quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Pequenos retalhos de explicação

Em alguns dias, este blog ia completar dois meses sem um único post novo. Se você se der ao trabalho de olhar no arquivo, logo aqui ao lado, verá que eu odeio mantê-lo parado. Não porque quero alimentar meu ego com toques e mais toques de devaneios e frescuras pseudoliterárias, mas sim porque criei este espaço, basicamente, para ser uma oportunidade de praticar livremente a escrita. E não é que agora, três anos após sua criação, quando finalmente tornei a escrita meu ganha-pão, não tenho tido tempo para sentar e teclar?

Na verdade, escrever, eu tenho escrito. E muito, como nunca antes. Em média, são 8, 10 mil toques por dia. Só que nada livres. São textos que faço no trabalho, para uma quantidade relativamente maior de possíveis leitores, sobre assuntos bem diferentes dos daqui. Coisas do cotidiano da cidade, de cultura ou polícia (extremos, hein?), sobre as quais ainda não tenho muita habilidade para falar. Aí, na hora em que estou livre de quaisquer presilhas, aqui, com toda a liberdade que o blog nos permite, escrevo tenso, com um cigarro entre os dedos e uma pilha de preocupações na mente.

No Redoma, poucas são as vezes em que posso escrever sem outra preocupação na cabeça - no post anterior, da Madonna, por exemplo, estava com uma ingratíssima matéria sobre a Embrapa para terminar. No Poesia para Loucos - em que costumava me perder nas manhãs modorrentas do início da faculdade -, as poesias se tornaram ainda piores e menos inspiradas em relação aos arquivos mais antigos. O Cera de Ouvido, coitado... não fossem as resenhas que publico por lá (depois que elas saem no jornal de domingo), já teria sido desativado pelo Blogger por ócio exacerbado. Enquanto isso, trabalho e ganho meu suado dinheirinho, vivo minha vida quotidiana - mas e aí? Cadê o tal do "ócio criativo"?

Dizem que quanto mais a gente lê (tanto o que outros escrevem quanto a nossa própria produção), mais o texto vai se incrementando, ganhando novas nuances, abordagens e termos. Não vou negar que este ano de trabalho numa redação me ajudou, e muito, a tomar certos cuidados; mas, no quesito leitura e produção paralela, a coisa desandou. Demoro meses para ler um livro - no momento, tento concluir "A misteriosa chama da Rainha Loana", do Umberto Eco, com o qual estou às voltas desde agosto -, raramente consigo tempo para reler minhas matérias e, quando passo por aqui, é só para ver se algum leitor comentou. Resumindo, estou escrevendo que nem um doido, para tudo que é canto, sem sequer saber se estou fazendo as coisas direito. Por isso encontro erros de digitação, grafia e até mesmo gramática no blog, no jornal e nas revistas, meses depois de ter publicado os textos. É complicado.

Enfim, talvez precise organizar mais meu tempo. Ir mais à faculdade, ler mais livros e passar menos tempo vendo "A favorita" e comendo besteira (engordei uns 12 kg desde o início do ano) nas horas quase-livres. Ao mesmo tempo, valorizar mais meu trabalho - que, graças a Deus, tem me dado muito prazer e levantado minha auto-estima, apesar dos eventuais estresses e frustrações - e não vê-lo como um "vilão" à minha atividade de blogueiro meia-boca. Assim, consigo ficar à vontade e escrever com tranqüilidade e tempo para exercitar a auto-crítica.

E chega de reclamar. Afinal de contas, eu e você, leitor, já estamos bem crescidinhos para saber que a vida é assim mesmo: cheia de oscilações, períodos produtivos alternados com fases de auto-questionamento e desânimo. Tudo misturado ao corre-corre do labor e de outras atividades cotidianas. Todo mundo passa por isso: dia desses falava com a minha namorada sobre isso, que vida de adulto é o tipo de coisa que parece incrível vista de longe, mas é um puta desafio quando vivida. Ainda mais quando se tem apenas 19 anos e mal se sabe caminhar com as próprias pernas. Aliás, nem que tivesse 25 anos o saberia... mas enfim, isso é assunto para outro post. Até mês que vem.

domingo, 28 de setembro de 2008

Eu gosto pacas de Madonna. E não sou gay.

Dos dedos dos pés ao último fio de cabelo, Madonna é uma espécie de mito do mercado pop. Mito que, muitas vezes, é visto como um produto comercial "só para mulheres". Homens que eventualmente gostem dela num sentido não-estético, ihhh... logo são vistos como bibas, divas incompreendidas loucas para soltar a franga na parada gay de São Paulo com uma perula loira-amarelada. Eu nunca entendi isto. Sempre gostei de Madonna, e não para saltitar no chuveiro a ouvindo; sempre a vi como uma fonte de boa música, de melodias bem-sacadas e experimentos sonoros geniais e inovadores.

A razão para escrever este relato é simples: estava eu em meu recém-comprado carro, com os vidros baixos e tal, indo pegar minha namorada em casa, numa tarde modorrenta. Por acaso - e como sempre - tinha alguma coisa de Madonna gravada em meu aparelhinho Mp4, que uso para ouvir música no carro, e, logo após uma seqüência de Muse, Ozzy Osbourne e Dream Theater (música pra cabra-macho, disque), começaram a ressoar no carro os tecladinhos cabocos de "Holiday", um hit das antigas de Madonna. Os vidros estavam baixos; havia dezenas de carros passando a meu lado na José Malcher. Num primeiro instante, pensei em trocar de música. Passar rapidamente todo o "Immaculate Collection" (1990), ir direto ao Joy Division. Quase o fiz, mas mudei de idéia e continuei ouvindo até a bateria do aparelho acabar.

É, eu sei. Você deve estar pensando: "Mas que idiotice, essa anta pensou em definir o repertório que ouve no próprio carro só porque tem gente que acha Madonna coisa de mulherzinha?". Foi exatamente o que pensei na hora sobre o que estava pensando - aliás, o que me fez pensar exaustivamente sobre o assunto horas depois, batendo papo com a minha namorada. Concluí que este papo de trocar de música só pode levado a sério por pessoas muito, mas muito preconceituosas; e eu, coitado, que humildemente me considero um dos caras mais compreensivos e mente aberta desta Belém provinciana, não podia fazer coro a essa gente. Gente, aliás, que provavelmente nem estava passando de carro a meu lado naquele momento (sic)...

Vamos explicar por que gosto tanto da Madonna. Meu primeiro contato real com ela - digo real no sentido de já entender alguma coisa de música - foi aos 14 anos, quando liguei na MTV e estava passando um pocket show dela numa bodega no interior dos Estados Unidos. A moça estava lançando seu "American Life" (2002), CD que fez polêmica ao criticar os modos de guerra e certos elementos da cultura norte-americana. Estava em palco sem sua megalomania estética de praxe: eram apenas ela, cantando e tocando violão, e mais dois marmanjos, um no teclado e outro na bateria. Tocavam "Hollywood", e disto me lembro bem, na hora em que aumentei o volume.

Claro que já tinha ouvido aqueles sucessos manjados da Madonna alguma vez na vida; "Like a virgin", "Like a prayer", essas coisas. Mas, quando a música acabou e entrou no VT um breve histórico, com imagens, clipes e sons do início de carreira, dei conta do fenômeno musical que, por mim, passou despercebido. Cacete, Madonna é muito bom!, devo ter exclamado pelas entranhas, lá no sofá da casa do meu pai, numa madrugada tediosa. Daí em diante, comecei a baixar músicas e gravar alguns CDs com coisas dela para ouvir no computador, em casa, mostrar a meus amigos e - agora, que a maturidade chegou - apreciar enquanto enfrento o trânsito caótico de minha terra natal.

Nesss últimos anos, já ouvi muita gente de todas as correntes possíveis. Muitas cantoras, cantores e grupos safos do cenário pop, alternativo, heavy, rock e por aí vai. Mas, acredite, nunca ouvi alguém como Madonna, nunca. Sinto-me até prolixo em elencar algumas das virtudes desta loira gringa, tão conhecida pelo grande público, mas vale sempre lembrar sua inteligência e esperteza - ninguém consegue driblar as dificuldades da indústria fonográfica como ela-, beleza (e não venha me dizer que ela é "plástica" ou algo do tipo) e, claro, sua indiscutível capacidade de fazer qualquer merdinha de três ou quatro acordes e poética minimalista virar um hit mundial. Estas qualidades, confesso, demoraram a ser percebidas por mim quando a conheci - quando ainda era um aspirante a metaleiro acostumado à virtuose e farofice dos ídolos oitentistas do ramo -, mas hoje já consigo entrar em boas e frutíferas discussões ao defender Madonna. Tanto sua figura pessoal - polêmica, controversa, barraqueira, camaleônica, histriônica, multiprofissional, bizarra, até - quanto a musical ganharam um fã de forma progressiva, mas bastante sólida, ao longo dos últimos cinco anos. Ponto para nós dois.

Enfim, voltemos ao debate inicial: por que diabos associar Madonna apenas ao público feminino e gay? Dia desses, li em um artigo na Wikipédia que a loira sempre agradou as mulheres, por representar um arquétipo de modernidade e independência digno de canonização pop. Ok, concordo - nada mais mulher-moderna que abrir as pernas e cantarolar letras sexy em videoclipes e palcos sem medo de ser feliz. Ela, de fato, é um ícone do feminismo contemporâneo; sem exageros, mas nem por isso estático. Por outro lado, há um equívoco bastante comum em intitulá-la "rainha pop dos gays" - hábito adquirido pela grande mídia e pelos próprios homossexuais após o estouro comercial dos anos 1980 e a continuidade nos 90. Parece minimalista dizer isso, mas é verdade: o erro de achar a música de Madonna gay é cometido pela maioria de nós, homens, e pelas mulheres também; pela mídia e pela própria comunidade homossexual, idem.

Os críticos são outros que contribuem para a coisa. Gente influente do ramo chegou a dizer que álbuns como "Erotica" (1993), "Bedtime stories" (1994) e "Confessions on a dance floor" (2005) são trabalhos mais "coloridos", apenas porque apostam em gêneros como disco, pop e dance. O último, por exemplo, é classificado por um jornal respeitável como um disco "previsível, sem inovação, pensado para vender como água, explorando comercialmente o sucesso de Madonna entre os gays - principalmente os balzaquianos que ouviram a 'material girl' nos anos 80 e alimentam a nostalgia de um tempo de inocência, quando pintar os cabelos, colocar tatuagem e vestir roupas rasgadas, pretas e de couro eram sinais de rebeldia juvenil (...)" (veja o texto completo aqui). Veja só, isso foi escrito por um crítico das antigas, entendido da coisa; imagine o que é dito por aí em papos de mesa de bar...

Além de pejorativa, por associar os homossexuais apenas à música pop - como se eles não pudessem apreciar outros gêneros musicais além deste, supostamente mais "colorido"... meu Deus! - , essa perspectiva acaba por limitar tanto artista quanto público, moldando-os conforme a dança e os interesses de poucos. Conversando e lendo o que muita gente escreve virtualmente por aí, já consegui relatos interessantes, desde aquele papo da mulher que jamais sairia com um cara que gostasse de Madonna e Michael Jackson, ou do cara que nunca tentou ouvir a diva por achá-la "coisa de viado". Em contrapartida, o Orkut tem algumas comunidades do tipo "Sou gay e não gosto de Madonna", "Não sou gay e gosto de Madonna" - ou seja, o que se vê é que o preconceito e a revolta quanto à existência dele existem, sim, e de tudo o que é lado. Os gays não agüentam mais ser rotulados conforme a biba colorida da parada que citei lá em cima; da mesma forma, os homens querem gostar de Madonna sem ter de ouvi-la no quarto, com a luz apagada e sem nenhum amigo que vá sacaneá-lo por perto.

Vamos ao básico: o que há de essencialmente gay ou feminino em "Like a virgin", "Borderline", "Open your heart", "La isla bonita", "Ray of light", "Something to remember", "Substitute for love", "Fever", "Take a bow", "Music", "Candy shop", "Hollywood", "Nobody knows me", "Human nature" e tantas outras canções bacanas de Madonna? As letras, a melodia dançante, são de música de "mulherzinha"? Se você acha que sim, é a mesma coisa que dizer que as clássicas do Guns n´Roses, do Iron Maiden e do Dream Theater são "coisa de homem ou de sapatão" - ou seja, idiotice.

Música não é feita de hormônios, e sim de impressões, de sentimentos alheios a coisas como orientação sexual e rótulos estéticos. Admirar o trabalho de artistas, também - por isso, não levantei o vidro naquele dia. Ouvi o CD até a bateria do Mp4 acabar, e feliz da vida (dirigir ao som de "Live to tell", por sinal, é do caralho, experimentem!), por sinal. Discos como "Ray of light" (1997) - o melhor dela, em minha opinião -, "American Life", "True Blue" (1986) e "Confessions..." são verdadeiras obras-primas da música pop, assim como os de astros do rock e do underground, e merecem estar sempre presentes em nossa vida repleta de apetrechos e trambolhos eletrônicos.

Meu recado (com ares de intimação) aos homens como eu: nunca, nunca deixem de curtir Madonna. Ela é bonitona, gostosona, sim, mas é também uma grande cantora. Dirijam, comam, passeiem, transem e façam cocô e xixi ao som dela - sua mulher e/ou acompanhante, ou mesmo seus amigos, não vão reclamar, principalmente se houver bom senso na relação amorosa/de amizade. Nossos ouvidos testosteronados merecem ouvir em paz aquela vozinha metálica (ultimamente, mais contida e técnica) e sexy que embalou os anos 1980 e permanece, até hoje, atual e infalível. E, quer saber de outra? Acho que ela ia ficar muito feliz se o fizéssemos todos juntos - até porque, como bom produto revoltado da grande mídia que é, Madonna detesta ser associada a qualquer tipo de rótulo. Isso transborda na música, nas atitudes dela. Portanto, além de homens, machos, seguros de si mesmos, seríamos bons fãs ao cagar e andar para o preconceito, imbecilidade e provincianismo alheios. Não só em Belém, mas em qualquer canto do mundo, ouvir Madonna de janela aberta é uma espécie de ato simbólico de transgressão saudável - e, como tal, nos reveste de certo sentimento de orgulho, sagacidade e inteligência. Experimentem e comprovem!

domingo, 20 de julho de 2008

Someday, for old times´ sake


Memória auditiva é um negócio bem legal. Dia desses estava comentando isso com alguns amigos, e cheguei à conclusão de que ah, havia de existir alguma música que brincasse com a metalinguagem e falasse, exatamente, disso. Bom, há uma penca de músicas que falam de nostalgia, saudade e coisas do tipo, então tive de apertar o filtro: que tal, então, uma musiquinha inocente, que tivesse melodia, letra e interpretação - tudo, enfim, da "cabeça" aos "pés" - focalizadas na nostalgia auditiva? Foi fácil: pensei na primeira música que me faz pensar em pensamentos antigos sobre música. Parece complicado, mas tudo isso me levou à música "Someday", dos Strokes.

Esqueça as blusinhas listradas, o hype, o Casablancas e seu ar pseudobêbado nova-iorquino e tudo o mais - concentre-se na música. Se você tentar pôr "Someday" no Google, verá, também, uma música do Nickelback. Esqueça, estou falando da homônima, mas dos Strokes. Os "bivôs" do indie (sim, vovô é o Franz Ferdinand), mas que, de fato, fazem um som muito gostoso de ouvir. Até hoje, o "Is this it?" é meu CD de cabeceira. Só ele. Até gosto dos outros, mas esse é o mais espontâneo, bobinho, sujo. E é isso que lembra a minha adolescência - e, por extensão, minha cultura musical à época. E faz reluzir a tal da memória auditiva nos fones de um recém-comprado aparelho de MP3.

Estava em Salinas, a trabalho, cobrindo um monte de eventos, acontecimentos policiais, enfim, tudo o que um repórter inexperiente e estranhamente escalado aos grandes fardos estremece ao ver à frente. Estava deitado no carro do jornal, voltando da praia, e, do nada, essa musiquinha me veio à mente. Estava conversando com um amigo dos tempos de 14, 15 anos de idade, e lembramos da primeira vez em que me apresentei com uma banda. Era guitarrista e vocalista, tinha, na minha Fender Stratocaster ultra-adulterada comprada a 600 reais num buraco, o caminho para um suposto auto-conhecimento artístico - e, à época daquele showzinho, eu, meu amigo lá da praia e outros dois grandes amigos vivíamos os melhores dias de nossa vida musical.

"Someday". Foi um monte de ensaios. Havia quem achasse mais apropriado tocar outra, afinal, o repertório tinha uma do Beatles, uma dos Stones, outra do Oasis (a meu pedido) e... The Strokes. A tal bandinha do hype. Mas ah, esqueçamos o hype, devo ter falado à porta de algum dos estúdios nos quais ensaiávamos, após fazer uma insuportável prova de Química no colégio Nazaré. Eles são bons, cara, bora tocar eles!, sempre enfatizava. Tocamos. Minhas pernas tremiam, meus dedos, minha voz, estava todo repleto de nervosismo. Mas, quando subimos nós quatro ao palco e começou o show - abrimos com "Someday" -, todo mundo olhou diferente.

O começo da música é gostoso, doce. Uma seqüência até meio óbvia de Lá - Si Menor - Ré - Lá, acompanhada de um riff agudo e um baixo quadrado, uma batida bem 60´s, duas voltas e entra o vocal "fofinho", mas bebum, do Casablancas. Uma letra saudosa ("In many ways you´ll miss the good old days/ someday, someday/ yeah, it hurts to say, but i want you to stay/ sometimes, sometimes"), refrão bem simples. E aí tudo volta, com uma leve pausa e um duo de bateria e do baixo que funciona bem ao vivo. Não sei por quê, pensava, essa música tem algo de especial. Algo que me refrescava os sentidos, algo que adorava sentir quando estava bêbado, quando estava chapado, com sono, puto, cansado, até me masturbando ou pensando na vida. Ouvi ela, a música, incessantemente, por meses e meses e, de repente, parei.

Tudo isso coincidiu com uma horrível nota 3,5 que tirei em Matemática, com a época em que parei (pela primeira vez) de fumar, com a época em que eu e aqueles inesquecíveis amigos nos separamos pelos motivos mais sérios e banais possíveis - um deles, do qual era mais próximo, viajou, e fiquei meio que sem um amigo com quem dividir tudo por um bom tempo - mas, agora, nessa última semana, tudo voltou à tona na minha cabeça. Mas voltou com um prazer maravilhoso, não com aquela tristeza insuportável que nos acomete quando algo faltou acontecer.

Sei lá. Tanta coisa mudou, todo mundo seguiu caminhos distintos, minhas companhias, minha vida virou de cabeça para cima (?). Continuo um pouco acima do peso, continuo preguiçoso, instintivo, impulsivo, claustrofóbico, ainda tenho épocas certas de escrever e outras de ler (não leio um livro há meses), mas certamente mudei de algum jeito. "Someday" não. Ela voltou ao meu MP3 e ao meu bate-papo com as melodias inabaladas - tudo a partir de um bate-papo com um velho amigo na praia, como que para me lembrar de tudo, desde aquele show até o dia em que passei no vestibular. Em que entrei em um estágio legal. No qual fui contratado. Devido ao qual viajei para Salinas faz uns dias.

Voltemos à memória auditiva. Por que, para mim, "Someday", até hoje, representa essa época em que tudo o que queria era ter uma boa banda e adulterar meus boletins? Porque ela é simples, gostosa, saborosa aos ouvidos e à voz - desce e sobe a garganta com facilidade, não exige grandes instrumentistas e cantores para se fazer ouvida sob outra roupagem. Qualquer roupa ou guitarra vagabunda lhe cai bem. Como a juventude, como nós àquela época, bobos, fáceis de conviver, simples. Diferentes sob um viés mais, digamos extrínseco (essa palavra existe?) e apegado à cronologia natural das fases mentais.

O por quê deste pequeno grande devaneio, ainda estou por descobrir. O por quê do flashback não-intencional, do rompante de memória auditiva em meio a uma tarde quente, insuportavelmente quente e cansativa, tarde/noite de trabalho, também nunca vou saber. Só sei que estava interessado em atualizar este blog o quanto antes, por algum motivo que hemos de descobrir, eu e você, um dia. Talvez porque ele seja o caminho, em letras, aos meus frágeis tempos cósmico-poéticos (o arquivo está aí ao lado, é só clicar), talvez porque simplesmente o quisesse, talvez porque simplesmente "Someday" seja uma música a ser explicada e lembrada pelo resto de minha vida, por mim, por minha esposa e meus filhos. Por meus amigos, também, só de ouvi-la hei de lembrar deles. Simples assim.

Tudo isso veio em cerca de dez minutos de digitação rápida e institiva. Deu para ouvir "Someday", neste meio tempo, três vezes e meia. A memória auditiva - essa, sim - deve perdurar por mais um tempinho aqui. E eu agradeço por tê-la a meu lado todos os dias. Não importando onde/como/quando eu esteja. É meu know-how interno.


(Quanto à foto, juro que não há nada de simbologias ou alusões. Foi a primeira não-ligada a outras coisas quando digitei no Google... adivinhe?)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Por que odiar Belém? (Parte I)


Prefácio: Um pouquinho de história

Hoje, cheguei à conclusão de que Belém é uma cidade fadada ao fracasso. Calma, antes que os ferrenhos defensores da Cidade Morena, das Mangueiras, da Chuva das Duas, do Carimbó, do Ver-o-Pêso, do Vatapá, do Pato no Tucupi e do diabo a quatro, venham me atacar com cruz e alho, deixemos uma coisa clara: eu já pensei muito antes de chegar a esta conclusão. O problema é que, como veremos adiante, pensar não é uma coisa lá muito belenense – mais difícil, ainda, é que os belenenses compreendam o pensamento de quem pensou por eles, sobre eles e para eles. Parece preconceito, pretensão? Vocês ainda não viram nada...

Primeiramente, vamos a nosso objeto de estudo: nossa cidade, esta metrópole de 1,5 milhão de habitantes, natureza farta e clima ultra-tropical. Fundada em 1616, situada em posição política e geográfica estratégica aos portugueses, foi, como todos os demais centros de atividade colonizadora, convertida de aldeia aborígine em cidade Barroca num piscar de olhos. À eterna sombra das bellas villas européias, foi administrada por algumas pessoas meio deslumbradas (uns mais lunáticos do que visionários, é verdade, mas todos levemente desorientados), e, à força, ganhou cara de cidade grande.

O começo se deu na chamada Cidade Velha (termo engraçado, nunca vi um local ter o nome de ‘velho’ e, de fato, parecer tão velho), onde os portugueses nojentos dividiam seu tempo entre traçar índias e dar ordens a seus “súditos”. Mandaram levantar um monte de igrejas por aqui, impuseram o cristianismo como quem manda o filho escovar os dentes de manhã (nada contra a crença em si, sou católico), e começaram a extrair recursos naturais e vender lá fora a preço de ouro. Ou seja: a coisa já começara a feder.

O sexo, a bebida e a completa falta de instrução/ educação dos portugueses (e não dos índios, coitados, que podiam dar aulas de bons modos àqueles broncos) fez com que, rapidamente, uma sociedade mestiça ascendesse entre o monte de mato, água e barracos fétidos que era a Belém do período colonial: nosso povo começava a se constituir, junto ao de demais regiões como Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Apesar da desgraça, tínhamos tudo para crescer bem: éramos um povo sorridente, que sabia se expressar e detinha uma das terras mais abençoadas do mundo. Mas tudo desandou, em algum ponto da história que economistas, sociólogos e antropólogos da região devem saber delimitar melhor do que eu.

Enfim, o tempo passou, e a tal região do Grão-Pará começou a ficar para trás. Quando a colônia viu que, aqui, não tinha muita coisa para explorar, começou a se dar a colonização por terra rumo ao interior do Brasil. Lá, acharam coisas legais. Descobriram que os 37 graus à sombra de Belém eram facilmente esquecidos nas cidades frias do Sudeste, e que lá, de quebra, ainda havia uma boa concentração de gente, serviços e novidades vindas da Europa junto com a família (ir)real portuguesa. Mas e daí, se aqui estávamos na Amazônia, local belo, frutífero, maravilhoso e exótico? Daí que, à luz da decadência do escravagismo e do colonialismo pós-feudal no Ocidente, os portugas queriam modernidade, luz (para ficar num termo iluminista), progresso. E, se havia um lugar longe dessa frescurada toda não chegava, era aqui, na nossa fascinante ilha urbanóide em plena selva.

Novamente, repito: estudiosos especializados podem explicar tudo isso melhor do que eu, portanto fiquemos no senso comum. A economia estagnou-se, não havia ciclo exploratório à vista para a região e, claro, os que por aqui ficaram começaram a foder entre si. Foderam, foderam e foderam, e os milhares de proto-belenenses começaram a se multiplicar indefinidamente. Em pouco tempo, já nos aproximávamos da primeira centena de milhares vivendo na linha do equador – enquanto isso, cidades como São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro cuspiam gente, fumaça semi-industrial e avenidas largas para todos os lados.

No início do século XX, os intendentes da geração Antônio Lemos resolveram dar um upgrade na cidade: chutaram os pobres pra longe do Centro, idealizaram Batista Campos (nosso pequeno reduto de bucolismo amazônico-francês) e Nazaré (aquele dos piores decibéis de poluição sonora da cidade), construíram as belas formas de nossas praças e montaram grandes palácios. De quebra, a arquitetura da cidade ganhou toques franceses e estéticas misturebas – por outro lado, o nível de alfabetização dos belenenses estancara, a saúde pública (já) era um caos e, veja só, o povo já demonstrava apatia. Aceitaram a expulsão, aceitaram ir morar em bairrinhos pútridos e lamacentos para ceder espaço à ascendente (ou decadente, dependendo do ponto de vista) burguesia da borracha. Nasciam, aí, os embriões de nossos queridos cenários policiais: Jurunas, Guamá e, falando mais recentemente, Terra Firme, Bengui (vulgo Bengola), Pratinha e Tapanã.

Enfim. Passaram-se dez décadas, um regime militar, alguns governos arbitrários, outros populistas, e chegamos ao seguinte quadro: Belém de IDH positivo, mas à beira do “rebaixamento”, socialmente defasada, cheia de analfabetos (mesmo que funcionais) enclausurada-fechada-alienada à própria cultura, afundada em pobreza, violência e calor (sim, as ilhas de calor dos arranha-céus desproporcionais a uma cidade abaixo do nível do mar tornaram o “inferno” de 30 graus cada vez mais inóspito à humanidade), muito calor. Tudo isso retrata uma cidade que, para ser bem simples e direto, parou no tempo. Ou melhor: uma cidade que é uma merda. Mas isso, claro, é típico de países in development, não é?

Seria. Hoje 100% reconstruída (vocês devem saber que a Belém que temos diante de nossos olhos é produto dos anos 1750 pra cá, né? Tudo que foi construído antes desabou na primeira chuvarada de março), vivendo uma fase, para dar uma de pseudointelectual, pós-moderna, com leves traços de uma belle èpoque rota contrastando com edifícios de 40 andares, crianças e travestis acotovelando-se no centro histórico e moradores da periferia vivenciando 15 ocorrências policiais por dia, Belém é, enfim, o que toda grande cidade do Hemisfério Sul deve ser: uma grande cagada. Mas o que faz de seu caso um caso perdido – principalmente, o que me faz odiá-la, mais do ter nascido aqui, ter sido criado aqui, estudar, comer, dormir, mijar e cagar aqui, não é fazer parte de sua desigualdade latente, seu atraso estrutural, sua falta de oportunidades de crescimento econômico, pedagógico e cultural; enfim, nada disso – o que me nauseia são as pessoas.

Ah, as pessoas e sua cultura nojenta, safada, viscosamente metida a espertinha! Quem mora aqui há mais tempo e não vive numa bolha sabe do que estou falando. Belém tem no âmago da sua desgraça sua cultura, se é que devo usar essa palavra no lugar de gente. Belém e sua gente não prestam. Falo de gente muito, mas muito peculiar. Gente que, espero, não haja igual no mundo, senão estamos todos fodidos e é melhor jogar uma bomba atômica no meio do Atlântico para alagar as cidades abaixo do nível do mar, como Belém. Só me dói ter que afundar Nova Iorque, Veneza e todas as ilhas paradisíacas americanas junto – mas seria tudo por uma boa causa, não? Enfim, a partir de agora, pretendo levar-lhes, de forma pouco sucinta e bastante prolixa, a uma viagem por alguns acontecimentos interessantes que, numa linguagem bastante “tablóidica”, balançaram a opinião pública (mentira, senão não teria de lembrá-las a vocês) nas últimas semanas em nossa cidade e podem delinear, como nunca, o profile sócio-cultural do belenense. Parece que foi tudo premeditado, obra de alguma força divina que queria que eu escrevesse este pequeno grande emaranhado de resmungos, mas tudo aconteceu de forma seqüencial e serve de exemplo para a minha seguinte tese (a qual, espero, alguém mais inteligente e menos pretensioso do que eu possa transformar em um estudo verdadeiramente embasado e imparcial, digno de doutorado e tal): Belém é uma grande bosta fracassada. Mas, mais do que ela, são 90% de seus moradores.

I. O inimaginável dia em que dinheiro roubado foi “pro pisão”

Todos devem lembrar da singela brincadeirinha do “pisão” – aquela, na qual a gente jogava desde bolas de gude, tazos e peças raras de lego até revistinhas de sacanagem e fotos da irmã para o alto, e quem as pegasse primeiro no chão poderia declarar-se dono –, não é? Geralmente entre meninos de oito a doze anos, a coisa consistia em uma forma, digamos, institucional de pegar o que não é seu, deixar levarem o que é seu – e, enfim, compartilhar com os outros o prazer de ter o que não é seu e perder o que era seu. Quase uma síntese do jeitinho brasileiro.

Pois é, a prática, que exala hormônios e cheira a vontade de pegar a irmã do amigo no meio das “oferendas”, geralmente é abandonada quando o adolescente descobre que, nesse mundico louco em que a gente vive, a melhor coisa é esconder ao máximo nossas aquisições para evitar possíveis roubos e espertezas – mas Belém, Belém é um caso à parte, é uma cidade na qual não apenas não se tem auto-respeito e educação social, mas na qual também pode ser encontrada uma total falta de senso de coletividade, humanidade e civilização.

E, antes que vocês pensem “O que diabos essa história de ‘pisão’ tem a ver com os tais acontecimentos que esse cara prometeu nos apresentar para dizer que nossa cidade natal é um fracasso?”, vamos deixar tudo às claras: um roubo frustrado, seguido de pseudo-tentativa-de-sequestro, praticado em Belém no último da 27 de março, transformou-se em um gigantesco e assustador “pisão” de dinheiro roubado que foi entregue pelos bandidos a reféns, disputado fervorosamente por um monte de selvagens alucinados por notas de dois e cinco reais. É: exatamente, isso mesmo. Dinheiro roubado, no “pisão”. Disputado por belenenses (ou ananindeuenses, que diferença faz? Está subentendido que nós estamos falando da Região Merdopolitana como um todo) despidos de qualquer razão.

De agora em diante, conto com o apoio documental da reportagem feita por minha colega de trabalho no Jornal Amazônia Ângela Gonzalez, que acompanhou de perto a cagada toda e fez uma matéria factual para o caderno “Polícia” do dia seguinte. Por volta de 12h30, um ônibus da linha Jibóia Branca – Ver-o-Pêso (eu pegava esse maldito para ir à universidade! Juro!) foi invadido na Br-316, altura do Líder Br, por dois típicos belenenses level 666 (leia-se: topetinho dourado, menos de 25 anos, ficha criminal superior a três páginas do Word e apelidos no diminutivo, como “Dentinho”, “Cocozinho”, “Loirinho” e “Assassininho”), armados e desesperados. O motivo: tinham assaltado uma empresa no bairro da Guanabara (ou Guanabala), e fugiam, veja só, de ônibus. A cena já poderia ser chamada de tragicômica, um take ultradramático digno do programa “Aqui e agora” (SBT) – não fosse o fato de que os assaltantes resolveram manter os passageiros reféns, após a chegada de um Corolla repleto de policiais à paisana que passaram pelo local e sentiram o clima de fuga da bandidagem.

Daí em diante, quem passa por aquelas redondezas entre o meio-dia e as 16h, como eu, teve de enfrentar um engarrafamento quilométrico, desde o final da Almirante Barroso até depois do viaduto de entrada da Cidade Nova; tudo porque, sentindo que estavam fodidíssimos, os dois figuras – Bruno da Silva Araújo, 18 anos, e Danilo Odilardo Borges, 21 (repare a idade) – resolveram render todo mundo e pedir a presença de um familiar, da imprensa (here we are again, baby!) e de um juiz (?!?). Não sei bem ao certo o por quê dessa tríade, mas sabe-se que a polícia só conseguiu levar um juiz de Ananindeua ao local por volta das 14h30, depois de uma jovem de 12 anos ficar com uma arma apontada à cabeça por horas a fio, sentindo o bafo de cachaça dos caras na nuca.

Cumpridas as exigências, a “dupla de dois” (como diria o “Diário Polícia”) liberou a jovem, o coitado do motorista e foi levada à Seccional da Marambaia. Seria o ponto final de mais uma estorieta urbana de nossa Belém pós-contemporânea (!), mas não – alguma merda maior tinha que acontecer, para figurar nos anais do coletivo belenense, e, por quê não?, dar todo um toque de humor negro àquela dramática tarde chuvosa. O negócio foi o seguinte: no intuito de deixar para trás possíveis pistas do assalto, a dupla de assaltantes decidiu desistir de levar o dinheiro para casa. Como não havia lugar melhor para largá-lo, eles decidiram enfiar as notas nas bolsas, mãos e carteiras dos passageiros (entre eles, a coitada da menina de 12 anos) – tudo sob o olhar vigilante dos milhares de populares que se concentravam no local (falando nisso, esse termo “populares” é outro recheado de pano na manga para discutir, mas, infelizmente, aqui não vai dar; quem quiser sacar melhor a idéia dos populares, é só ir atrás de uma crônica – sen-sa-cio-nal! – que o Luís Fernando Veríssimo fez sobre o assunto).

Pasme, caro leitor, que quando os reféns desceram do coletivo com a grana em mãos para entregá-la aos policiais de prontidão no local, a população voou em cima. Quando digo “voou”, não é figura de linguagem: há imagens guardadas nos arquivos da Tv Liberal, nas lentes dos fotógrafos do Diário do Pará e Amazônia, que mostram a deplorável cena dando as caras após o caótico incidente. A menina de 12 anos (de novo ela, vocês devem estar achando que gostei dela ou algo assim), perto de entregar o valor à polícia, teve de ser isolada em um cordão para não ter o mesmo destino de dois outros reféns, que foram arremessados ao chão e, novamente, roubados, por terem declarado em voz alta que tinham dinheiro proveniente do assalto dos bandidos espalhado pelos bolsos, sacolas e objetos pessoais. Considerando, sei lá como e com que prerrogativa, que estava tudo “no pisão” – já que a bandidagem tinha deixado seu tesouro para trás, e que representantes da loja roubada pela manhã não estavam ali por perto – o povo caiu de boca na grana, rasgou camisas, deu pontapés, empurrões, disputou notas e, pelo visto, esqueceu que tudo aquilo era produto de um assalto. De um crime, que havia retirado os lucros de um trabalho honesto, desenvolvido por pessoas de bem dali a algumas quadras. Tudo isso diante dos olhos atônitos da polícia.

Quando vi esta cena surrealística rolando na televisão (já no dia seguinte, depois que minha namorada afirmou ter visto a coisa toda no jornal noturno da data do assalto, me “sugerindo” assisti-la na próxima repercussão), lá no ambiente gélido, impessoal e quase seguro (minha chefe já foi pessoalmente ameaçada por grileiros do Sul do Pará) de redação do jornal, senti a primeira pontada de vontade de escrever este texto. Vejamos: quando afirmei que a desgraça de um local é definida por sua própria cultura, na introdução desta estorieta, tinha em mente mostrar-lhes que a pobreza de espírito e a ausência de qualquer senso de coletivismo ou política de boa vizinhança são capazes de tornar esta cidade, que já é uma merda devido à sua própria história social, numa verdadeira terra de selvagens. Ah, as pessoas... novamente as temos como a base de toda a barbárie e desgraça. Fazem como ditadores arbitrários e transformam as anomalias dessa super-estrutura louca – gente de bem como eu e você – em espectadores de um espetáculo grotesco.

Lembremos da pobreza, da marginalização histórica da cidade: Belém é uma metrópole cheia de contrastes. Num mesmo ônibus, há deste “Dentinhos” e “Goelinhas” até estudantes universitários carregando livros de Habermas, Trotsky e Sérgio Buarque – desde Motorolas V3 até aqueles celulares “tijolão” que podem ser encontrados em sebos a dez reais. As mesmas linhas que passam pela zona de risco da Br-316 fazem percursos pelas ruas (outrora) dóceis de Nazaré e Umarizal, levando jovens riquinhos à zona da bandidagem e vice-versa. No caso deste assalto, calhou dos bandidos quererem fugir de ônibus (fazer o que? Estão roubando justamente para pagar a gasolina e poder charlar com o Chevette rebaixado!), e terem diante de si um monte de populares metidos a espertalhões.

Ali, à beira da estrada, não faltava gente louca por uma lasquinha, uma mísera nota de dois reais para inteirar o ingresso do PopSom no domingo, ou mesmo um gole de cachaça na banquinha ao lado. Quando viram o assalto e sentiram que a polícia estava preocupada com outras coisas – como o deplorável estado psíquico dos passageiros, ou a reabertura do trânsito na Br-316 –, não houve qualquer hesitação em meter a mão no dinheiro. Teve até um moleque de 16 anos que foi detido após sair do enxame humano com um bloquinho de notas de R$ 2. Quase um “inho” da vida...

Esse tipo de caso serve para ilustrar nós, os belenenses. Esses símios reduzidos às necessidades fisiológicas comer-foder-dormir, que ainda conseguem absorver os perigosos ideais da vida moderna de aquisição e cobiça, levando-os a atos como o daquela tarde de 27 de março. Fora a malandragem (outra palavra que merece extenso debate à parte, mas pode ser melhor explicada por Antônio Carlos Almeida ou Roberto DaMatta), fora o jeitinho (idem), fora a pura e simples filha-da-putice velada em sorrisos desdentados, nós, os belenenses, os amazônidas tribais vestidos a rigor em nossas ruas e cenários proto-urbanos, ainda temos a capacidade de agredir uns aos outros com atos criminosos disfarçados.

Não há nada mais criminoso do que tomar para si dinheiro roubado; não há nada de pior gosto do que assaltar uma pessoa que passou horas como refém; não há nada pior do que desrespeitar os agentes da lei diante dos próprios; não há nada pior do que ignorar o drama passado e acotovelar-se, às risadas, diante da dinheirama deixada pelos ladrões; não há nada mais ridículo do que lutar por algumas dezenas de reais enquanto não se estuda ou trabalha suficientemente para pagar as próprias contas e ocupar o tempo livre, que é gasto no dia-a-dia, assistindo a crimes escabrosos de camarote. Acima de tudo, não há nada mais criminoso do que fazer consigo o que, jamais, você esperaria de qualquer pessoa que lhe deve respeito ou, no mínimo, indiferença. Roubar dinheiro que já foi roubado. É foda demais ou não é? Ah, Belém... são regras básicas!

Por favor, hipócritas de plantão, não venham me recriminar e dizer que basta dar educação a nossos jovens ou conceder-lhes oportunidades palpáveis de sustento financeiro e satisfação profissional: se fosse assim, não haveria assassinos, pedófilos e broncos de quinta categoria em países economicamente highbrow, como os Estados Unidos e a Suíça. A questão, aqui, refere-se a uma inegável e deprimente pobreza de espírito, algo produzido durante séculos de submissão e servilismo aos interesses exploratórios, alimentado pela crescente institucionalização do jeitinho como alternativa à norma e à lei durante os anos 1900. O buraco é mais embaixo: somos, do ânus ao último fio de cabelo, produtos de uma psyché, de um esprit du temps, muito do seu torto – e incurável sob as atuais circunstâncias.

Enfim, amigos, em uma coisa dentre tantas baboseiras, vocês hão de concordar: não há pobreza ou miséria capaz de justificar uma prática que vai contra quaisquer noções de bom senso e civilização: você guardaria para si um dinheiro que lhe foi entregue por algum bandido? Seja na Câmara Federal, seja no improvável cenário de um ônibus parado em plena hora do rush na Br-316, ou mesmo em uma reunião de negócios, é melhor que você responda não sem parar para pensar nessas horas. Caso contrário, você é um merda e faz parte desses 90% que transformam nossa capital (e nosso estado como um todo) em uma porcaria de uma terrinha fétida e sem lei. Como afirmei acima: belenense odeia pensar mesmo...

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Nem educação, nem riqueza: o problema tá é na cultura...


Que Belém é uma cidade repleta de gente mal educada, isso todo mundo sabe – e não adianta vir dizer que isso tem apenas a ver com desenvolvimento econômico e disparidade social, o problema é mais complexo –, mas nada impede que pessoas com um mínimo de senso coletivo e respeito ao próximo, como eu, tenham surpresas cômicas (não fossem trágicas), em situações trágicas (não fossem cômicas). Eis a estória:

Numa quinta-feira chuvosa qualquer, lá estava eu no estacionamento de um grande supermercado de nossa capital. A fila de carros era imensa, e se estendia até onde os olhos podiam ver – já sentia que ia ter de dormir à espera de uma vaga. Mas uma delas surgiu do nada, bem ao meu lado. Sorte essa, hein, pensei eu.

Acendi o pisca alerta (sim, eu o uso em estacionamentos e garagens, qual o problema?) e empinei o veículo em direção à vaga, já temendo que algum espertinho me cortasse pelo vão de manobras que me separava dela. E não é que, bem na hora em que passei a primeira marcha e comecei a andar, um Fiat Siena estraçalhado, rebaixado e cheio de adesivos do Pop Som entrou na minha frente e meteu o carro na vaga?

Tentando, ainda, ter paciência e crer que aquele bendito motorista não passava de um novato distraído, joguei luz e buzinei, mas não – o cara entrou com tudo, quase leva a frente do meu carro. Aí subiu a raiva. Joguei luz, buzinei, buzinei, parei o trânsito – e, como se nada houvesse acontecido, saíram três figuras e duas meninas do carro, de óculos escuro falsificado (à noite) e cordões de alumínio dourado, rindo e me perguntando:

- Ê, cara, o que é hein?
- Como assim, o que é? Vocês se meteram na minha vaga, tava de pisca alerta entrando nela!
- Ah, vai procurar outra vaga, oras...
- Como assim?!? Vocês não têm educação?

Nessa hora, um deles bradou para quem passasse por ali: “Não, sou mal educado mesmo!”. Riram entre si. Foram embora correndo. E eu fiquei lá, só olhando aqueles três arquétipos grotescos da juventude belenense.

Às vezes me envergonho de ter nascido aqui. Às vezes me orgulho de ser diferente. Mas, na maior parte do tempo, me envergonho de ter, a cada dia, mais vontade de dar o fora dessa cidade em que ninguém se respeita – essa selva de quinta categoria, na qual a lei do mais esperto prevalece e a norma e a educação ficam para os ingênuos, bobos, lesos por definição.

Eu, graças a Deus, me incluo neste grupo – com a devida consciência de que, pobre ou rico, pós-graduado ou analfabeto, quem quiser ser uma pessoa de bem só precisa dar a preferência nas filas para quem está à frente. À maioria, deixo meus pêsames e o aviso: se um dia me avistarem dando uma de esperto, podem puxar a orelha. Afinal, ninguém é perfeito e o sangue de brasileiro, felizmente ou não, ainda corre solto em minhas veias.

* Sobre a foto: quem leu Roberto DaMatta, vai entender! Hehe =)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Clarice


Ao sentir o cheiro doce do perfume da irmã, Clarice, no "auge" de seus irreconhecíveis quatorze anos, correu para o banheiro e vomitou. Não era um vômito como outro qualquer, daqueles de quem não gostou do filé com shitake do almoço ou do vinho roubado da adega dos pais. Era mais, sei lá, quente. Isso já estava se tornando um costume - junto às cólicas da menstruação que nunca mais chegara, vinham restos de comida, sangue e suco gástrico em doses cavalares. Ao cuspir tudo, tirava um cochilo à beira do vaso, de tão fraca que ficava. Era muito magrinha e frágil. Mas ninguém percebia o problema - estava trancada e longe da vista limitada dos pais, sempre.

Não sabia bem por quê o enjôo só vinha após o ritual vespertino da irmã mais velha: tomar banho, se perfurmar, deitar e dormir a tarde inteira. Talvez pela aversão ao aroma, talvez pela aversão à futilidade. Clarice, ao contrário do pai, da mãe e da irmã, detestava o Rio de Janeiro. Aquele calor insuportável, as praias ridículas, o cheio de cerveja e cachaça, os morros cheios de gente esfomeada e/ou bandida, os homens no ônibus e no metrô, esfregando o pinto no braço das morenas... odiava aquela cidade abrasileirada ao extremo e, não fosse a beleza de um pôr-do-sol de inverno visto lá do Redentor, já tinha se jogado lá de cima.

Morava em Copacabana, à beira da beleza da praia, entre gringos pelancudos, pivetes maconheiros e putas de alto luxo. Um belo dia, passeava no Civic de seu pai e pediu para que o motorista a deixasse na praia. Encontrou uns amigos da escola, bebeu demais e trepou com um vendedor de côco. E agora não sabia se aquela porra de enjôo era gravidez, ou se o pau imenso do menino tinha machucado o útero. Na verdade, nem queria saber: se negou a fazer qualquer teste de gravidez, até porque, qualquer coisa, o pai da melhor amiga tinha uma clínica de aborto na Lapa.

O problema é que os meses passaram, e nada da menstruação chegar. Tampouco, a barriga crescia - pelo contrário, os ossos já marcavam a pele branquinha e frágil. Clarice começou a vomitar mais sangue, além de ter uns sangramentos estranhos na vagina e desmaiar umas três vezes por dia. Para completar, os vômitos começaram a ser involuntários - começou a tê-los em jato, na rua, no quarto, na mesa de jantar. E só assim os pais descobriram, quando o sangue com pedaços de comida foi cuspido bem em cima da ceia deles.

Dali a dois dias - já fazia 42 graus nas areias da Zona Sul e 38 à sombra - Clarice deu adeus ao Rio de Janeiro. Foi a São Paulo, fez uns exames e descobriu-se que tinha HIV materno. A irmã, idem. A mãe, coitada, mal dava conta dos acessos de fraqueza que às vezes sentia, mas tinha o vírus há um bom tempo. E o pai... bem, o pai já estava bem longe a essa hora, com o dinheiro da família e as contas no exterior. As três morreram na casa de uma amiga da mãe, vomitando sangue e emagrecendo lentamente. Quanto ao vendedor de côco, coitado, o menino pegou a doença em vez de virar pai precoce, o que era um orgulho nesses tempos de fabricar crianças pobres e jogá-las na Terra do Deus Dará. Subiu o morro e fez o vírus dar uma volta pelas barrigudas da Rocinha.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

New Year´s Eve

Noite de ano-novo - ou seria velho? -, e não tenho muito o que comemorar. Em minhas mãos, umas latas de cerveja vazias e amassadas, nada de álcool no sangue, nada de refrescância torpe. Verão dos fortes, um dos piores que já vi: tamanhos 28 graus à noite. Desse jeito, só um banho de mar salva do calor e do suor azedo. Mas, quem disse que eu tenho tempo para isso?

Aqui no Guarujá, balneário "chique" do Sudeste, as pessoas são assim: brindam, festejam, bebem, assistem os fogos da virada, entorpecidas. Para minha sorte ou azar, não olham para baixo. É dessa forma que, baixinho, preto e maltrapilho, consigo passar desapercebido na multidão à beira do mar.

Meus pés, cheios de bolha de tanto pisar na areia quente, agora se sentem aliviados com o frio da brisa noturna a deslizar no chão. Ando, ando pela praia da Enseada, dessa vez sem o peso de um isopor gigante nas costas; à noite, o troco por um saco de lixo. Vou catando as latinhas, uma a uma, pedindo-as, tirando-as da areia. Lá longe, alguém berra: "Faltam 10 minutos pro Reveillon!". As palmas ressoam. Eu ando.
Começo a pensar em como será amanhã: acordar no calçadão, cutucado pela baioneta de algum guarda, ir entregar as latas e faturar um dinheirinho. Talvez até dê para eu comprar um pente novo para a mamãe, ela sempre diz não ter dinheiro para cuidar dos cabelos. Por isso mesmo, as latinhas devem ser muitas, e grandes... como aquela pilha, lá na beira da água.

Era uma família bonita, bem-sucedida e feliz - parecia -, comemorando o ano-novo no local. O pai segurava o champagne, os filhos e a mulher, loiros de olhos azuis, dão os sete pulos nas ondinhas para dar sorte. No pé de uma das cadeiras de praia, as latas, de 600ml, brilhando, reluzindo, imensas. Juntas, deviam dar uns 20 reais, ou seja, o almoço e o pente. Ainda prensado pelo festival de gente bêbada e histérica, arrisquei uns passos até a família e pedi, gentilmente:
- Tio, dá pra me dar essas latinhas aí?

Ele não me olhou, nem a mulher ou os filhos. Continuavam festejando, e não os culpo por isso; quem merece, deve comemorar, e quem não merece não comemorar, que espere o mundo se tornar um lugar justo. Além do mais, a visão de um pivete em plena noite de ano-novo não devia ser das mais digestas. Cheguei à conclusão de que era melhor pegar logo, já que ninguém dá a mínima para essas latas mesmo - na manhã seguinte, seriam disputadas por caminhões de lixo e bêbados desesperados. O problema era que, entre as latas e minhas mãos havia uma bolsa, cheia de carteiras e trocados reluzentes.

Em hipótese alguma, pensara em roubar alguém. Primeiro, porque os bens de cada um são conquistados com esforço (ao menos se espera), e meu trabalho não é roubar o dos outros. Segundo, porque, nessas praias chiques e cidades grandes, o que não falta é policial doido pra pegar um pivete e ganhar uma comissão por cabeça presa. Minha mãe me ensinou a fazer as coisas com honestidade e planejamento. Passei direto pela bolsa, peguei as latas, uma a uma, sem que me vissem, e saí andando. Mal dei dez passos e uma das crianças berrou:

- Pivete mexeu na bolsa da mamãe!

Foi o suficiente para que todo aquele mar de gente, que parecia disputar em imensidão com a própria extensão de areia, me cercasse, e começasse a jogar areia, latas, garrafas e pedrinhas em mim. Tentei, em vão, explicar que só queria as latinhas e nada mais, porcaria, mas argumento de pobre sempre é visto como desculpa furada. Alguns tabefes, encalorados pelo álcool e pela raiva, me atingiram, assim como cusparadas e xingamentos de toda sorte. O saco com as latinhas caiu no chão, e o pessoal começou a jogá-las no mar, rindo abertamente, com o espetáculo de fogos ao fundo. Era uma cena surreal, dantesca. Fui "salvo" por policiais que me enfiaram num camburão e me estupraram na delegacia por horas.

Sempre tive em mente, veja só, que o mundo é assim por natureza, injusto, indestrutível, desigual ao extremo e difícil de explicar. A porradaria acabou no dia seguinte, quando me liberaram sem mais nem menos, e tive a surpresa de não me deparar com mamãe à minha espera na porta. Provavelmente, não se deu ao trabalho de descer a serra e me procurar.

Assisti ao resto da festa dos fogos na janela da cela, estourando ao longe, com a bunda ardendo; dava para ouvir os berros, nos quais, certamente, estavam os da família loira de olhos azuis. O dia seguinte foi como previ: ao sair, cambaleante, me deparei com a mesma rua, quente e nada receptiva: as pessoas em seus carros, os pobres em suas bicicletas, viaturas com policiais mal-encarados passando, o sol de 40 graus... era mais um começo de ano, para mim, para vocês e para os policiais. E para a praia e o mar, que arrastava as latinhas ao longe. Feliz ano-novo.

(SP, 01/01/08)