domingo, 25 de dezembro de 2011

On the run


Os últimos três meses foram bem corridos. Difíceis? Talvez. Acho que nunca havia pegado tantas responsabilidades e posto elas nas costas em toda minha vida. Nem quando me mudei – largando dois empregos e uma vida confortável para estudar e tentar a vida em São Paulo, a boa e velha pasárgada dos estudantes de comunicação. Nem quando minha avó faleceu, em 2009, deixando uma lacuna que, até hoje, não se preencheu na família. 2011, certamente, ficará na memória como o ano mais louco que, do alto de meus 22 anos, já vi passar. Mas isso tem um quê de positivo.

Um monte de coisa veio acontecendo, num ritmo e velocidade que me impediram de pensar com calma e, até, passar para o papel – como costumo fazer, teimosamente, à espera dos poucos amigos leitores desse blog. Primeiro, e mais importante: em 2011, mudei de estado civil. Para um homem, criado em uma família 90% feminina e treinado para ser tudo, menos um Don Juan amazônico, foi algo de grande impacto; precocemente ou não, achei minha companhia para o resto da vida no segundo mês de faculdade, e cá estamos, eu e Mayara, os dois casados, morando fora e concluindo o mestrado. Dois nerds por opção, cujo maior sonho na vida é ter uma carreira estável de professor e um apartamento antigo e espaçoso numa rua qualquer da Aclimação, com espaço para dois filhos e um labrador.

No mais, também foi um ano de aumento na família. Nasceu meu terceiro sobrinho – e primeira sobrinha –, a Betina, para trazer alegria e um pouco de safadeza recém-nascida para nossas rotinas. Viajamos às pressas, para uma estadia de menos de 48h em Belém, pra vê-la em seus dois primeiros dias de vida. Depois, de longe, fiquei babando nas fotos e vídeos que a Clarissa me enviou quase diariamente, para alegria da nação. Como já disse em outro momento por aqui, acompanho o crescimento dela nas poucas vindas à terrinha natal e por e-mail e telefone. Portanto: salve, fotografia digital do século XXI. Salve, internet!

Paralelamente, alguns sustos. O papai – ou Lobatão, como prefere ser chamado – passou por doenças, internações e descobriu que a saúde pode ser frágil, mesmo entre aqueles que parecem incapazes de adoecer. Está se cuidando e aprendeu a viver a vida com mais calma e saúde; lição que, cada qual à sua maneira, todos os filhos acabaram trazendo para dentro de suas casas.

Outro episódio complicado foi a demissão, em caráter espetacular, midiático e vergonhosamente calunioso e difamatório, de minha mãe da Santa Casa do Pará, em mais um dos inúmeros causos e baixarias da política paraense. Sorte que ainda existe justiça e a doutora continua sendo reconhecida, tanto pela classe médica como pelos conselheiros da categoria, como uma referência em ética médica e gestão em saúde no Pará – cedo ou tarde, estará fazendo show em algum outro hospital da rede privada de Belém (saúde pública, nunca mais), enquanto os que vivem de cabide político (e de jogar seus crimes nas costas dos outros) estarão mamando noutras tetas.

E a gente, o casal pirralho? Bem, a gente tá naquela loucura que se chama a vida de jovens
adultos brasileiros de classe média que vivem numa cidade de 20 milhões de habitantes. Profissionalmente, foi um ano louco – comecei ele em uma redação de jornal, vendendo a alma e todas as horas livres do dia no intuito de tentar ser contratado. Depois de sair e passar umas semanas à deriva, consegui, finalmente, entrar em um emprego fixo; local que, aliás, é a prova viva de que ambiente de trabalho pode, sim, ser confortável e propício para a qualidade de vida. Pra completar, comecei a lidar com temas dos quais não tinha nenhum domínio – e que, agora, passei a valorizar, respeitar, entender e incorporar a meu dia a dia sem medo de ser demagogo ou superficial.

E tudo isso correndo junto ao mestrado. Semana passada, fiz a defesa do meu trabalho; foi um dos dias mais importantes da minha vida. Percebi, mais uma vez, que todos os desafios, dificuldades e aprendizados dos últimos dois anos são muito mais que um título. São, na verdade, o início de uma carreira baseada na ideia de que, no final das contas, a gente nunca sabe mais que o básico. E deve, diariamente, buscar ultrapassar os próprios limites, concepções, ideias e ideais, apoiados nos amigos, colegas, familiares e professores.

O dia da defesa foi corrido, bem mais rápido do que eu esperava, e certamente numa situação atípica – 21/12, na véspera da vinda a Belém e atrapalhando o Natal dos professores da banca, além da licença-paternidade do meu orientador! –, mas valeu todo o esforço. A notícia da aprovação veio três dias após uma porta na cara bem dolorida, em um processo seletivo que definiria minha vida para os próximos anos; serviu para recobrar as energias e provar que nem sempre a dedicação e o esforço trazem resultados imediatos.

Enfim. Como disse lá em cima, foi um ano bem louco. Como todos os outros, instável, oscilante e caótico, mas nada de que se queixar, no final das contas. Talvez, apenas, uma ressalva – convertida em promessa brega de final de ano –: viver as coisas com calma é mais sensato. Talvez seja mania de ansioso, esse negócio de querer agarrar todas as oportunidades do mundo a uma só vez. Depois de fazer tanta coisa ao mesmo tempo e me atropelar por entre elas, dormindo mal e relaxando pouco, ficou a lição de, enfim, ouvir o que Deus e o mundo têm falado pra todos nós, da geração pós-1980: as oportunidades não sumirão do mundo se a gente esperar o momento certo para agarrá-las.

Agora é repetir como um mantra pós-moderno: que venha 2012. Tenho certeza que, ao contrário do que dizem as profecias, o mundo não acaba e que vou fazer mais e melhor, por mim e pelos outros. Vou crescer e amadurecer – muito.

E agora já chega, que isso aqui tá ficando com cara de diário de colegial norte-americana.

(Sobre a foto: vista do Umarizal, em Belém, numa véspera de Natal morta de quente e chuvosa - bem do jeito que essa cidade gosta)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Sobre ela, a-que-não-deve-ser-mencionada

Tudo explodiu há mais ou menos um ano e meio. Estávamos eu e Mayara no cinema, num dia ótimo e nada estressante, quando, de repente, minha visão escureceu. O coração disparou, o peito começou a arder – e uma sensação de morte iminente começou a tomar conta da minha cabeça. Ia morrer... ou ficar louco, ou sair correndo, ou me matar, ou matar alguém, algo assim. Só não ia ficar numa boa, como estava alguns segundos antes. A sensação veio no exato momento em que o letreiro dos créditos do filme surgiu na tela e as luzes se acenderam. Avisei a ela que tinha sentido algo muito, muito estranho. Preocupados, pegamos o metrô de volta para casa.

Eram 18h. A linha verde estava um caos, a estação Consolação tinha uma fila que começava na rua. A multidão e o empurra-empurra não ajudaram. Continuei achando que ia dessa para a melhor. Fomos para o hospital na hora em que o rodízio do carro encerrou, lá pelas 20h. Minha pressão estava em 16 por 12. Os médicos chegaram a pensar que eu estava tendo um infarto, então passei a noite por lá, fazendo exames. Quanto mais nervoso, mais certo de que ia acontecer uma tragédia. Aquela sensação aguda, porém, não voltou.

No dia seguinte, estava em casa, diagnosticado com “nada de grave”, nas palavras do jovem (e gente fina) clínico geral que me atendeu na emergência. Fiz uns exames na semana seguinte, tudo estava normal – até os níveis de colesterol e glicose, para surpresa da nação. E fui numa consulta a outro clínico; tiozão de meia-idade, com jeito de que tudo sabia. “Teu problema não é aqui”, falou, apontando para o coração, meio risonho, como se já tivesse visto aquela história antes. “É na cabeça, nos sentimentos”. Depois de falar com meu sogro – que é psiquiatra – e familiares, percebi que não ia morrer do coração aos 22 anos, não. Tinha uma “doença” bem menos letal e comum: a ansiedade, que explodira na forma de um tal de ataque de pânico.

Era de se esperar. Desde os 12 anos, já mostrava alguns sinais. Era um moleque agitado, do tipo que não aguentava ficar muito tempo sem o que fazer – ou sem ter notícias de meus familiares, amigos e etc. Em resumo, precisava ter controle de tudo. Se alguém sumisse e não atendesse o telefone, logo achava que alguma tragédia tinha acontecido; se ficasse no meio da multidão do Círio de Nazaré e o fluxo parasse, achava que ia morrer, pisoteado, asfixiado ou ambos.

A claustrofobia se manifestou nessa época. Parei de andar de elevador e subia dez andares de escada, cerca de três vezes por dia, ao sair e voltar para casa. Mas nem eu, nem meus pais achávamos que aquilo fosse sério. “Até emagrece”, atrevia-me a justificar, irônico, para quem estranhasse esse meu hábito jeca-tatu. A mudança para São Paulo com a Mayara, a distância de toda a família, a falta de emprego, dinheiro e lazer, o mestrado, as responsabilidades meio precoces que isso gerou – tudo pode ter ajudado a fazer eclodir a história, embora, certamente, não se possa atribuí-la a um fator isolado.

Para bloquear os ataques de pânico, que aconteceram mais umas quatro vezes, nas situações mais estranhas possíveis – na cama, dormindo; num ônibus vazio; num restaurante, meia garrafa de vinho depois... –, comecei um tratamento. Primeiro, uma ida a um psiquiatra amigo da família, que, por sua vez, me encaminhou a uma psicóloga, com a qual faço terapia até hoje. Paralelamente, passei um tempo tomando medicação antidepressiva (isso depois de ser convencido de que, apesar do nome, o remédio não servia apenas para gente depressiva).

À exceção da primeira semana após o piripaque, não tomei tranquilizante/ansiolítico – me sinto meio dopado, além de achar que ele apenas mascara o problema psíquico. O antidepressivo, apesar dos enjoos e da sonolência nas primeiras semanas, foi uma mão na roda; parei de tomá-lo uns seis meses depois. Serviu, principalmente, para me deixar mais “para cima” e corajoso para enfrentar a vida em uma fase em que aquilo era essencial (e o corpo, sozinho, não dava conta). Mas, certamente, o que mudou tudo foi a terapia – foi nela que aprendi a compreender, buscar as raízes, discutir, externar e enfrentar minhas angústias, medos e etc.

Com o tempo, aprendi, sobretudo, que ter transtorno de ansiedade – e não “doença”; por isso as aspas – não é coisa de fresco ou motivo para se envergonhar; assumir e entender sua existência (e até mesmo sua "função", em doses convencionais) são os primeiros passos para aprender a conviver bem consigo mesmo, já que dificilmente ela desaparece de vez. E passei a recomendar a procura por ajuda especializada a todo mundo que, aos meus olhos de leigo, parece ter alguma questão interna por resolver – talvez, se não existisse tanto preconceito e discurso distorcido por aí, a vida fosse mais fácil para a imensa parcela da população mundial que sofre de algum tipo de transtorno psicológico leve.

Se às vezes ainda sinto sintomas típicos, como palpitações, pensamentos absurdos e invasivos, medo de morrer e/ou ficar louco, etc. e tal? Sim – embora em frequência muito menor, após uns bons meses de mente despreocupada. Mas isso não é frustrante: diferentemente de uma gripe, as coisas não se resolvem em semanas no complexo e altamente subjetivo mundo da mente humana. A evolução importante é que, agora, aprendi a entender meus limites e recursos para conviver com a ansiedade, do mesmo jeito, por exemplo, que um diabético atura a vontade de comer doces e o medo de uma feridinha não cicatrizar bem – com tranquilidade e até bom humor, dependendo da situação.

Ao contrário do que muita gente pensa (e propaga), não é nenhuma via crúcis, nenhum martírio do qual deva me sentir orgulhoso ou envergonhado – tampouco uma espécie de “castigo” da vida, como muita gente dramática, derrotista e, arrisco dizer, egocêntrica costuma dizer. É, acima de tudo, um desses males do mundo moderno que cerca de 20% das pessoas têm de aturar em alguma fase de suas vidas – e enfrentar, para que a convivência consigo mesmo nunca deixe de ser um prazer e um aprendizado contínuos.

(O título é ironia - referência ao monte de gente que tem vergonha, medo ou preguiça de falar sobre problemas psicológicos que já teve de enfrentar algum dia. Demorei um ano pra tomar coragem e escrever numa boa sobre isso; e a sensação é ótima, agora que o fiz. A todos, uma dica: falar dos problemas não é lamentação, e sim parte do processo de resolvê-los!)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Parte II


Agora você fica quietinho e faz tudo o que eu mandar, disse-lhe, de um jeito meio afetado, sussurrando. Pra que suspirar no meu ouvido desse jeito?, pensou, revirando os olhos. Estavam no meio da avenida 23 de Maio, às 17h30; nem que gritasse com um megafone em mãos as pessoas, hermeticamente fechadas em seus veículos no engarrafamento, ouviriam – ou se importariam. Refletiu sobre o dia anterior e chegou à conclusão de que aquilo só podia ser punição. Não divina, porque nunca acreditou nestes misticismos; estava, provavelmente, pagando por ter quebrado a ordem do mundo numa orgia alcoólica em plena terça-feira de agosto.

Olhou ao redor; à frente e atrás, tudo o que via era um sem-número de veículos e ônibus lotados, parados, sem muita alternativa além de esperar. Ninguém buzinava, à exceção dos motoqueiros que passavam a 80 km/h por entre as faixas, histéricos como de praxe. Era uma paisagem surreal, que inspirava certa admiração pelos motoristas, mas também agoniava. Sempre teve fobia de lugares fechados – ou de não conseguir escapar rápido deles, no caso de alguma necessidade urgente. Fugiu do túnel Ayrton Senna porque não suporta ficar parado no trânsito debaixo da terra, inalando monóxido; agora, via o céu nublado da noite de inverno e o movimento de pedestres, mas se sentia mais acorrentado que nunca.

E, me diz uma coisa, quando você comprou esse carro?, perguntou-lhe. Não sabia responder; a empresa é que tinha arrumado o automóvel, com direito a motorista durante a manhã, após uma rápida reunião no dia anterior. Só sabia que era um modelo novo: tinha um GPS – essencial para rodar naquela monstruosidade urbana –, um computador de bordo e TV digital para todos os passageiros. Era daqueles sedãs impessoais de quarentões de classe média alta, cheirando a couro novo e plástico e pronto para pegar 240 km/h em uma estrada. E pensar que, na semana anterior, rodava preguiçosamente num conversível à beira-mar com aquela maldita mulher...

Levou uma coronhada por não ter respondido em tempo hábil. O cano do revólver havia acertado em cheio o local em que havia um corte, ainda em cicatrização, resultado de uma queda na noite anterior. Mas não gritou, apenas disse-lhe que seu patrão era o dono do veículo. Tirou o sangue com as mãos. Sempre ouviu e leu por aí que, nessas horas, o melhor a fazer é ser o menos emotivo possível, mesmo diante das piores ameaças. Não era muito difícil para ele; esconder a dor física, talvez, mas sempre teve que fazê-lo quando era mais jovem, para evitar dar trabalho aos outros.

Sob ordens, saiu da avenida e dobrou na Indianópolis, onde o trânsito corria mais tranquilo. Ah, aquele lugar fazia lembrar sua última passagem por São Paulo... morava num casarão bonito em uma das transversais, junto a uns cinco outros executivos; dividiam os cômodos e, às vezes, as companhias. Mesmo assim, foi o lugar mais próximo de uma residência em que já dormiu na vida. Mesmo os travestis que povoavam o bairro à noite faziam parte do cenário; tinham lá seu charme, e ainda serviam para uma ou outra aventura em uma noite de tédio e solidão extremos.

O propósito de seguir aquele caminho, ao invés de fazer o retorno e seguir para casa, ainda seria descoberto. Sentindo-se em um filme pelo que ia fazer – e prestes a pagar caro pela intromissão –, virou-se para o rapaz franzino, certamente menor de 18 anos de idade, e comentou: essa região aqui é alto padrão, viu, acho que você consegue coisa melhor descendo aqui só com o dinheiro que eu tenho... A resposta foi uma risada tímida do garoto, seguida de uma nova ordem: segue direto, filho da mãe, e não abre mais a boca.

Tinha idade para ser seu filho, certamente. Mas isso não lhe fazia pensar a respeito de desigualdades socioeconômicas – estava tão preocupado com a miséria urbana quanto uma prostituta com a própria reputação. Até porque não queria aquele desdentado torrando seu dinheiro junto aos coleguinhas de periferia. Refletiu, na verdade, sobre a ideia de ter um filho. Sabe-se lá como, nunca teve qualquer objeção a pôr uma criança no mundo. Não precisava nem conhecer a mulher que o iria parir; bastava pagar a barriga de aluguel e montar o quarto da criança, com tudo do bom e do melhor. Só que a rotina não lhe dava tempo para isso. Aliás, não lhe dava tempo sequer para repensar a própria rotina.

Pelo GPS, viu que estavam se aproximando de uma favela da região. A baixada ficava incrustada entre as mansões de alto padrão e era, em geral, habitada por gente trabalhadora, que pagava os impostos e desfrutava da proximidade com o centro para chegar mais rápido ao local de trabalho. Seu mais novo motorista, por sinal, morava lá. Pensou: se esse moleque me largar aqui, posso ir atrás da casa dele, e ficou um pouco mais tranquilo. Dobrou umas cinco vezes e desceu duas ladeiras, em baixa velocidade e com os vidros levantados, para não despertar suspeita dos vigias particulares. Parou em um beco que dava acesso a uma ruela de barracos e foi ordenado a descer do carro.

A expressão no rosto do garoto havia mudado. Agora, parecia mais velho, agressivo e cheio de si; os olhos estavam vidrados, fixos e arregalados. Parecia estar diante de um amigo, com quem faria uma brincadeira de mau gosto. Deduziu equivocadamente que, no caminho, ele havia usado alguma droga sem que percebesse. Sem cerimônias, o jovem – que, pouco a pouco, lhe parecia mais íntimo – apontou o revólver e disparou um tiro em sua direção.

Caiu no chão, gritando, e começou a chorar e implorar para não morrer. Para si, guardava a sensação de que, caso fosse assassinado ali mesmo, ninguém sentiria sua falta – e isso incomodou mais que qualquer zumbido de bala passando próximo a sua cabeça. Com a mesma voz rouca e a mesma cara de quem tudo sabia sobre a vida de sua vítima, o garoto devolveu cada objeto roubado de dentro do veículo, ajudou-o a se levantar e lhe disse no ouvido: só quero que você aprenda a gostar mais da vida, tio. Rindo, largou o revólver no chão, virou de costas e entrou no único casarão de dois andares que havia na rua.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Parte I


O primeiro dia no novo apartamento havia sido tedioso. Chegaram alguns conhecidos carregando bebida, cigarros, maconha e algumas drogas de maior porte; lá pelas 21h, já havia desconhecidos mexendo na geladeira, à procura de algo para comer – que certamente não havia por lá. Outros, mais íntimos, dormiam o sono dos bêbados nos sofás e móveis do flat chique, situado numa ruela de paralelepípedos do Brooklin e montado às pressas após sua transferência para mais uma cidade de negócios. Outros vomitavam pela janela – que droga, pensou, já vou fazer inimizade com os vizinhos.

Tinha 45 anos, mas levava uma vida de 20; só que isso era mais produto das circunstâncias que de sua mentalidade. O início da carreira – jamais interrompida – numa grande multinacional fez dele um homem sem ligações emocionais consistentes: era um cara de pontes aéreas, aeroportos e fast-food; um morador de várias cidades e, por extensão, íntimo de todos os centros corporativos do país. Mas não conhecia ninguém além de si e dos amigos que fazia em suas temporadas fixas; era tão solitário quanto toda aquela gente que tão rápido se apegara a ele em sua primeira noite em São Paulo.

A família nunca foi de grandes laços; o pai, um ricaço que hoje já estava no quarto casamento, largou a mãe grávida aos 18 anos. Ela, por sua vez, estudou, conseguiu ficar rica e deu uma boa criação ao filho único – e o ensinou a ser um cara independente, “mas não desses que fazem filhos e largam a ex-namorada no mundo”. Com medo de repetir a história do pai, não se deixou apegar a ninguém; parafraseando um autor que lera durante um de seus MBAs, “quanto mais profundas e densas suas ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus riscos”. Era, enfim, a peça perfeita no tabuleiro de sua empresa, que o requisitava, semestralmente, em cidades tão diversas quanto Rio Branco, São Paulo, Caxias do Sul e João Pessoa. Sem ninguém para dar satisfação, a vida de galho em galho era mais fácil – e compreensível.

Será que um dia enjoo disso?, perguntou a si mesmo, aproveitando a vista suntuosa da varanda gourmet de seu mais novo lar-doce-lar – dava para a região da avenida Berrini, habitat natural por excelência. São Paulo nunca foi uma queridinha na sua lista, é verdade. Embora divertida e 24 horas, sempre foi organizada demais para ele. E as pessoas, embora educadas, demoravam a entender seu jeitão “fácil” de ser por ali; tanto que todos os amigos que ali estavam eram de outros países. Europeus são frios? Quem fala isso não conhece os brasileiros, resmungou, sozinho, apoiado no parapeito. Sentia-se peixe fora d´água até no maior dos oceanos.

Mas aquela vez era diferente. No mês anterior, deixou para trás uma mulher de caráter tão dúbio quanto o seu. Lembrava-lhe a mãe; bela, sexy, negra de olhos amendoados e voz rouca. Calma e doce, mas misteriosa. Não sabia de onde vinha, onde morava, se era solteira ou tinha filhos – só a encontrava, nessa sequência, em eventos corporativos e motéis de quinta categoria. Com ela, aprendeu a admirar a arquitetura kitsch das suítes temáticas, a apreciar a culinária de microondas dos serviços de quarto e, até, a dormir na mesma cama com alguém. Era igual a ele em tudo – até no apreço por dinheiro e conveniência. Tanto que, quando cansou, desapareceu, deixando-lhe algumas compras parceladas no cartão de crédito. Foi a primeira vez que pediu aos chefes para mudar de cidade.

De repente, um convidado do open house o trouxe de volta à terra; gritou, em inglês, que haviam interfonado da portaria, pedindo para baixar o som. Só então percebeu que era uma terça-feira. Inocente terça-feira. Àquela manhã, saiu de casa bem cedo – de motorista – para comprar uns móveis na Tok & Stok, depois foi à empresa, (re)conheceu alguns colegas de trabalho, almoçou sozinho num restaurante veggie com vista para a Ponte Estaiada. E depois voltou para casa para, mais uma vez, não aguentar o silêncio e correr atrás de companhia. Foi aí que sentou numa mesa de bar a um quarteirão de casa e chamou uns vinte colegas de escritório para começar a noite ali e, em seguida, destruir sua nem conquistada reputação no condomínio.

Pegou o celular no quarto e voltou para a varanda. Ligou para a mãe, que não via há meses – anos? – e de quem sentiu uma estranha saudade, mas ela não atendeu. Vai ver trocou de número, pensou, não seria estranho se não avisasse nada. Afinal, era sua mentora nesse jeitão sem amarras de viver a vida. Mas não se conteve; a raiva, aquela que só uma semana de trabalho, de reuniões, cafezinhos e conference calls era capaz de resolver, veio e subiu à cabeça, e com tudo. Voltou-se aos convidados e os expulsou, um a um, sem motivo aparente. Gritou, jogou as bedidas e os bêbados no hall, bateu a porta com força, apoiou as costas nela e se deixou escorrer até o chão, lentamente. Nem choro, nem riso. Estava estático, sem emoções nem razão para mudar de estado. Era líquido havia 45 anos.

(Inspiração no Bauman...)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Sobre a demissão de minha mãe, Maria do Carmo Lobato, da presidência da Santa Casa do Pará

Mais uma vez, a minha mãe foi demitida - desta vez, pela televisão - por um governo que cede às pressões de uma imprensazinha sangrenta e sensacionalista. Na primeira demissão, à época do governo do PT, foi porque ela denunciou ao jornal O Liberal o calote do governo ao Hospital Metropolitano, que estava há meses sem receber recursos. Agora, foi demitida pelo PSDB após a morte de dois bebês de uma gestação de risco; nada foi apurado, não há provas de que a médica que estava de plantão no hospital tenha omitido socorro. Minha mãe, até ontem presidente da Fundação Santa Casa, foi demitida, provavelmente, por pressão política e porque alguém - além do próprio secretário de saúde e do governador, que são quem gerencia os recursos - tem que pagar. Alguém "mais fraco", será? Não; minha mãe está bem acima disso, é bem superior a este monte de fezes de cavalo e carniça. Por isso, foi demitida.

Ela assegurou nas entrevistas que deu durante todo o dia, para todos os veículos de comunicação de Belém, o que continua confirmando: a Fundação Santa Casa, em nome dela, estava do lado da médica, porque a profissional em questão não omitiu socorro. Há documentação provando isso. Os exames do IML confirmarão que não houve omissão; a morte dos bebês foi uma tragédia que nada teve a ver com a gestão, com a competência de minha mãe. Tem a ver, isso sim, com décadas e mais décadas de omissão, mediocridade, mentes pequenas, mentes pobres de espírito e de coração, que deixaram nossa saúde virar motivo de piada em todo o País.

Há 20 e poucos anos na administração pública, 12 anos de Hospital de Clínicas e mais dois no Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência, mais de uma década no Conselho Regional de Medicina do Pará (CRM/PA) (onde é, inclusive, membro do Conselho de Ética), com pós-graduação em administração hospitalar no Japão, minha mãe, Maria do Carmo Lobato, é professora aposentada (concursada federal e do Estado), otorrinolaringologista, membro do CRM e – graças a Deus – não depende de DAS pra sobreviver.

Aceitou o convite para ser presidente desta fundação por acreditar que trabalha bem – coisa que centenas, ou talvez milhares, de pacientes, amigos e médicos colegas o sabem – e que poderia fazer um bom trabalho no hospital, que foi sucateado nos últimos anos por gestores e governantes os mais variados. Mas foi demitida por um caso não apurado; por um caso que, certamente, não questiona sua competência, tampouco sua capacidade de ser transparente e abrir os fatos para investigação - coisa que desde o primeiro momento alegou querer fazer.

Amigos, volto a repetir o que todos sabem que penso: o Pará, desse jeito, merece o lugar de fundo de poço em que está. Merece, e não tenho mínima vergonha de dizer isso: eu já desisti, covardemente, aos 22 anos, e larguei de mão este lugar de políticos nojentos, sem lei nem moral, que se prostituem por um cargo comissionado e jogam pros urubus quem não tem culpa alguma. Minha mãe vai sair do setor público – espero eu, pois não aguento mais vê-la ser humilhada por essa gentinha, seja PT, PSDB... – e seguirá com sua vida, vida íntegra, sem um único pingo de lama no currículo.

Enquanto isso, o governo nomeará outro(s) “presidentes”; muito provavelmente menos comprometidos, menos competentes, selecionados por critérios políticos, treinados para ficar como cachorrinhos, de boca calada e repetindo os discursos do patrão. A Santa Casa continuará na lama, milhares de grávidas sem pré-natal, sem apoio algum do poder público, continuarão tendo filhos que nascerão mortos à porta de prontos-socorros.

Tudo isso continuará sendo feito pelos governantes sem pulso, medrosos, corruptos e entregues ao sensacionalismo barato. Mas eles passarão. Minha mãe, passarinho.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Bebê em pílulas


A última vez em que estive em Belém foi para casar. Um corre-corre absurdo; meu voo atrasou, cheguei na véspera da cerimônia, fui quase direto para o ensaio, fiquei de um lado para outro atrás dos familiares e amigos que tão raramente a gente vê, tudo isso sem dormir direito – na verdade, eu e a Mayara só fomos descansar já no segundo dia da lua de mel. Pois é: como tudo nessa vida se repete em maior intensidade, eis que volto pra terra natal para passar pouco mais de um dia, sem contar as onze horas de avião, tudo por causa dessa coisinha pequena aí em cima. Minha primeira sobrinha.

Claro, se fosse “só” pelo título aí conquistado, não teria grandes novidades. Já havia ganhado sobrinhos homens bem antes, aos dez anos de idade. Lembro que, quando o João – que, hoje, tá mais alto que eu – nasceu, mal conseguia carregá-lo, de tanto medo de fazer alguma besteira e deixar a Rita furiosa. O Gutinho, segundo na lista, nasceu em 2005. Enfim, o status de tio, para usar um nojentíssimo jargão corporativo, "está no meu DNA" – mas dessa vez, a coisa é um pouco diferente. Moro longe de todo mundo há mais de ano e meio e sou bem mais "crescido" que antes. O peso da mudança - de qualquer mudança - é infinitamente maior.

Talvez seja por isso que tenha me sentido tão velho, aos 22 anos de idade, quando eu e a Mayara entramos na maternidade pra ver a Clarissa – a segunda-irmã-mais-velha, que separava as brigas entre a Isabela e eu e que tomava conta da casa quando nossos pais saíam – e sua cria. O quarto estava lotado de amigos dela e do Murilo; mal chegamos e o paizão já veio oferecendo vinho pra brindar, rosado como sempre. Uma festa só. Passei uns dez, quinze minutos vendo aquele bebezinho (surpreendentemente grande!) se remexer, franzir a testa e esticar as pernas no berço. Identifiquei, ali, a cara de um, o olho do outro – e a personalidade da minha irmã, tão... er... inconfundível.

O que eu e Isabela, que também mora longe da nossa família, sempre conversamos voltou à cabeça naquela hora: Belém, sabe-se lá como e por quê, deixou de ser nossa cidade. A gente gosta de rever a família, os amigos, passear nos mesmos lugares e comer nos restaurantes de sempre, mas, aos poucos, as imagens de lá são mais passado que presente; uma espécie de memória que se atualiza nas datas comemorativas e feriados passados por lá, com uma ou outra figura nova no meio de um álbum de fotos empoeirado.

Talvez por isso tenha vindo uma pontada de tristeza na primeira vez que olhei para a Betina: não vou acompanhar o crescimento dela, nem seus primeiros passos. Quando chegar lá, no Natal ou no Círio, nem a roupa que demos de presente para ela vai servir mais. Num piscar de olhos, vai estar falando meu nome, me chamando de “senhor” (que nem o João, numa postura que a Mayara acha a coisa mais “fofinha” do mundo, nos chama até hoje...), andando e dando trabalho para a Clarissa e o Murilo. De um jeito ou de outro, vamos curti-la em pílulas – mas a qualidade da convivência, e esse clichê me tranquiliza muito, depende muito mais de aproveitamento real que de quantidade de tempo.

Quando a gente decidir ter filhos por aqui, vai ser o mesmo drama, só que a 1.000 km de distância. As posições vão estar invertidas: seremos nós dois, nessa cidade grande, brigando pra criar nosso filho com toda a dignidade do mundo, contrariando a tendência pós-moderna de pais e filhos cada vez mais inconsistentes em seus papéis. Não vou dizer que tenho pressa para chegar a este dia – “mais uns dez anos...”, como diria a Mayara –, mas certamente as caras babonas da minha irmã e do Murilo diante da filha me fizeram pensar no quão gratificante pode ser colocar uma criança no mundo. Só de vê-los juntos por 24 horas, nesse último final de semana, tenho certeza de que vai tudo dar certo. E de que sou só orgulho e saudade dessa família muito unida – e, também, muito ouriçada – que tenho lá do outro lado do país.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Mellow


O cheiro de areia e da água barrenta, metade mar, metade rio, ainda estava forte no nariz – e olha que já havia cinco anos. Todas as vezes que olhava pela janela, sabe-se lá como, via aquela praia malcuidada, mas tão gostosa, que ficava guardada nas imagens da infância. Aquele clima estável e aquele arzinho puro que tratava de vir com força e bloquear as baforadas de calor do centro da cidade. Apesar de tudo, era confortável – talvez, reconfortante.

A paisagem, agora, era outra – a de uma cidade grande que, para surpresa geral, sabia descansar nos fins de tarde de julho. O bairro era calmo; nem às 18h se via mais que dois, três veículos acumulados nas esquinas. A escolha daquele cantinho fora intencional, já que, de bagunça, bastava a rotina de trabalho durante a semana. E os mil percalços no caminho para casa.

No lugar do mar, ao fundo da vista da janela havia uma avenida de oito pistas que, mais à frente, vira rodovia e leva até o litoral. Um pouco acima, em outra grande avenida, um shopping, uma linha de metrô, vários hospitais e um terminal de ônibus. Apesar de tudo, imagens de uma vida tranquila.

De alguma forma, tudo aquilo lhe lembrava a cidadezinha de 50 mil habitantes em que as férias eram curtidas, junto com sei lá quantos familiares e amigos num apartamento que, dizia-se, fazia parte do primeiro prédio construído por lá. A relação de amor e ódio com a cidade grande se repetia naquele fim de mundo: 30 dias longe de casa eram tortura; 15 ou 10, bênção dos deuses.

À noite, andava sozinho, lanterna em mãos, nos arredores, brincando de iluminar as ruas sem asfalto ou sinalização; de manhã, de frente para a água, fazia castelos de areia gigantescos, lixando-se para a maré alta e suas ondas destruidoras de pequenos empreendimentos infantis. E até comia peixe – que, na cidade, fazia questão de odiar -, caso fosse pratiqueira fresca, só para abrir o apetite para as invenções culinárias da avó.

A praia, infelizmente, era (ainda é) um nojo. Suja, bagunçada, barulhenta e poluída. Os carros, enfileirados, disputavam a potência de seus amplificadores – tudo acompanhado por barracas sem tratamento de esgoto, pilhas de lixo jogadas na areia e eventuais arrastões no fim de tarde. Havia, ainda, as horas perdidas nos engarrafamentos na ida e volta pela estradinha enlameada, em que, não fossem as fitinhas musicais tocadas à exaustão no carro do pai, toda a família enlouqueceria.

Mas a companhia dos pais, irmãs, tios, primos e avós - sem contar os agregados - compensava tanta inadequação e falta de civilidade. Quando queria esquecer tudo, tapava os ouvidos, corria para o mar e ficava duas, três, quatro horas tomando banho, sozinho, com água até o peito. Lutava contra as ondas e apostava aguentá-las sem ter de mergulhar. As mãos ficavam enrugadas e os olhos, doloridos pela alta concentração de sal. Só saía de lá à hora de voltar para casa ou tomar água de coco com o avô debaixo do guarda-sol.

Pensou consigo mesmo, da janela de sua “nova” – nem tanto – casa: onde é que eu estava em julho há uns dez, onze anos? Provavelmente catando conchas no Atalaia ou no Farol Velho. No lugar do cheiro de areia, porém, sentiu o aroma de algum vizinho cozinhando o jantar. Ao invés do calor de 30 graus e da ventania, um clima ameno – e um pôr-do-sol que, às 17h30, já estava bem avançado. Em vez de uma dúzia de familiares espremendo-se em um único apartamento, uma esposa linda e dedicada e um cachorrinho, com direito a eventuais visitas de final de semana.

Não há, entre um e outro, melhor ou pior, pensou; como todas as saudades maduras, aquela, mais que tristeza, trazia nostalgia, paz de espírito. Era a prova de que, ao contrário do que meio mundo lhe disse, aquela cidade não o transformou em um ser mecânico, desprovido de emoções. Tornou-o, isso sim, criatura saudosa e capaz de valorizar pequenos sabores, cheiros e imagens.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Vilãs que te fazem repensar a vida

Tá: antes de mais nada, uma justificativa para ter ficado tanto tempo longe desse blog há de ser feita. Ultimamente, a dissertação do mestrado, os preparativos do casório e a procura de emprego fixo e estável – ainda não acredito que essa situação foi resolvida, sério... – viraram prioridades; quando batia a inspiração de escrever, era sempre no blog de poesia – mais subjetivo e tal (té fresqué, maninhu?).

Mas eis que uma conversinha fiada via Facebook com uma amiga me fez pensar em um dos temas que mais têm me perturbado ultimamente: a ficção seriada. Oras, além de ser um noveleiro doentio – eu e Mayara já deixamos de sair com amigos para ficar no sofá vendo tevê... admito –, tenho a ficção seriada como objeto de estudo no mestrado. Por obrigação, portanto, gasto meu tempo ocioso no engarrafamento (dirigindo ou nos ônibus lotados da linha 475R-10) pensando a respeito das telenovelas e de suas (algumas) qualidades e (muitos) defeitos.

E quem dá graça a nossas historietas televisivas até hoje, a despeito da repetição interminável de tramas, argumentos e personagens? Parem pra pensar – mocinhos ou bandidos? Heroínas e heróis, chatonildos que fazem o bem e perdoam até Hitler, ou psicopatas incuráveis, do tipo que dá gargalhada ao ver algum coitado se espatifar ao cair de um barranco ou morrer carbonizado num incêndio? Claro que os vilões têm mais graça – e, coincidência ou não, os do sexo feminino são muito, mas muito mais true.

Como bom representante da safra nascida em 1989, tenho em mãos ótimos exemplos de damas que fizeram casais protagonistas e mocinhos comerem o pão que o diabo amassou – mas todos de novelas recentes. Não que não conheça Odete Roitman e afins, mas foram as vilãs dos anos 1990 e 2000 que ficaram na memória – e quando digo memória é sério; já tive pesadelo com essas representantes ficcionais do Belzebu (ou Tinhoso, como a gente diz no Pará).

Alguns elementos em comum entre elas? O desapego aos sentimentos alheios, o apreço por dinheiro, desvios variados de caráter e personalidade – às vezes uma beleza sensual, até. Mas é nas diferenças que elas têm graça, por subverter o jeitão típico do vilão melodramático. Umas são loucas, perdidaças das ideias; outras, perversas, mas muito conscientes do que fazem. São criaturas que, de tão más e, por vezes, caricatas, te fazem pensar se o Sarney é, de fato, a pior coisa que pode aparecer na face da Terra. Aí vão oito exemplos dignos de pena de morte (e de uma boa olhadela no Youtube, também):

Marta (Lilia Cabral)
“Páginas da Vida” (2006)


“Não quero essa, não, tá com defeito!”. Sabe do que a Marta tava falando quando disse essa frase? Não, não era de uma tábua de passar roupa: era de sua neta portadora de Síndrome de Down. Isso diz tudo sobre a personagem da genial Lilia Cabral – uma avó e mãe despudorada, insensível, amargurada, dominadora, frígida e nojenta, que renega a criança logo após a morte da própria filha e tem como única companhia na vida o marido submisso, Alex (Marcos Caruso). Em outra cena emblemática, este lhe dá uns belos tabefes em plena noite de Natal, após saber que ela planejava vender outro neto deles ao pai biológico (!). Sabe o que ela faz em resposta? Dá uma mordida no braço do cara. Nada mais a declarar.

Cristina (Flávia Alessandra)
“Alma Gêmea” (2005)


É o tipo de vilã que salva uma novela lenga-lenga (embora boa). Com sua obsessão em conquistar o ricaço e pomboca Rafael (Eduardo Moscovis) e seu figurino impecável – terninho vermelho-vulcão e cabelo preso –, a loira faz as vezes de “governanta” e braço-direito do botânico enquanto, de todas as maneiras possíveis, tenta queimar o filme da índia Serena (Priscila Fantin) com o cara. É tão, mas tão surtada, que, nessa ordem, causa a morte da própria prima, aprisiona e tenta envenenar aos poucos o amado e, no final, morre num incêndio na mansão que tentou roubar para si.

Clara (Mariana Ximenes)
“Passione” (2010)


Expoente da nova geração de bons atores da TV, Mariana Ximenes chutou o pau da barraca com sua primeira vilã – uma psicopata mais fria que o norte da Rússia, capaz de planejar a morte do próprio “amado”, o italiano Totó (Tony Ramos), só para ficar com sua herança, enganando não só a ele, mas toda sua família. Vítima de abuso e exploração sexual quando jovem, a pseudo-enfermeira acumula um sem-número de crimes na ficha ao longo da novela – e, melhor de tudo, consegue escapar ilesa no final, tomando conta de um idoso ricaço em um paraíso fiscal qualquer, enquanto seu comparsa Fred (Reynaldo Gianecchini) vai para o xilindró, pagando por um homicídio que ela cometeu.

Bia Falcão (Fernanda Montenegro)
“Belíssima” (2006)


Sabe aquela famosa frase “Pobreza pega”? Pois é, imagine Fernanda Montenegro, com toda sua fineza e seus 50 anos de carreira na TV e no teatro, dizendo isso. Mais: imagine Fernanda Montenegro portando uma pistola e metendo bala no próprio genro. Isso é Bia Falcão, a vilã que, entre otras cositas más, conseguiu forjar a própria morte e armar contra a própria filha durante toda a trama de “Belíssima”. Exemplar raro de vilão – aquele que, apesar de tudo, é bem racional e sabe não valer um fio de cabelo –, a personagem marcou época por seu ódio à classe média e aos pobres e por sua capacidade de jogar os bons costumes da terceira idade na lata do lixo.

Silvia (Alinne Moraes)
“Duas Caras” (2007)



Sua franjinha impecável e seu bocão sexy conquistaram o vilão Ferraço (Dalton Vigh) – mas só por um tempo. Quando viu que a loucura da moça era acima do possível, até o homem inescrupuloso, que deixou a mocinha Maria Paula (Marjorie Estiano) na miséria após roubar sua fortuna, saiu em debandada. Com isso, dá para ter uma ideia do caráter de Silvia, a filha da ricaça Branca (Susana Vieira) que se transforma em uma psicopata de primeira ao longo da trama de “Duas Caras”. Ciumentinha no início, a vilã perde as estribeiras e tenta até matar afogado o filho pequeno de Ferraço e Maria Paula, além de se jogar de uma escada para estragar sua festa de aniversário. Adivinha o final dela? Louca e internada, conhece um milionário francês, foge do País e ainda leva a tiracolo seu motorista e amante. Tão previsível...

Flora (Patrícia Pillar)
“A Favorita” (2008)


Na boa? Ainda vai demorar muito para aparecer vilã tão fenomenal no horário das 21h quanto a Flora de “A Favorita” – provavelmente o melhor papel que a excelente Patrícia Pillar já teve em telenovelas globais. Um pano de fundo contextual ridículo – uma dupla sertaneja em que ela era o “lado fraco” –, misturado a uma personalidade invejosa e vingativa, faz com que Flora faça de tudo para destruir a vida da ex-amiga Donatela (Cláudia Raia), mesmo após matar seu marido e passar 18 anos na cadeia. Após reverter o jogo, fazendo o papel de santa, e logo depois ser descoberta, a quarentona sexy vai até o fim em sua ânsia de vingança, tramando contra a vida até de seus comparsas. Cagando e andando para o fim trágico que se lhe projeta no fim da trama policial de João Emanuel Carneiro.

Nazaré (Renata Sorrah)
“Senhora do Destino” (2004)


O famoso “rir para não chorar” da imensurável vilania de Nazaré, antagonista-mor de “Senhora do Destino”, era necessário para conter os ânimos do telespectador politicamente correto. Lembrada até hoje pelo público, a diaba e ex-prostituta sequestrou a filha pequena de Maria do Carmo (Susana Vieira), matou o marido – empurrando-o de uma escada, coisa que fazia frequentemente com outros pobres coitados durante a trama – e fez de tudo para destruir a mãe biológica de Lindalva (Carolina Dieckmann). Cômica até o diabo dizer chega – quem não lembra de vê-la olhando-se no espelho e dizendo “Eu sou um pitel!”, ou chamando o marido de “Josimerda”? –, Nazaré acabou como as demais vilãs da ala psicótica: atirou-se de uma ponte de 90 metros de altura ao ver que não tinha alternativa. Ah, o prazer de viver despreocupadamente...

Laura (Cláudia Abreu)
“Celebridade” (2003)


Ela era chamada pelo amante – um nada convincente Márcio Garcia – de “cachorra”. Não tinha palavra mais apropriada: para infernizar a vida de Maria Clara Diniz (Malu Mader), a celebridade que dá título à novela, Laura vira sua assistente e, aos poucos, começa a destruir a protagonista. Em seu currículo, estão armações, romances tórridos com gente como o mau-caráter Renato (Fábio Assunção), editor de uma revista de fofocas, e até o assassinato do empresário Lineu (Hugo Carvana). Assim como Nazaré em “Senhora do Destino”, a graça de Laura era seu jeitão “sou-bandida-com-orgulho” – até no final as duas se parecem: junto ao amante, a “cachorra” morre no último capítulo. Mas para o público a vingança foi mais cedo, na cena do espancamento dela por Maria Clara - a mocinha a pegou de jeito no banheiro de uma festa, ainda na metade da trama.