quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Falem mal, mas tenham referência


Uma das coisas que ainda surpreende muito quem visita ou acaba de se mudar para São Paulo é o alto índice de resmungos dos moradores sobre o transporte público daqui. Pegue um táxi, puxe papo com o vendedor, o padeiro, o vizinho, o colega de faculdade: em cinco minutos, o cara vai começar a soltar suas (aparentemente infundadas) loucuras:

- O metrô daqui é um lixo, cara! Não serve para nada, nem tenta usar...

- Os corredores de ônibus são uma porcaria, os ônibus são malcuidados...

Uma explicação para os caras: nós, que viemos de regiões como a Norte – que nem sonha em ter transporte decente sobre trilhos ou faixa exclusiva para circulação de ônibus –, nos conformamos com qualquer coisinha que nos aparece à frente. E aí o metrô, os trens e os corredores viários de São Paulo, que estão entre os mais limpos e eficientes do mundo, parecem presente divino.

Fato: eles não o são, porque não comportam a demanda de uma cidade que subiu no ranking e hoje é uma das maiores do globo (esperemos o novo censo do IBGE...), com uma extensão metroferroviária que seria confortável numa cidade com as dimensões de Natal (RN). O que não lhes tira seu caráter exemplar, deixe-se bem claro.

Projetado e ampliado a passos de cágado desde os anos 1970, o metrô de São Paulo é uma lindeza só aos olhos de nós, leigos de classe média. Seus vagões são limpos, organizados; as estações não fedem a mijo, os funcionários são educados, o intervalo entre trens é mínimo (o da linha 3 – Vermelha, a mais lotada do mundo, é, ironicamente, um dos menores do mundo), não há assaltos nas estações e, sinceramente, ele leva para uma porção relevante (porém, não suficiente) da cidade.


O problema é quando os 21 milhões de moradores da cidade resolvem sair do trabalho e ir para casa. Aí começa o espetáculo acima que o turista não vê: gente desmaiando nos corredores subterrâneos abafados da Luz, gente caindo nos trilhos da Sé, gente se empurrando dentro do vagão na primeira estação da linha, escada rolante desligada e barras de ferro instaladas nas plataformas pra evitar acidentes... funcionários com megafones pedindo para ninguém se espremer nas portas e, assim, impedir o embarque; gente mordendo gente, gente acotovelando gente. É uma festa dantesca, uma cena de pura esquizofrenia urbana para a qual, sinceramente, não convido ninguém.

Com suas dimensões fascinantes, São Paulo tem apenas três linhas de metrô operando pra valer. A 1 – Azul, muito antiga e que passa perto da minha casa, liga a zona norte à sul e é, hoje, a que interliga os principais centros comerciais, financeiros e residenciais da cidade. Dependendo do horário e do trecho, é um percurso tranquilo, eficiente, “pau para toda obra” – e que, graças a Deus, raramente dá problema.

A linha 2 – Verde – que, na verdade, foi a terceira a ser inaugurada, já nos anos 1990 – é a “turistex line”, algo como a Circle, de Londres. Trens com ar-condicionado, estações com obras de arte e um cheirinho de lavanda nas plataformas de embarque são a marca do antigo “ramal Paulista”, que só recentemente foi concluído e começou a servir como meio de transporte para a populosa zona leste (via Vila Prudente) e até para os ricaços do Sumaré . Apesar de confortável em boa parte do dia e útil para quem mora/trabalha na região da Paulista, é insuportável nas horas de pico – talvez seja a segunda pior.

E temos a dramática, a caótica, a famigerada e excessivamente malvista linha 3 – Vermelha. Rápida (intervalo de trem de menos de 100 segundos) e extremamente útil, vai desde o terminal da Barra Funda, na zona oeste, até Itaquera, no eixo leste. Na teoria, é linda. O problema é o fluxo: quase a população de Belém passa por seus vagões diariamente. É por isso que qualquer blusinha presa na porta gera o caos em toda a linha, como a gente viu em setembro passado (tava no metrô no dia e não me orgulho disso).

Projetos pra expandir o traçado de meros 60 e poucos quilômetros que as linhas somam tem de sobra. A linha 4 – Amarela, cujas obras abriram uma cratera em 2007 em pleno largo de Pinheiros, já foi inaugurada. Tem, no entanto, só duas (DUAS) estações até agora, sendo que uma delas é, na verdade, conexão com a linha 2, e só funciona das 9h às 15h, de segunda a sexta-feira. Quando ficar pronta, no dia de São Nunca, vai ligar a estação da Luz até a Vila Sônia, quase em Taboão da Serra – aí, sim, servirá para alguma coisa, e será tão superlotada quanto as demais (1 milhão de usuários/dia) linhas, integrando-as plenamente. Abaixo, foto do novo modelo de trem (sem condutor) adquirido para rodar em seus trilhos:


Outra “promessa” que saiu do papel, mas ainda não mostrou a que veio, é a linha 5 – Lilás, cuja expansão foi retomada recentemente. Inaugurada em 2002, a bichinha só tem 8 km de extensão e liga, nas palavras de quem realmente a usa, “o nada a lugar algum” – do Capão Redondo até Santo Amaro. Na verdade, é um caminho de extrema relevância, só que a linha simplesmente não se integra à rede de metrô (só liga à linha 9 da CPTM, que por sua vez segue até Osasco para, aí sim, ter conexão com linhas que levam ao centro da capital).

Quem usa a linha 5 precisa descer e pegar ônibus pra chegar ao centro. Resultado? Em oito anos, nunca cumpriu sua demanda; vive às moscas, até em horário de pico, mesmo sendo bonitona e moderna. Quando você ler por aí que o bilhete da dela é dez centavos mais barato que o do resto da rede, pense bem nos motivos.

Quando pronto, o traçado final vai seguir por 20 km até a Vila Mariana, na zona sul, com conexão às linhas 1 e 2, passando por áreas populosas e comerciais como Moema, Campo Belo e Brooklin; aí, sim, vai ser realmente um transporte de massa, com uns 900 mil passageiros diários e opções para uma penca de lugares. Minha visão de leigo: ela, com suas estações situadas na nova zona “nova-rica” de SP, vai desafogar boa parte do trânsito da Marginal.

Fora as que estão em obras, há projetos de outras linhas, como o monotrilho da Cidade Tiradentes, o do Morumbi e a tardia linha 6 – Laranja, que finalmente dará vida digna a quem mora pras bandas de Brasilândia, na zona norte, e precisa circular pelo centro da capital. Mas nem vou me arriscar a falar sobre essas daí, já que o próprio governo não decide por onde elas vão passar e quando serão inauguradas. Abaixo, a previsão do sistema quando a expansão estiver consolidada (chuta quando...).


Enfim, pra completar o panorama que eu, recém-mudado, demorei meses pra entender e pretendi discutir aqui, ainda temos os 200 km de linhas de trem da CPTM. Dotadas de péssima fama – resultado de umas décadas de completo abandono e depredação –, as ferrovias metropolitanas são, hoje, a prova de que dá pra meter trilhos na cidade sem estragar sua estrutura. E, principalmente – essa lição Salvador, Rio de Janeiro e Fortaleza deveriam aprender –, que dá para recuperá-los, mesmo após década de fumação de maconha, sexo explícito, pichação e assaltos em seus vagões.

Há linhas que vão para fora da Região Metropolitana, como a 7 – Rubi; outras que vão às regiões mais humildes e longínquas (a 12 – Safira, que passou por um bom processo de recuperação); outras que ajudam a desafogar o metrô (a 11 – Coral, que atende à zona leste com trens modernos, expressos e com ar condicionado) e, até, uma que tem qualidade de metrô – a linha 9 – Esmeralda, cujos trilhos seguem paralelos à Marginal Pinheiros desde Osasco até o Grajaú, no extremo sul de São Paulo.

Essa última é um modelo: bonita, eficiente e relativamente segura, quebra um galhão para quem trabalha na Berrini e afins. Triplicou sua demanda nos últimos anos, de tão arrumadinha que ficou. É a menina dos olhos do governo para quando for inaugurada a integração com a linha 4 – Amarela, que finalmente dará à rede um caráter radial (sacou o pleonasmo?).

O problema atual da CPTM, enfim, é o mesmo do metrô: superlotação e falta de opções. Cinco das seis linhas estão no limite; prevê-se que, quando 100% ligadas ao metrô, todas vão cuspir gente pela porta. Há, também, relatos de assaltos nas linhas, quando elas entram em favelas, e alagamentos nos trilhos próximos a zonas de risco (Marginal Pinheiros, sobretudo), mas nada que não dê para aturar (estamos no Brasil; incomodados, tirem o passaporte).

Voltando ao raciocínio inicial, dá, sim, para entender os reclames do povo de São Paulo. Estão há décadas ouvindo promessa de conforto, velocidade, de um mínimo de decência em seu tráfego diário. Cada paulistano torra, em média, duas horas do dia em congestionamentos e/ou vagões apertados. Quem não aguenta mais – e ando conhecendo muita gente assim – prefere arriscar comprar um carro e ficar parado na Marginal a ser acotovelado e encoxado nos vagões da linha 3.

Eles têm razão quando dizem que viver aqui é foda. Porque São Paulo é uma cidade rica, rica demais, cheia de coisas boas e gente competente, mas que não avança o suficiente para dar qualidade de vida à classe média, pelo menos no que se refere a transporte. Para embasar o raciocínio, eles comparam a cidade a Londres (que tem um terço da população e sete vezes mais km de metrô) e Paris (que tem 400 km de linhas).

E nós, paraenses acostumados a passar 40 minutos em um ônibus cheio de ninho de barata na BR-316 (tá, em dia de chuva já passei três horas, mas enfim), não temos muita noção do quanto cansa um trânsito organizado e monitorado, porém saturado. Lento. Insolúvel. E comparamos nossos problemas aos de São Paulo, Rio, Curitiba. Nossas referências, se pararmos pra pensar, são o que eles chamam de desgraça, infelizmente.


Por outro lado, eles deve(ria)m entender o nosso lado. Belém, como já resmunguei aqui trilhões de vezes, por exemplo, é um dos lugares mais malcuidados do Brasil. Precisa de transporte público digno, decente, e não o que vemos nas fotos acima e abaixo. Precisa de soluções urgentes. Nossos políticos, incompetentes, ladrões, safados e preguiçosos, nem pensam em fazer um trem urbano; prometem, quando muito, rotatória paga com recursos federais e um ou outro ônibus novo (comprado da frota de sucatas do Rio de Janeiro). E ainda dizem que isso vai resolver o problema da região metropolitana da capital paraense, cuja extensão urbana, daqui a umas três décadas, vai chegar até Castanhal...


Vindo de um contexto desses, qualquer linhazinha de metrô é fundamental e quebra um galhão. Até porque já vi transporte em outras cidades ditas “ricas” – Porto Alegre, Rio, Salvador, Fortaleza –, e, sem exceção, todos são um lixo (isso quando chegam a ser algo, propriamente). Por isso que digo: há quem considere deslumbramento, empolgação, exagero. Mas apliquem o modelo de São Paulo à nossa capital populosa e pré-caótica da região Norte e vejam se ele não é referência.

A solução, enfim, bem ou mal, já está encaminhada aqui em São Paulo. Tem dinheiro, tem governante com o mínimo de formação técnica e profissional, tem mídia de olho, tem pressão popular e especializada e tem projeto – nem que seja para depois da bendita copa de 2014.

Já Belém... Belém vai precisar de muito morador resmungando pra conseguir obter a dignidade que tanto merece. Faço a minha parte, daqui de longe; mesmo esmigalhado num vagão de trem que passa por baixo da cracolândia, nunca paro de pensar na cidade em que nasci, cresci e que, mais por culpa dela do que pela minha, deixei para trás sem um pingo de remorso.