segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Clarice


Ao sentir o cheiro doce do perfume da irmã, Clarice, no "auge" de seus irreconhecíveis quatorze anos, correu para o banheiro e vomitou. Não era um vômito como outro qualquer, daqueles de quem não gostou do filé com shitake do almoço ou do vinho roubado da adega dos pais. Era mais, sei lá, quente. Isso já estava se tornando um costume - junto às cólicas da menstruação que nunca mais chegara, vinham restos de comida, sangue e suco gástrico em doses cavalares. Ao cuspir tudo, tirava um cochilo à beira do vaso, de tão fraca que ficava. Era muito magrinha e frágil. Mas ninguém percebia o problema - estava trancada e longe da vista limitada dos pais, sempre.

Não sabia bem por quê o enjôo só vinha após o ritual vespertino da irmã mais velha: tomar banho, se perfurmar, deitar e dormir a tarde inteira. Talvez pela aversão ao aroma, talvez pela aversão à futilidade. Clarice, ao contrário do pai, da mãe e da irmã, detestava o Rio de Janeiro. Aquele calor insuportável, as praias ridículas, o cheio de cerveja e cachaça, os morros cheios de gente esfomeada e/ou bandida, os homens no ônibus e no metrô, esfregando o pinto no braço das morenas... odiava aquela cidade abrasileirada ao extremo e, não fosse a beleza de um pôr-do-sol de inverno visto lá do Redentor, já tinha se jogado lá de cima.

Morava em Copacabana, à beira da beleza da praia, entre gringos pelancudos, pivetes maconheiros e putas de alto luxo. Um belo dia, passeava no Civic de seu pai e pediu para que o motorista a deixasse na praia. Encontrou uns amigos da escola, bebeu demais e trepou com um vendedor de côco. E agora não sabia se aquela porra de enjôo era gravidez, ou se o pau imenso do menino tinha machucado o útero. Na verdade, nem queria saber: se negou a fazer qualquer teste de gravidez, até porque, qualquer coisa, o pai da melhor amiga tinha uma clínica de aborto na Lapa.

O problema é que os meses passaram, e nada da menstruação chegar. Tampouco, a barriga crescia - pelo contrário, os ossos já marcavam a pele branquinha e frágil. Clarice começou a vomitar mais sangue, além de ter uns sangramentos estranhos na vagina e desmaiar umas três vezes por dia. Para completar, os vômitos começaram a ser involuntários - começou a tê-los em jato, na rua, no quarto, na mesa de jantar. E só assim os pais descobriram, quando o sangue com pedaços de comida foi cuspido bem em cima da ceia deles.

Dali a dois dias - já fazia 42 graus nas areias da Zona Sul e 38 à sombra - Clarice deu adeus ao Rio de Janeiro. Foi a São Paulo, fez uns exames e descobriu-se que tinha HIV materno. A irmã, idem. A mãe, coitada, mal dava conta dos acessos de fraqueza que às vezes sentia, mas tinha o vírus há um bom tempo. E o pai... bem, o pai já estava bem longe a essa hora, com o dinheiro da família e as contas no exterior. As três morreram na casa de uma amiga da mãe, vomitando sangue e emagrecendo lentamente. Quanto ao vendedor de côco, coitado, o menino pegou a doença em vez de virar pai precoce, o que era um orgulho nesses tempos de fabricar crianças pobres e jogá-las na Terra do Deus Dará. Subiu o morro e fez o vírus dar uma volta pelas barrigudas da Rocinha.