quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

New Year´s Eve

Noite de ano-novo - ou seria velho? -, e não tenho muito o que comemorar. Em minhas mãos, umas latas de cerveja vazias e amassadas, nada de álcool no sangue, nada de refrescância torpe. Verão dos fortes, um dos piores que já vi: tamanhos 28 graus à noite. Desse jeito, só um banho de mar salva do calor e do suor azedo. Mas, quem disse que eu tenho tempo para isso?

Aqui no Guarujá, balneário "chique" do Sudeste, as pessoas são assim: brindam, festejam, bebem, assistem os fogos da virada, entorpecidas. Para minha sorte ou azar, não olham para baixo. É dessa forma que, baixinho, preto e maltrapilho, consigo passar desapercebido na multidão à beira do mar.

Meus pés, cheios de bolha de tanto pisar na areia quente, agora se sentem aliviados com o frio da brisa noturna a deslizar no chão. Ando, ando pela praia da Enseada, dessa vez sem o peso de um isopor gigante nas costas; à noite, o troco por um saco de lixo. Vou catando as latinhas, uma a uma, pedindo-as, tirando-as da areia. Lá longe, alguém berra: "Faltam 10 minutos pro Reveillon!". As palmas ressoam. Eu ando.
Começo a pensar em como será amanhã: acordar no calçadão, cutucado pela baioneta de algum guarda, ir entregar as latas e faturar um dinheirinho. Talvez até dê para eu comprar um pente novo para a mamãe, ela sempre diz não ter dinheiro para cuidar dos cabelos. Por isso mesmo, as latinhas devem ser muitas, e grandes... como aquela pilha, lá na beira da água.

Era uma família bonita, bem-sucedida e feliz - parecia -, comemorando o ano-novo no local. O pai segurava o champagne, os filhos e a mulher, loiros de olhos azuis, dão os sete pulos nas ondinhas para dar sorte. No pé de uma das cadeiras de praia, as latas, de 600ml, brilhando, reluzindo, imensas. Juntas, deviam dar uns 20 reais, ou seja, o almoço e o pente. Ainda prensado pelo festival de gente bêbada e histérica, arrisquei uns passos até a família e pedi, gentilmente:
- Tio, dá pra me dar essas latinhas aí?

Ele não me olhou, nem a mulher ou os filhos. Continuavam festejando, e não os culpo por isso; quem merece, deve comemorar, e quem não merece não comemorar, que espere o mundo se tornar um lugar justo. Além do mais, a visão de um pivete em plena noite de ano-novo não devia ser das mais digestas. Cheguei à conclusão de que era melhor pegar logo, já que ninguém dá a mínima para essas latas mesmo - na manhã seguinte, seriam disputadas por caminhões de lixo e bêbados desesperados. O problema era que, entre as latas e minhas mãos havia uma bolsa, cheia de carteiras e trocados reluzentes.

Em hipótese alguma, pensara em roubar alguém. Primeiro, porque os bens de cada um são conquistados com esforço (ao menos se espera), e meu trabalho não é roubar o dos outros. Segundo, porque, nessas praias chiques e cidades grandes, o que não falta é policial doido pra pegar um pivete e ganhar uma comissão por cabeça presa. Minha mãe me ensinou a fazer as coisas com honestidade e planejamento. Passei direto pela bolsa, peguei as latas, uma a uma, sem que me vissem, e saí andando. Mal dei dez passos e uma das crianças berrou:

- Pivete mexeu na bolsa da mamãe!

Foi o suficiente para que todo aquele mar de gente, que parecia disputar em imensidão com a própria extensão de areia, me cercasse, e começasse a jogar areia, latas, garrafas e pedrinhas em mim. Tentei, em vão, explicar que só queria as latinhas e nada mais, porcaria, mas argumento de pobre sempre é visto como desculpa furada. Alguns tabefes, encalorados pelo álcool e pela raiva, me atingiram, assim como cusparadas e xingamentos de toda sorte. O saco com as latinhas caiu no chão, e o pessoal começou a jogá-las no mar, rindo abertamente, com o espetáculo de fogos ao fundo. Era uma cena surreal, dantesca. Fui "salvo" por policiais que me enfiaram num camburão e me estupraram na delegacia por horas.

Sempre tive em mente, veja só, que o mundo é assim por natureza, injusto, indestrutível, desigual ao extremo e difícil de explicar. A porradaria acabou no dia seguinte, quando me liberaram sem mais nem menos, e tive a surpresa de não me deparar com mamãe à minha espera na porta. Provavelmente, não se deu ao trabalho de descer a serra e me procurar.

Assisti ao resto da festa dos fogos na janela da cela, estourando ao longe, com a bunda ardendo; dava para ouvir os berros, nos quais, certamente, estavam os da família loira de olhos azuis. O dia seguinte foi como previ: ao sair, cambaleante, me deparei com a mesma rua, quente e nada receptiva: as pessoas em seus carros, os pobres em suas bicicletas, viaturas com policiais mal-encarados passando, o sol de 40 graus... era mais um começo de ano, para mim, para vocês e para os policiais. E para a praia e o mar, que arrastava as latinhas ao longe. Feliz ano-novo.

(SP, 01/01/08)