de casa e a outra metade foi morar com os avós. Só o pai, que estava de viagem há semanas, voltou a pisar no apartamento duplex na Doca. Alguém deve ter pirado com a estranha ameaça ambiental em plenas terras tupiniquins...

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Trois


Três tragos de cigarro. Foi a medida exata para saber a hora de entrar no quarto à vontade. O marido a esperava, deitado na cama, com um copo de uísque e um cigarro, ambos no fim, vendo distraidamente aquele programa do Serginho Groisman que passa nas madrugadas de sábado. Era sempre a mesma coisa: ela pedia, implorava para que ele não fumasse no quarto, o cheiro pegava nas roupas, forçava-a a inalar aquele monte de substâncias tóxias - quantas são mesmo? 1700? -, lhe tirava o sono e a pouca paz que restava no fim de semana. Era uma noite quente, então nem dava para desligar o ar-condicionado.

Ao deitar-se com o marido, ele logo retrucou: tás do lado errado da cama. Trocou de lugar com ele e buscou o livro que estava lendo na mesinha de cabeceira. Nunca Esqueça dos Seus Sonhos ou algo assim, coisa do sempre oportuno Augusto Cury. Vinha sendo uma mão na roda nesses últimos seis meses, o cara: seus livros pareciam uma espécie de contra-indicação para tudo o que ela vivenciava, o que lhe conferia um papel iluminador em sua vida. Umas dez páginas de livro depois, olhou para o lado, e o marido continuava lá, olhos vidrados no programa de tevê; o cigarro já apagado no cinzeiro e o gelo derretendo no copo. Estava inerte, e assim podia vê-lo sem quaisquer disfarces cotidianos. Barrigudo, mal-cuidado, barba por fazer, bêbado, cheirando a suor e, o pior de tudo, de cueca, nos seus lençóis novinhos em folha. De qualquer forma, a última coisa que faria seria reclamar.

- Márcio, sabes se a Liege comprou coisa pro café da manhã?

Silêncio. É um saco quando você tenta falar com alguém, e sabe que esse alguém está ouvindo, mas finge não o estar, ou por preguiça de responder, ou na tentativa de impor superioridade, ou os dois. Júlia, contendo a raiva e o nojo daquele homem prepotente, repetiu:

- Márcio, a Liege comprou coisa pro café?

Dessa vez, ouviu apenas buzinas que ressoavam nove andares abaixo, o que conferiu inigualável ar blasé ao quarto. Já não bastava que ele a ignorasse diante dos amigos, de Liege e até mesmo do filho? Custava, ao menos ali, na intimidade de uma cama de casal, corresponder à sua dúvida funcional com um simples aceno de cabeça? Estava de saco cheio, mais do que ele, com aquele livro otimista em mãos e aquela vida imbecil, e ele não imaginava o quanto. Tinha uma vontade imensa de jogar tudo no lixo, o filho retardado, o marido bêbado, a empregada confidente, o trabalho e os amigos. Podia trocar tudo aquilo por uma taça de vinho - sim, uma taça de vinho! Se ele pode beber, eu também, pensou, levantando de súbito rumo à cozinha, para pegar o Cabernet mais caro que Márcio havia comprado.

Liege via tevê com Luiz no quarto ao lado; passou direto, ignorando o olhar vago da criança à porta, momentaneamente ditraída com o movimento no corredor. Abriu a adega e, sorrindo para si mesma e para seu ato íntimo de libertação, encheu uma bela taça de cristal com o tinto especial. Pegou, também, alguns pedaços de queijo, presunto e azeitona que haviam sobrado do jantar, levando-os ao quarto de hóspedes. O canal de filmes da tevê a cabo apresentava algum novo clássico cult, daqueles que adorava ver em companhia das amigas de faculdade; vinho em mãos, cigarro aceso com as janelas escancaradas, pegou o maior porre de sua vida desde que havia passado no vestibular.

No quarto ao lado, sob os efeitos da forte bebida, acometido por uma silenciosa dor, que o impedira de falar ou mover-se, Márcio morreu aos poucos, ao som de buzinas de carro e de uma pequena sucessão de gemidos roucos. Deixou de respirar enquanto Júlia dava o terceiro trago de seu cigarro no quarto vizinho.