sábado, 22 de dezembro de 2007

Choix

Hoje ele quis dizer o quanto os amava: as pessoas, as grandes e pequenas coisas, a vida como um todo, as paredes, os amigos. Mas não, os remédios não permitiam. Havia meses não falava coisa com coisa. Ao menos, assim acreditava-se lá fora – que sua capacidade natural de comunicar e apreender fora comprometida, ela a última de várias outras, como andar, sentir dor, fazer sexo, escutar. Era um ciclo que, sabia, o aproximava de mais uma grande reviravolta. E, doloroso aceitar ou não, ia vivenciar tudo aquilo sozinho, falando consigo mesmo e tentando, em vão, extrapolar as entranhas de seu cérebro e o limiar da tal inconsciência.

Ao contrário do que pensavam, ele sentia o ar frio lhe tocando a pele – aquela porcaria de frio que afeta a todos os moribundos; o tato dos outros a senti-lo, penoso e quente; o cheiro da carne alheia, vívida e pulsante, como foi a sua em outros tempos. Outro pêlo se arrepiava por baixo dos lençóis grossos, e impossível era cobri-lo mais do que já estava, afundado entre edredons e travesseiros. Que lugar frio! A parede do quarto – ou seria sala –, era azul – ou seria verde –, e pouco faziam os olhos diferença entre aquelas sutis tonalidades que se mesclavam diante de seus olhos. Mas é impressionante, pensou consigo, como estes são capazes de observar melhor as coisas quando elas são o que lhes resta enxergar. Pois aquele pedaço de parede, aquele muro fosco que lhe limitava a vista, era a única coisa que enxergava há semanas – ou seriam meses –, e, sabe-se lá porquê, já havia sido retocado um monte de vezes. Seus olhos como que conheciam cada centímetro dele.

Ele quis, ontem, dizer à esposa que preferia quando a parede tinha aquela pequena infiltração indesejada próxima ao canto direito, mas não. Os remédios não permitiram. Alguém fez o favor de retocar o único traço de naturalidade daquele quarto politicamente correto, sepulcral e plástico como um dormitório de motel. Enfim, aquela paredinha, infiltrada ou não, servia-lhe para refrescar a memória quando os medicamentos tolhiam-na de quaisquer arroubos no pretérito. A cada vez que despertava e sentia os tubinhos lhe limparem das necessidades fisiológicas, estava ela lá, como que espelhando sua rotina diária, a previsão do tempo e o que o dia lhe esperava. A cada vez que ia dormir, dopado e só na claridade constante do recinto, estava ela lá, como que lhe resumindo as atividades do mesmo dia. Nele, azul – ou verde. Quarto – ou sala. E, claro, a incomunicabilidade, pois os que dessa se serviam sabiam estar em um abismo de torpor e ócio.

A princípio, porém, adorava sentir-se isolado. O próprio homem natural, que fora desmentido pela ciência e pela modernidade. Havia um quê de misterioso naquele silêncio, algo de humor negro em ver aquele monte de gente chorando e sacudindo seu corpo sem ter qualquer resposta senão o pulsar do coração debilitado e a umidificação natural das pupilas. Mas, como tudo que é rotineiro converte-se em castigo, logo passou a buscar estímulos no mundo externo. Estes não o faltavam – os filhos liam livros à beira da cama, a esposa contava o desenrolar da papelada da venda da casa –, mas como respondê-los? Certa vez, quase emitiu um som ao ver o médico entrar no recinto. Mas não. Os remédios não permitiram. Chegou à conclusão de que, sim, o silêncio dizia tudo, para ele e para quem estava do lado de fora. Estava morrendo, só não sabiam que ele o sabia.

Outro aspecto daquele fim de vida era que, não importando a gravidade do ocorrido, sempre que sentia algo de diferente, convertia-o em agradável surpresa. Mesmo faltar-lhe o ar era um alívio. Alívio, pois aquilo era uma prova, mesmo que escassa, de sua quase existência – as pessoas cercavam-no, enchiam seu corpo de pequenos fluidos, e vinha, de novo, o êxtase, o entorpecimento terapêutico permitido pelos manuais modernos de medicina. Aqueles segundos de drama traziam à beira da cama não só médicos, mas a esposa, os filhos, os amigos que porventura visitassem-no àquele momento. O azul tornava-se uma profusão de roupas, que mudavam conforme a estação, de cores, cheiros e olhares distintos. E, de repente, sentia saudade de sua própria solidão – melhor estar a sós com sua morte do que compartilhá-la com o pesar alheio.

Lembrou-se que, certa vez, sua mulher correu da porta do banheiro, nua, ao ouvir os gemidos fracos saírem do corpo inerte. Era a falta de ar. Ele a viu daquele jeito, afoita, pressionar-lhe o peito e forçar algumas pequenas pílulas goela abaixo. Mesmo com a eminência do torpor, deu conta de que os seios enrijecidos e a pele morena já não despertavam qualquer libido em seu corpo e mente. Seria, de fato, a impotência, manifesta mesmo diante de belas manifestações de vida como o corpo desnudo de uma fêmea? Não sabe. Só sabe que, a partir dali, passou a gemer cada vez mais baixinho, talvez para não reencontrar aquele ser platônico novamente. E, cada vez mais, passou a experimentar e fruir de mais alguns segundos de sofrimento a sós. Pena que não conseguia sentir qualquer dor física para acompanhá-lo.

Não só hoje, como várias outras vezes, ele quis que alguém lhe desse um soco. Ao invés daquele monte de remédios, daquelas expressões frustradas diante do homem que tirava-lhes a noite e os salários da casa, gostaria tanto de ver uma manifestação sincera do que pareciam sentir dentro de si! Sempre compartilhou daquela velha mentalidade estampada nos rostos da casa, a de que idosos e inválidos são como produtos fora do prazo de validade. Sim, pois, antes daquele certo dia, podia vangloriar-se de ser um homem honrável, dominador, dono de si e do mundo. Agora, vivia enfurnado em um quarto azul – ou seria verde? –, cagando e mijando por um tubo, ansioso para que alguma coisa de útil lhe acontecesse. Mais do que vergonhoso, aquilo era algo triste.

Das poucas coisas que conseguiu guardar na memória após anos de definhamento induzido, podia construir, pouco a pouco, o que o levara àquele ponto. O carro acelerando, as marchas sendo trocadas por outras mãos, um cada vez mais distante sentimento de culpa... e aquele homem, ao seu lado, aguardando, ansiosamente, para que chegassem ao destino. Havia decidido tudo às pressas, mal arrumou direito suas coisas. Aquele final de semana seria crucial para que fizesse sua escolha, descobrisse o que, afinal, lhe valia a pena para o resto da vida. Uma mulher, filhos, estabilidade, emprego garantido, respeito, fotos em colunas sociais, festas, décimo terceiro salário – ou, então, a incerteza diária, a paixonite, a casa alugada e o viver pelo viver.

Quando conhecera aquele homem, não sabia exatamente porquê, mas sentia-se insatisfeito. Ele passava, todos os dias, pelo corredor à frente da sua sala no trabalho, da mesma forma que a mulher, agora, passava com os medicamentos à frente da parede azul – agora, sabe-se lá como, havia conseguido distinguir a cor, era azul mesmo. Depois de algum tempo, passou a entrar lá e gastar alguns minutos de conversa trivial. Alguns meses depois, mantiveram relações sexuais. Passaram a se encontrar nos fins de semana à noite, quando o escritório deixava-lhes de plantão nas ruas. Ele, o homem, também era casado, e das esposas ambos deleitavam-se em bemdizer, eram as melhores mulheres do mundo, inexoravelmente companheiras, trabalhadoras, dedicadas, compreensivas... mas, na hora em que o desejo deveria reger alguns dos mais institivos movimentos corporais, havia algo de enfadonho naquele corpo liso, doce e indefeso. E, assim, ele e o homem passaram a nutrir uma grande paixão um pelo outro, calcada na mesma sensação de completude que tinham com um semelhante.

De volta àquela viagem de carro, ele recorda que o homem passara boa parte do caminho para as casas de campo olhando pela janela. Era estranho, raramente não gastava sua saliva falando bobagens, divagando sobre a existência e sobre a sexualidade alheia. De súbito, então, veio-lhe a notícia, no meio de uma curva fechada de quarta marcha:

– Eu tenho AIDS.

Daí em diante, poucas coisas lhe vêm à tona; somente gritos, muitos gritos, uma grande luz surgindo à sua frente, na estrada escura, as mãos balançando no ar, indicadores erguidos em direção ao banco do passageiro, um inútil berro de aviso, descuido nos movimentos de controle da direção do carro, o celular tocando pela enésima vez – era a esposa dele, perguntando se deveria esperá-lo para o jantar –, um grande estrondo e nenhuma dor. Depois, a sala azul. A esposa chorosa, junto com o pesar alheio. Os filhos em torno da cama, lendo os boletins finais da escola. Os tubinhos lhe penetrando os órgãos excretores. A doença que, pouco a pouco, consumia as sobras do acidente. A incomunicabilidade.

Hoje ele se lembrou de tudo e pensou consigo, Vou morrer. Mas não, os remédios não permitiram. Às vezes tudo o que queria era fechar os olhos e passar o resto da eternidade a contemplar o breu de seu remorso, esquecer de tudo pelo que já passou para chegar até aqui, para ver se realmente, nada valeu a pena. Hoje ele queria ter a certeza de que amanhã estaria morto. Mas não. Os remédios não permitirão.

(Inspiração tirada de Philadelphia e tragos de Marlboro Azul, tenham um Feliz Natal e feliz Ano-Novo)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Il n´y a pas...

...poesia, tampouco prosa, nestes versos alinhados, produzidos e metrificados ao sabor do tempo; ou seriam das concordâncias? Em poucas nuances, as muitas instâncias que me levam ao dizer às palavras trazem lembranças. E o verbo, essa verborragia - nas palavras de, quem diria, deixou-se levar a esmo -, esse verbo está cansado de concordâncias e predicados e sujeitos e conectivos, pois esse monte de pequenos sentidos nasce no cruzar de duas letras ou dois sonetos.

Há algo de belo em renegar metalinguagens, mas, dubiamente, sentem-se infelizes os que se entregam a diretrizes, metas e sonhos inconcebíveis de tanto realismo; e sabes que, como eu, há poucos, desses que renegam e abraçam as mesmas coisas, os mesmos discursos ocos de quem sente muito, fala pouco e cospe ainda menos a bagagem que traz no verbo. E o verbo, essa pequena orgia de sentimentos, ações, hipóteses ou atos, ele se mistura ao que nos é substrato, uma tal de realidade, palpável quanto maior o desejo de tocá-la, esganá-la, asfixiá-la, pois real demais é a insatisfação dos poucos que pensam com o muito que vejo.

Homens ou mulheres, jovens ou impotentes, viris ou velhos demais para berrar, roucos ou loucos demais para acreditar em qualquer coisa, não há poesia, tampouco prosa, em dizer o que lhes vem à cabeça; se lhes aspiraram os miolos, e a objetividade fez dos homens uns imbecis, sejam vocês mesmos hostis e reneguem sua própria beleza! Racionalismo, pragmaticismo, evolucionismo, sapiência (maniqueísmo), inteligência, genialidade, praticidade, fraternidade, (vaidade), decência, paciência, altruísmo, confiança (demência); nada disso é, em verdade vos digo, nossa parte - é, antes de existir, demagogia, hipocrisia e - quanta inocência - não vão acreditar; deixem esse arroubo de vida, pulso e ódio lhes atingir e lhes fazer jogar a própria merda de vida no ventilador. Não há verbo, tampouco linguagem; esqueçam o amor, o torpor e a sobriedade,

e, por fim, esqueçam do que constrói vocês mesmos:
arranquem-me os olhos cortem-me a língua.