segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Luiza*



Quando se deu conta, estava dando risada sem motivo aparente na mesa do barzinho, em algum lugar entre o Soho, Boa Vista e o sítio em que passava férias com a avó. Todos a fitavam, meio assustados. Voltou à tona depois de um sacolejo do namorado, um inglês típico, bobão e muito bem-sucedido que havia conhecido na fila do elevador do teatro, algumas semanas antes. Que diabos foi isso?, perguntou-lhe. Minimizou, disse que havia perdido o fio da meada da conversa, só isso.

O mais estranho era que falavam da morte de um grande amigo seu, atropelado algumas semanas antes enquanto distribuía panfletos turísticos perto da London Bridge. Percebeu que aquilo foi o que realmente lhe tirou o equilíbrio, o foco. Já morava ali há seis anos, mas a companhia do amigo – um gay inveterado, que não se sentia à vontade para ser quem era até fugir do Brasil e do pai militar – era a única coisa que a mantinha de pé, que a fazia engolir em seco a ideia de não ter mais família. Como poderia estar rindo de sua morte? Onde estava sua cabeça? Era o que o pessoal da mesa também se perguntava.

Não era a primeira vez que apresentava sinais de loucura. Já tinha tido alguns bons surtos desde os tempos de Roraima – quando aquele estado pequeno, provinciano e pouco desenvolvido lhe fazia arrancar os cabelos, pensar em dar fim à própria vida, enfiar-se dentro de uma geladeira, querendo a um só tempo morrer e fugir do calor lancinante das tardes de domingo. Os pais a haviam internado algumas vezes, chegaram a acreditar que tinha esquizofrenia. Mas, curiosamente, sua inteligência e capacidade e fazer amigos permaneciam intactas ao atravessar a adolescência.

Chegou à universidade – a primeira da família a consegui-lo – e teve um bom histórico, apesar das preocupações que, vez ou outra, fazia sua família passar. Experimentou algumas drogas, namorou homens e mulheres que pareciam saídos de lugar nenhum, desapareceu de casa por dias, semanas; sabia-se e se sentia profundamente instável, tanto que, ao pegar o diploma de Biologia em mãos e ser convidada a seguir carreira na pesquisa, largou tudo e decidiu trabalhar em uma livraria na periferia de Londres. Semanas antes de se mudar, os pais e a avó morreram em um incêndio no sítio. Estava há dias sem vê-los. E decidiu ver a si mesma a uns bons quilômetros de distância dali, onde a linha do Equador não estivesse sobre sua cabeça e a solidão tivesse – vá lá – justificativa.

A vontade de rir, agora se lembrou, veio por conta de umas imagens que lhe vieram à mente. Sempre as imagens; os sinais de que sua cabeça não estava tão boa quanto seu psiquiatra, um velho inglês barrigudo que fumava enquanto a atendia, acreditava. Ela e o amigo gay, juntos, seminus, largados na grama fumando um baseado. Um rapaz alto, mal encarado, aproximando-se. Os dois rindo para ele, depois seguindo-o, depois os três transando em um beco úmido e quente na periferia. Em seguida, viu a si mesma chegando à livraria atrasada, desgrenhada e com um gosto de cigarro e sexo nos lábios. Aquilo havia acontecido?

Sentiu uma pontada na cabeça e pediu aos amigos para que a levassem ao hospital. Era sempre essa sequência: primeiro, alguma memória bizarra com o amigo morto, depois uma crise de riso, depois dores horríveis na nuca, o desespero e a perda de consciência. Vomitou na porta do bar e mudou de ideia, disse que preferia ir para casa, e a pé. Deixou o namorado com os amigos, sem se despedir. No caminho, teve a impressão de estar sendo seguida, gritou o nome de alguns autores obscuros da literatura holandesa para uma adolescente que atravessava a rua, admirou as ruas iluminadas de Natal e se deixou rodopiar e cair no chão, duas quadras antes de chegar ao destino. Novamente, rindo sozinha.

Sentiu como se as costas caíssem sobre um pântano, gostoso, macio e bolorento. Chovia forte – que horas havia começado? –, a rua estava vazia. Arrancou a blusa, deixou os seios ao relento, meteu as mãos por baixo da saia e começou a se masturbar, mecanicamente, como se fosse um hábito noturno típico. Estar ali parecia muito confortável, passaria o resto da vida naquela cena, se pudesse. Cada vez mais, as imagens que seus olhos tocavam pareciam partes de um filme, e dos mais sem nexo a que já tinha assistido. 

Certa hora, começou a gritar em português o nome da ex-namorada quarentona de Boa Vista. E da mãe. E do pai. Pensou estar deitada na grama do sítio, cercada dos cachorros e com o cheiro de chuva equatorial invadindo suas narinas. Sentiu um cheiro forte de farofa queimada, resquício das tardes na cozinha com as primas adolescentes; lembrou-se do laboratório encardido da faculdade, do nariz adunco de um professor, do rosto rosado e convidativo de seu chefe na livraria, um grego que parecia saído de um porta-retrato. Já não sabia onde estava, mal lembrava seu nome, sua profissão ou onde tinha estado quinze minutos atrás. Dali a alguns minutos – ou seriam horas? –, uma senhora sentou ao seu lado, pegou um celular e começou a gritar, em um inconfundível inglês londrino, que havia uma emergência. A velhinha apalpou sua cabeça, com olhar caridoso – e, nessa hora, sentiu um peso enorme caindo sobre seus ombros. Como se aquelas mãos macias e pequenas acariciassem o medo.

Foi aí que, enfim, caiu em si. O tumor crescia mais rápido do que a sensação de morte que lhe cercava há dois anos.

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* Em tempo: esse texto é o primeiro de uma série que eu e a Mayara vamos tocar num projeto paralelo, que fica no blog Em Trânsito. As postagens serão por lá. Visitem! :)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

“Agilize o atendimento. Na sua vez, fale somente o necessário.”


A simpática mensagem, pregada à porta da repartição, só foi vista na saída, mas bem que ajudaria na preparação dos ânimos. Chegamos uns 20 minutos antes da hora. Mais de um mês antes, também foi preciso ir lá para marcá-la. Pessoalmente. Pegar fila. Preencher um papel, mostrar documentos. Hora marcada para atendimento? Quase uma proposta de campanha, não?

Setor público, é verdade, não surpreende ninguém no Brasil. No mundo, aliás: conheço gente que demorou quase um ano pra conseguir marcar consulta em Portugal (!). E, também, gente que passou a madrugada mofando em maca num hospital em Paris – e teve de subornar o motorista da ambulância para ter como voltar pra casa. Enfim, a decadência é notória e universal, e não exclusividade nossa. De todo modo, a gente sempre tem aquele pensamento imbecil de que, por algum motivo, um dia vai ser diferente – e conosco. Ser atendido pontualmente às 15h parecia uma coisa possível, no fim das contas; devem estar fazendo isso pra reduzir filas, pensei.

Santa inocência: era só pra eles poderem controlar a quantidade de trabalho por dia. Subimos um lance de escadas e lá estava ela, a sala de estar do capeta: cadeiras gordurentas, ar fedido e quente – fazia uns 34 graus lá fora –, bebedouro enferrujado, portas velhas, adesivos pregados na parede, funcionários de saco cheio e um punhado de gente mal humorada como eu. Em todos os quadros de parede (e até fora deles), textos em Times New Roman tamanho 60 informando que desacato a funcionário público é crime. Estratégico, não? Sentei, olhei à frente e desejei que aquilo fosse algum esquete televisivo, ao invés de minha tarefa de quinta-feira à tarde.

Duas brigas ocorriam quase simultaneamente na pequena sala em que, por obra e graça de Nossa Senhora do Serviço Público Falido, todos os registros profissionais da maior cidade da América do Sul eram preparados. Num canto, um senhor que parecia ter uns 70 anos de idade resmungava, em fluente portunhol, com um funcionário de camiseta que ostentava, à frente de sua mesa sem computador ou papel e caneta, um adesivo com os dizeres “setor de imigração”. O que aquele serviço fazia ali eu não sabia, mas o velhinho estava bem confuso – e o nosso querido atendente concursado só sabia dar a resposta-padrão: “não fazemos isso aqui”. E emendou: “Olha, não posso te garantir nada, mas acho que você tem que ir pra outro lugar”. E apontou para fora da sala, rumo a algum ponto vago entre o Ministério do Trabalho e Emprego, a terra natal do cara e a rua Martins Fontes. Ficou desolado, o pobre coitado; senti que realmente precisava resolver seu problema e saía dali sem ter dado um passo sequer.

No outro ringue armado, uma garota com ar de Higienópolis que – só depois entendi – era profissional formada em Cinema, Rádio e TV e queria tirar seu registro como técnica de audiovisual. O problema é que isso não existia para a gerente da repartição, que só vislumbrava para a moça a chance de se registrar como radialista – mesma categoria em que, no dia em que fomos lá marcar horário, um maquiador de programa de auditório queria se registrar. Discussão vai, discussão vem, a moça liga pra faculdade, a gerente de área arruma um exemplar encardido da CLT e chega-se à brilhante conclusão de que ela podia ter não só um, mas dois registros: o de radialista e... o de Artista, assim mesmo, com “A” maiúsculo. Era o mais próximo da sétima arte, digamos, que ela encontrara. A jovem Artista chegou pouco depois da gente, 15h10, e permaneceu quando fomos embora, umas 16h20. Mas seu pandemônio trabalhista parecia estar sendo resolvido, ao menos.

E o seu problema no meio disso?, você deve estar se perguntando. Pois bem, esperei minha vez pacientemente na fila que se desenhou à porta da sala. Percebendo que a gente não avançava, resolvi perguntar pelo tal horário marcado. Descobrimos, claro, que era bom demais pra ser verdade: a recepção fez o agendamento para outra data e hora. Não fosse a gerente, única criatura prestativa por ali, o funcionário altamente qualificado para relacionamentos interpessoais que falou conosco nos teria convencido a ir pra casa chupando dedo – “não posso fazer nada por vocês”, sintetizou.

Obviamente, só saímos de lá com o registro profissional – um simples adesivo com o número na carteira de trabalho, que demorou 40 minutos para ser confeccionado. Enquanto a coisa se resolvia, no entanto, fui ao banheiro e tive a sorte de apreciar um belo exemplar da poesia brasileira de azulejaria de sanitário. Num canto encardido, alguém cravou Renato Russo a toques de marca-texto: “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...” – assim mesmo, com reticências. Sem entender a relação entre isso, o funcionalismo público sempre imune a adjetivos elogiosos e o conceito de “falar somente o necessário”, voltei pra casa com dois quilos a menos de papelada na mochila, a alma lavada e a certeza de que todos meus colegas de trabalho vão sofrer bastante nas próximas semanas e meses.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

DC


Num dia daqueles, com direito a duas horas e meia de engarrafamento, tempo gélido e chuvoso e um cansaço que não cabia mais nas 24 horas do dia, peguei o celular no impulso, corri nos favoritos e quase aperto no nome dele. Até julho, alguns segundos me separavam de poder matar a saudade, ouvir sua voz – mesmo que, muitas vezes, a conversa se tornasse uma sessão mútua de resmungos (ah, as semelhanças entre pais e filhos...).

Certas coisas, de fato, só falava com ele. Trocas que, não percebia, eram essenciais para levantar os ânimos, amenizar preocupações, sentir que o tinha por perto. E hoje elas estão aqui, caladas no peito e gritando dentro da mente sempre que a saudade aperta. A dor de cabeça que vem nessas horas, fortíssima, é um sinal de que, por dentro, a ideia ainda está longe de ser processada com tranquilidade. Aliás, há condição mais tranquila – e, ao mesmo tempo, cansativa – que o vazio?

Tylenol para suportar; está perto de completar três meses.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Despedida




Todo mundo ganha um super-herói pra se orgulhar em sua vida. E geralmente ele aparece bem cedo, desde os tempos de útero materno. É um cara a princípio desajeitado, que pode até não ter as artimanhas para conquistar um bebê recém-nascido, mas que, aos poucos, se torna o porto seguro que toda criança deseja ter. Um pai é uma metade; uma raiz que nos prende a nossa identidade, às nossas crenças, que molda nossa forma de pensar e nos atribui uma forma própria de olhar para o mundo.

Há exatamente uma semana, fomos surpreendidos pela perda dessa figura tão importante. Uma partida precoce, de certo, mas que, de algum modo, já era esperada por ele – e temida por todos nós. O Lobatão, como carinhosamente costumávamos chamá-lo, vinha enfrentando a debilidade física há mais ou menos um ano com muita coragem. Sempre confiante, enfrentou várias internações, obedeceu seus colegas médicos e, o mais importante de tudo, passou a valorizar a vida e ter sua saúde como prioridade.

O Lobatão foi um homem de muitas virtudes e poucos, bem poucos, defeitos. Médico traumato-ortopedista apaixonado pela profissão, gostava de meter a mão na massa: tirar plantão, operar, atender no sistema público de saúde e distribuir sorrisos e brincadeiras por onde passava. Serviu nos mais diversos órgãos – Iasep, Câmara Municipal de Belém, URES Doca, Assembleia Legislativa – e fez parte da equipe do Pronto-Socorro do Guamá. Passava do horário pra atender todos os pacientes que faziam fila para se consultar com ele; trabalhava horas seguidas e se orgulhava das cirurgias complexas que conseguia realizar. No final da vida, após meses de recuperação, voltou a exercer a medicina que tanto amava, uma vez na semana, na Câmara Municipal.

Mesmo assim, com uns seis empregos e uma rotina atribulada, foi um pai exemplar. Não tinha luxos: tudo o que precisava era de um bom papo, uma rede de embalar e de todos à sua volta. Cuidou de nossa educação, de nossa saúde e espelhou em nós seu caráter e sua dedicação exemplar à família. Como bom pai, fez tudo isso sem pedir nada em troca, pelo simples prazer de ver nosso êxito e nosso crescimento pessoal e profissional. Além disso, soube aproveitar a vida: deixou em nós lembranças inesquecíveis das férias em Salinas, das brincadeiras e códigos que mantinha com cada um de nós, das caronas para as festas e das conversas madrugada adentro. Chorava e ria com facilidade, o Lobatão: quando dois de seus filhos se mudaram para Marabá e São Paulo, não soube se despedir em aeroporto. Preferiu dizer um até logo e esperar as visitas e ligações – que, caso não viessem, eram devidamente cobradas. E ai dos filhos que viviam em Belém e inventassem de sumir por mais de quatro ou cinco dias...

O papai era um cara de muita fé, confiante na palavra de Deus: quando o medo de deixar esse mundo batia à porta, dizia que tudo o que queria era a oração de todos, para que, caso viesse a morrer, sua alma descansasse em paz e reencontrasse seus entes queridos lá no paraíso. Não precisou pedir: nos quatro dias em que se preparou, no Hospital Saúde da Mulher, para ir ao encontro de Deus, recebeu visitas e orações de todos. Nossa esperança era que sua recuperação viria lenta, mas certa, como aconteceu nas últimas vezes. Ele, por outro lado já não se sentia seguro; preparou o terreno, pediu para se despedir dos filhos assim que foi para a UTI, doou suas roupas. Antes de ir, porém, realizou um sonho importante e ganhou um semblante sereno que há meses não víamos naqueles olhos já cansados da luta. Talvez a sabedoria e a certeza de que a hora estava chegando tenham se encarregado de prepará-lo para uma despedida a seu modo: repleta de amor, união e esperanças de um futuro próspero e melhor.


Já faz uma semana que o Lobatão nos deixou. Os ritos da despedida foram conforme sua vontade: jogamos suas cinzas na orla de Icoaraci – a janela para o rio que Belém ainda preserva e que, para ele, era um ponto garantido para esfriar a cabeça e tomar uma água de coco. No velório, inúmeros gestos de carinho, palavras de apoio e orações foram direcionados a ele; difícil é recordar de todos os amigos, entes queridos e colegas de profissão que prestaram suas homenagens naquela manhã ensolarada de sábado. Nossos corações e mentes ainda estão atormentados. Os olhos ainda insistem em se encher de lágrimas a cada almoço barulhento, a cada canção brega ou da Jovem Guarda que toca no rádio, a cada foto desbotada que encontramos nos álbuns de família – ou a cada vez em que, emocionados, nos olhamos no espelho e encontramos seus traços, seu jeito de andar, sua postura, seu rosto, suas virtudes e seus defeitos, em cada um de nós. Perdemos nosso herói, nosso companheiro de todas as horas, nossa metade, sangue do nosso sangue e carne da nossa carne.

Ou melhor: não perdemos. Apenas deixamos seu espírito seguir no curso natural, rumo ao encontro da vovó Sinhá e de todos aqueles de quem ele sentia saudade. Temos a certeza de que, lá, ele está mais confortável, cercado de paz e bons sentimentos. A companhia física se extinguiu, mas temos certeza de sua felicidade e seu orgulho de nos ver, aqui, lutando para viver a vida com paixão e dignidade, conforme seus bons ensinamentos e lições. Aprendemos assim, dia após dia, a conviver com essa lacuna que o dia 14 de julho de 2012 nos deixou, na certeza de que um dia a dor se converterá na mais bela e pura das saudades.

Descanse em paz, nosso Lobatão querido e amado.

domingo, 17 de junho de 2012

Cais


Acordou assustada, com as mãos ainda entrelaçadas sobre a barriga e o corpo cheio de cansaço. Sinal de que a noite ainda não havia sido atravessada. Olhou para a janela; continuava vendo as luzes do porto e a cortina d´água da chuva noturna. O barulho vindo de fora indicava que o mar estava revolto – e subindo. Que não chegue no nosso chão, pensou, mamãe ficaria furiosa. Essa dificuldade para dormir vinha junto com os enjoos, a preguiça de sair de casa, de brincar, de existir. Os cinco irmãos, logo percebeu, dormiam pesado.

Levantou-se e seguiu, em silêncio, até a cozinha. Tomou cuidado; a madeira tinha uma acústica traiçoeira, podiam notá-la andando pela casa só pelo sussurro das tábuas que se esfregavam. Na ponta dos pés, com medo de que o mar respingasse no pijama, atravessou o corredor. No caminho, porém, sentiu que alguém a seguia – logo viu que o barulho vinha do quarto dos pais. Encostou-se ao lado da porta improvisada com panos e os ouviu fazendo sexo.

Aquele som não lhe era estranho. De fato, tão comum quanto as incontáveis surras que o pai dava na mãe, uma jovem que fazia ponto na orla da cidade. Ele, sempre molhado em suor e enfurecido pela bebida, chegava em casa aos berros, após mais um dia de trabalho pesado. A imagem dos seis filhos – cinco meninas, que ele considerava inúteis, e um menino que nascera “com defeito” – e da esposa comendo na cozinha fazia com que se sentisse um escravo da rotina. Gritava com as crianças, batia na mulher e terminava a noite transando com ela pelos cômodos da casa – cozinha, banheiro, quartos. Os gemidos violentos ressoavam nas paredes, deixavam o pequeno imóvel com cheiro de sexo e embalavam a noite das crianças, junto à brisa do mar e ao barulho dos navios que cortavam o mar sujo da periferia.

Tateando as paredes da casa, perturbada pelos sons e suores do quarto vizinho, a menina se sentia suja. Correu rumo à cozinha, dessa vez sem se preocupar com o barulho, abriu a geladeira e virou uma garrafa inteira do líquido amargo que enlouquecia o pai. Sentou-se e tentou aproveitar o momento, sem pensar no que teria de aguentar depois. Encarou aquilo tudo como uma brincadeira: não estudava, não se divertia, não tinha o que fazer com os irmãos. Passavam o dia andando pela casa, sob as ordens da mãe, às vezes pediam dinheiro nas ruas do centro. Quem sabe hoje, com a cabeça rodando, descobriria o que o pai via de tão bom naquele negócio que nunca faltava na geladeira? E ainda havia como livrar-se da dor que aquela e outras noites sempre lhe impunham...

A primeira vez que aconteceu foi numa noite parecida com essa, pensou, vai ver por isso que acordei. Estava chovendo forte, dia de semana, e o movimento no porto era o mesmo das seis da tarde. Quando acordou, só houve tempo para que esboçasse um grito, logo contido pelas mãos ásperas e peludas que lhe taparam a boca. Seu corpo foi penetrado com violência ao longo de uns três minutos; ainda não estava pronto, mas não tardou a se habituar às lançadas quase semanais do homem entorpecido e fétido que invadia sua cama sem alarde. Ao final, recebia um beijo na testa e voltava a dormir, torcendo para que o dia seguinte fosse mais fácil e menos dolorido. E que, dali a algumas semanas, não viessem mais bichinhos para tirar da barriga com a ajuda da mãe experiente.

As lembranças a haviam deixado melancólica, mesmo sob o efeito anestesiante da bebida. Pegou-se lagrimando enquanto observava as palafitas em sua dança sobre o mar gelado. Lá do quarto, ouviu o berro que precedia o gozo que tanto conhecia; dali a alguns minutos, talvez tivesse de estar a postos na cama. Ou talvez tivesse que ter em mãos uma faca de cozinha para furá-lo, como sempre planejava e nunca tinha coragem de fazer. Enquanto o dia certo não chega, porém, melhor brincar com ele. Brincar do jeito que dizem que criança deve brincar, sem medo, sem preocupação, sem responsabilidade, sem porra nenhuma, disse, dessa vez em voz alta e com ódio no peito, para que Deus, o mundo e toda sua família pudessem ouvir, caso quisessem.

Ninguém a ouviu, no entanto; na mesma hora, a chuva ficou mais forte, uns desocupados passaram rindo alto à porta do barraco, os pais deram berros descontrolados de prazer lá no quarto e um outro barco atravessou o porto com violência. É hora de curvar-se diante dele, pensou. E assim, impávida, corajosa, deitou-se na cama, esperou uns cinco minutos e voltou a se entregar ao que de mais extremo acontecia em sua pequena existência.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Parte III

À hora que bateu a porta de casa, todos olharam em sua direção. Estavam na sala de jantar, esperando. O rosto estava suado, levemente oleoso; o tempo frio – fazia uns sete graus, no máximo, lá fora – tornava a situação mais desconfortável, sem sentido. Jogou a maleta sobre o sofá, deu boa noite e seguiu para o quarto.

Bateu a porta, encostou-se nela e se deixou escorrer até o chão, inexpressivo, como costumava fazer quando o sentido da vida lhe parecia escapar por entre os dedos. Apalpou os bolsos da calça encharcada de suor e viu que o celular havia ficado consigo. Compulsivo, abriu a agenda e viu todos os contatos; naturalmente, tinham vários amigos em comum. A tela do aparelho estava rachada; sinal de descuido. No plano de fundo, uma foto dos dois, rindo, largados nus sobre a cama.

Precisava voltar à sala. Olhou-se no espelho, secou o rosto e trocou de roupa. Parte de seu corpo doía, mas precisava disfarçar o andar cansado. Ao chegar lá, deparou-se com a habitual cara de paisagem da mulher. Estava junto às crianças. Sentia-se observado, vigiado, punido pelos pequenos olhos azuis que o seguiam pela casa. Não suportava aquilo. Mas sentou-se à mesa, e, como se nada de estranho houvesse ocorrido, pediu-lhe um prato.

Foi quando percebeu que oito anos de sua vida haviam se passado. Mas tudo estava lá, como sempre: a comida requentada, o apartamento cedido pela empresa, o ambiente corporativo de quinta categoria, a sensação de que não havia muito para fazer após sair do trabalho. Continuava absolutamente sozinho; e, ao contrário do que lhe havia sugerido o garoto petulante que o assaltou anos atrás, naquele mesmo bairro, naquela mesma maldita cidade, não aprendeu a gostar mais da vida. Seu prazer era destruí-la.

Resignado e sem apetite algum, jantou – talvez para tirar o gosto amargo da boca. Os filhos, um a um, levantaram-se da mesa e foram pros quartos. Somente aquela maldita mulher continuava ali, fitando-o. Chegou a puxar assunto, mas não tinha paciência para responder. A meia-luz da sala pode tê-lo enganado, mas chegou a ver seus olhos marejados após alguns minutos. Levantou-se e foi para o quarto.

Continuava sem alma; um flanêur sem propósito algum, como o pai. Infeliz desgraçado, que se valeu do erro da própria esposa para vingá-lo na mesma moeda – com os mesmos recursos. Vingança imbecil, mas que se revelou prazerosa. Não sentia aquilo há anos. Podia ser algo bom, diferente. Num rompante de coragem, largou o prato sujo sobre a mesa, vestiu a melhor roupa, buscou o celular, bateu a porta de casa e pegou o carro. Saiu em disparada rumo à marginal.

Tinha um celular para devolver.

Parte I: http://gutolobato.blogspot.com/2011/09/scarred.html
Parte II: http://gutolobato.blogspot.com/2011/09/parte-ii.html