sexta-feira, 14 de maio de 2010

Here to stay


Cada vez que ia à varanda fumar um cigarro, sentia arder os pulmões. Por algum motivo, gostava da sensação – era transgressão, antes; agora, era conforto. Conforto para aturar os dias de frio, o sono e o cansaço da vida, de si mesma... literalmente. Nada como um cigarro para segurar a solidão – a fome, também – enquanto olhava para as ruas estreitas e barulhentas do bairro alto. Que, de alto, só tinha tradição; era baixeza dia e noite, ao menos quando visto por trás daqueles olhinhos atentos.

Havia se mudado para Lisboa fazia uns quatro, cinco anos. Quando foi, ainda era bem jovem. Chorou muito à hora de se despedir dos pais, lá em Santarém. A ideia era boa, muito boa: sair do atraso de um interior ignorado pelo governo, ir à cidade grande, estudar... e viajar de avião, um sonho alimentado por muitas novelas, revistas de fofoca do salão de beleza da mãe e conversas com homens mais velhos. Dessa vez, no entanto, não havia promessa mirabolante: chegou às suas mãos um papel, uma carta, indicando hora, data e o bilhete de voo.

Ela sempre quis ser modelo, e os amigos achavam graça. Era esquálida – não por opção –, desdentada, filha de pescadores; tinha nariz torto, cabelos crespos e maltratados, à altura do ombro, e, aos 13 anos, tinha fama de menina fácil, daquelas que qualquer gringo que aportasse na cidade acolhia e “tratava”. Mas não era bem assim – o negócio era subir de vida, custando o que custasse. Com a promessa daquela moça ruiva, bem educada e apessoada, que visitou sua casa e conversou com seus pais, prometendo emprego e estudos no exterior, tudo pareceu mais fácil.

Chegou à cidade grande sozinha, desamparada, com uns R$ 300 no bolso. Foi recebida pela mesma moça ruiva – curioso, ela não tinha sotaque – no aeroporto, acompanhada de um cara bem vestido, barbudo, educado... português de poucas palavras. Instalou-se nos fundos da casa dele. Não tardou para que o dinheiro acabasse; o país nem era dos mais caros, mas o euro valia bem mais que as economias dos pais miseráveis. Pediu à moça ruiva e ao português uns trocados, mas teve de fazer uns favores em troca. Ganhou um tratamento nos cabelos, um cubículo na ruela mais fétida da cidade e uma, digamos assim, agenda de trabalho. E o tal contrato de modelo... esse sempre ficava para a semana que vem, sempre.

Lembrou daquilo àquela noite. Estranho... pensava ter esquecido de como tinha chegado ali. Não recordava mais o rosto dos pais, dos amigos, dos avós... nem do próprio rosto. Era outra pessoa, olhos verdes falsos, cabelos lisos (alisados), seios imensos e caídos, disformes e cheios de cicatrizes. Parecia uma mulher de 40, 45 anos. As memórias, paradoxalmente, vieram por conta da chuva; fazia muito frio – o agasalho furado não segurava –, era inverno, mas, de alguma forma, a força daquelas trovoadas aludia às calorentas noites de março da terra natal. Nuvens passavam rápido lá em cima, furiosas, ágeis e livres, como ela tanto queria ser; acendeu mais um cigarro enquanto olhava para a rua.

Lá embaixo, passou, em meio a uns bêbados, uma mulher que lhe lembrava a moça ruiva. Mas não a via há anos! Enfim, de qualquer forma acenou, sorriu e ela respondeu, despedindo-se... caminhava rumo a um lugar melhor, com certeza. Lá no quarto, ele, o homem que lhe pagava as contas por essa noite – só essa noite – já começava a se remexer na cama, inquieto. Cuspiu um pouco de sangue no cinzeiro (aquilo já virara hábito), tossiu e entrou, com seu mau hálito, seu corpo azedo e cansado, seu sorriso amarelo e descrente da vida. E se deixou deitar, entregue ao suor de mais um homem que lhe prometia o mundo.