segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Parte III

À hora que bateu a porta de casa, todos olharam em sua direção. Estavam na sala de jantar, esperando. O rosto estava suado, levemente oleoso; o tempo frio – fazia uns sete graus, no máximo, lá fora – tornava a situação mais desconfortável, sem sentido. Jogou a maleta sobre o sofá, deu boa noite e seguiu para o quarto.

Bateu a porta, encostou-se nela e se deixou escorrer até o chão, inexpressivo, como costumava fazer quando o sentido da vida lhe parecia escapar por entre os dedos. Apalpou os bolsos da calça encharcada de suor e viu que o celular havia ficado consigo. Compulsivo, abriu a agenda e viu todos os contatos; naturalmente, tinham vários amigos em comum. A tela do aparelho estava rachada; sinal de descuido. No plano de fundo, uma foto dos dois, rindo, largados nus sobre a cama.

Precisava voltar à sala. Olhou-se no espelho, secou o rosto e trocou de roupa. Parte de seu corpo doía, mas precisava disfarçar o andar cansado. Ao chegar lá, deparou-se com a habitual cara de paisagem da mulher. Estava junto às crianças. Sentia-se observado, vigiado, punido pelos pequenos olhos azuis que o seguiam pela casa. Não suportava aquilo. Mas sentou-se à mesa, e, como se nada de estranho houvesse ocorrido, pediu-lhe um prato.

Foi quando percebeu que oito anos de sua vida haviam se passado. Mas tudo estava lá, como sempre: a comida requentada, o apartamento cedido pela empresa, o ambiente corporativo de quinta categoria, a sensação de que não havia muito para fazer após sair do trabalho. Continuava absolutamente sozinho; e, ao contrário do que lhe havia sugerido o garoto petulante que o assaltou anos atrás, naquele mesmo bairro, naquela mesma maldita cidade, não aprendeu a gostar mais da vida. Seu prazer era destruí-la.

Resignado e sem apetite algum, jantou – talvez para tirar o gosto amargo da boca. Os filhos, um a um, levantaram-se da mesa e foram pros quartos. Somente aquela maldita mulher continuava ali, fitando-o. Chegou a puxar assunto, mas não tinha paciência para responder. A meia-luz da sala pode tê-lo enganado, mas chegou a ver seus olhos marejados após alguns minutos. Levantou-se e foi para o quarto.

Continuava sem alma; um flanêur sem propósito algum, como o pai. Infeliz desgraçado, que se valeu do erro da própria esposa para vingá-lo na mesma moeda – com os mesmos recursos. Vingança imbecil, mas que se revelou prazerosa. Não sentia aquilo há anos. Podia ser algo bom, diferente. Num rompante de coragem, largou o prato sujo sobre a mesa, vestiu a melhor roupa, buscou o celular, bateu a porta de casa e pegou o carro. Saiu em disparada rumo à marginal.

Tinha um celular para devolver.

Parte I: http://gutolobato.blogspot.com/2011/09/scarred.html
Parte II: http://gutolobato.blogspot.com/2011/09/parte-ii.html