domingo, 28 de setembro de 2008

Eu gosto pacas de Madonna. E não sou gay.

Dos dedos dos pés ao último fio de cabelo, Madonna é uma espécie de mito do mercado pop. Mito que, muitas vezes, é visto como um produto comercial "só para mulheres". Homens que eventualmente gostem dela num sentido não-estético, ihhh... logo são vistos como bibas, divas incompreendidas loucas para soltar a franga na parada gay de São Paulo com uma perula loira-amarelada. Eu nunca entendi isto. Sempre gostei de Madonna, e não para saltitar no chuveiro a ouvindo; sempre a vi como uma fonte de boa música, de melodias bem-sacadas e experimentos sonoros geniais e inovadores.

A razão para escrever este relato é simples: estava eu em meu recém-comprado carro, com os vidros baixos e tal, indo pegar minha namorada em casa, numa tarde modorrenta. Por acaso - e como sempre - tinha alguma coisa de Madonna gravada em meu aparelhinho Mp4, que uso para ouvir música no carro, e, logo após uma seqüência de Muse, Ozzy Osbourne e Dream Theater (música pra cabra-macho, disque), começaram a ressoar no carro os tecladinhos cabocos de "Holiday", um hit das antigas de Madonna. Os vidros estavam baixos; havia dezenas de carros passando a meu lado na José Malcher. Num primeiro instante, pensei em trocar de música. Passar rapidamente todo o "Immaculate Collection" (1990), ir direto ao Joy Division. Quase o fiz, mas mudei de idéia e continuei ouvindo até a bateria do aparelho acabar.

É, eu sei. Você deve estar pensando: "Mas que idiotice, essa anta pensou em definir o repertório que ouve no próprio carro só porque tem gente que acha Madonna coisa de mulherzinha?". Foi exatamente o que pensei na hora sobre o que estava pensando - aliás, o que me fez pensar exaustivamente sobre o assunto horas depois, batendo papo com a minha namorada. Concluí que este papo de trocar de música só pode levado a sério por pessoas muito, mas muito preconceituosas; e eu, coitado, que humildemente me considero um dos caras mais compreensivos e mente aberta desta Belém provinciana, não podia fazer coro a essa gente. Gente, aliás, que provavelmente nem estava passando de carro a meu lado naquele momento (sic)...

Vamos explicar por que gosto tanto da Madonna. Meu primeiro contato real com ela - digo real no sentido de já entender alguma coisa de música - foi aos 14 anos, quando liguei na MTV e estava passando um pocket show dela numa bodega no interior dos Estados Unidos. A moça estava lançando seu "American Life" (2002), CD que fez polêmica ao criticar os modos de guerra e certos elementos da cultura norte-americana. Estava em palco sem sua megalomania estética de praxe: eram apenas ela, cantando e tocando violão, e mais dois marmanjos, um no teclado e outro na bateria. Tocavam "Hollywood", e disto me lembro bem, na hora em que aumentei o volume.

Claro que já tinha ouvido aqueles sucessos manjados da Madonna alguma vez na vida; "Like a virgin", "Like a prayer", essas coisas. Mas, quando a música acabou e entrou no VT um breve histórico, com imagens, clipes e sons do início de carreira, dei conta do fenômeno musical que, por mim, passou despercebido. Cacete, Madonna é muito bom!, devo ter exclamado pelas entranhas, lá no sofá da casa do meu pai, numa madrugada tediosa. Daí em diante, comecei a baixar músicas e gravar alguns CDs com coisas dela para ouvir no computador, em casa, mostrar a meus amigos e - agora, que a maturidade chegou - apreciar enquanto enfrento o trânsito caótico de minha terra natal.

Nesss últimos anos, já ouvi muita gente de todas as correntes possíveis. Muitas cantoras, cantores e grupos safos do cenário pop, alternativo, heavy, rock e por aí vai. Mas, acredite, nunca ouvi alguém como Madonna, nunca. Sinto-me até prolixo em elencar algumas das virtudes desta loira gringa, tão conhecida pelo grande público, mas vale sempre lembrar sua inteligência e esperteza - ninguém consegue driblar as dificuldades da indústria fonográfica como ela-, beleza (e não venha me dizer que ela é "plástica" ou algo do tipo) e, claro, sua indiscutível capacidade de fazer qualquer merdinha de três ou quatro acordes e poética minimalista virar um hit mundial. Estas qualidades, confesso, demoraram a ser percebidas por mim quando a conheci - quando ainda era um aspirante a metaleiro acostumado à virtuose e farofice dos ídolos oitentistas do ramo -, mas hoje já consigo entrar em boas e frutíferas discussões ao defender Madonna. Tanto sua figura pessoal - polêmica, controversa, barraqueira, camaleônica, histriônica, multiprofissional, bizarra, até - quanto a musical ganharam um fã de forma progressiva, mas bastante sólida, ao longo dos últimos cinco anos. Ponto para nós dois.

Enfim, voltemos ao debate inicial: por que diabos associar Madonna apenas ao público feminino e gay? Dia desses, li em um artigo na Wikipédia que a loira sempre agradou as mulheres, por representar um arquétipo de modernidade e independência digno de canonização pop. Ok, concordo - nada mais mulher-moderna que abrir as pernas e cantarolar letras sexy em videoclipes e palcos sem medo de ser feliz. Ela, de fato, é um ícone do feminismo contemporâneo; sem exageros, mas nem por isso estático. Por outro lado, há um equívoco bastante comum em intitulá-la "rainha pop dos gays" - hábito adquirido pela grande mídia e pelos próprios homossexuais após o estouro comercial dos anos 1980 e a continuidade nos 90. Parece minimalista dizer isso, mas é verdade: o erro de achar a música de Madonna gay é cometido pela maioria de nós, homens, e pelas mulheres também; pela mídia e pela própria comunidade homossexual, idem.

Os críticos são outros que contribuem para a coisa. Gente influente do ramo chegou a dizer que álbuns como "Erotica" (1993), "Bedtime stories" (1994) e "Confessions on a dance floor" (2005) são trabalhos mais "coloridos", apenas porque apostam em gêneros como disco, pop e dance. O último, por exemplo, é classificado por um jornal respeitável como um disco "previsível, sem inovação, pensado para vender como água, explorando comercialmente o sucesso de Madonna entre os gays - principalmente os balzaquianos que ouviram a 'material girl' nos anos 80 e alimentam a nostalgia de um tempo de inocência, quando pintar os cabelos, colocar tatuagem e vestir roupas rasgadas, pretas e de couro eram sinais de rebeldia juvenil (...)" (veja o texto completo aqui). Veja só, isso foi escrito por um crítico das antigas, entendido da coisa; imagine o que é dito por aí em papos de mesa de bar...

Além de pejorativa, por associar os homossexuais apenas à música pop - como se eles não pudessem apreciar outros gêneros musicais além deste, supostamente mais "colorido"... meu Deus! - , essa perspectiva acaba por limitar tanto artista quanto público, moldando-os conforme a dança e os interesses de poucos. Conversando e lendo o que muita gente escreve virtualmente por aí, já consegui relatos interessantes, desde aquele papo da mulher que jamais sairia com um cara que gostasse de Madonna e Michael Jackson, ou do cara que nunca tentou ouvir a diva por achá-la "coisa de viado". Em contrapartida, o Orkut tem algumas comunidades do tipo "Sou gay e não gosto de Madonna", "Não sou gay e gosto de Madonna" - ou seja, o que se vê é que o preconceito e a revolta quanto à existência dele existem, sim, e de tudo o que é lado. Os gays não agüentam mais ser rotulados conforme a biba colorida da parada que citei lá em cima; da mesma forma, os homens querem gostar de Madonna sem ter de ouvi-la no quarto, com a luz apagada e sem nenhum amigo que vá sacaneá-lo por perto.

Vamos ao básico: o que há de essencialmente gay ou feminino em "Like a virgin", "Borderline", "Open your heart", "La isla bonita", "Ray of light", "Something to remember", "Substitute for love", "Fever", "Take a bow", "Music", "Candy shop", "Hollywood", "Nobody knows me", "Human nature" e tantas outras canções bacanas de Madonna? As letras, a melodia dançante, são de música de "mulherzinha"? Se você acha que sim, é a mesma coisa que dizer que as clássicas do Guns n´Roses, do Iron Maiden e do Dream Theater são "coisa de homem ou de sapatão" - ou seja, idiotice.

Música não é feita de hormônios, e sim de impressões, de sentimentos alheios a coisas como orientação sexual e rótulos estéticos. Admirar o trabalho de artistas, também - por isso, não levantei o vidro naquele dia. Ouvi o CD até a bateria do Mp4 acabar, e feliz da vida (dirigir ao som de "Live to tell", por sinal, é do caralho, experimentem!), por sinal. Discos como "Ray of light" (1997) - o melhor dela, em minha opinião -, "American Life", "True Blue" (1986) e "Confessions..." são verdadeiras obras-primas da música pop, assim como os de astros do rock e do underground, e merecem estar sempre presentes em nossa vida repleta de apetrechos e trambolhos eletrônicos.

Meu recado (com ares de intimação) aos homens como eu: nunca, nunca deixem de curtir Madonna. Ela é bonitona, gostosona, sim, mas é também uma grande cantora. Dirijam, comam, passeiem, transem e façam cocô e xixi ao som dela - sua mulher e/ou acompanhante, ou mesmo seus amigos, não vão reclamar, principalmente se houver bom senso na relação amorosa/de amizade. Nossos ouvidos testosteronados merecem ouvir em paz aquela vozinha metálica (ultimamente, mais contida e técnica) e sexy que embalou os anos 1980 e permanece, até hoje, atual e infalível. E, quer saber de outra? Acho que ela ia ficar muito feliz se o fizéssemos todos juntos - até porque, como bom produto revoltado da grande mídia que é, Madonna detesta ser associada a qualquer tipo de rótulo. Isso transborda na música, nas atitudes dela. Portanto, além de homens, machos, seguros de si mesmos, seríamos bons fãs ao cagar e andar para o preconceito, imbecilidade e provincianismo alheios. Não só em Belém, mas em qualquer canto do mundo, ouvir Madonna de janela aberta é uma espécie de ato simbólico de transgressão saudável - e, como tal, nos reveste de certo sentimento de orgulho, sagacidade e inteligência. Experimentem e comprovem!