domingo, 17 de junho de 2012

Cais


Acordou assustada, com as mãos ainda entrelaçadas sobre a barriga e o corpo cheio de cansaço. Sinal de que a noite ainda não havia sido atravessada. Olhou para a janela; continuava vendo as luzes do porto e a cortina d´água da chuva noturna. O barulho vindo de fora indicava que o mar estava revolto – e subindo. Que não chegue no nosso chão, pensou, mamãe ficaria furiosa. Essa dificuldade para dormir vinha junto com os enjoos, a preguiça de sair de casa, de brincar, de existir. Os cinco irmãos, logo percebeu, dormiam pesado.

Levantou-se e seguiu, em silêncio, até a cozinha. Tomou cuidado; a madeira tinha uma acústica traiçoeira, podiam notá-la andando pela casa só pelo sussurro das tábuas que se esfregavam. Na ponta dos pés, com medo de que o mar respingasse no pijama, atravessou o corredor. No caminho, porém, sentiu que alguém a seguia – logo viu que o barulho vinha do quarto dos pais. Encostou-se ao lado da porta improvisada com panos e os ouviu fazendo sexo.

Aquele som não lhe era estranho. De fato, tão comum quanto as incontáveis surras que o pai dava na mãe, uma jovem que fazia ponto na orla da cidade. Ele, sempre molhado em suor e enfurecido pela bebida, chegava em casa aos berros, após mais um dia de trabalho pesado. A imagem dos seis filhos – cinco meninas, que ele considerava inúteis, e um menino que nascera “com defeito” – e da esposa comendo na cozinha fazia com que se sentisse um escravo da rotina. Gritava com as crianças, batia na mulher e terminava a noite transando com ela pelos cômodos da casa – cozinha, banheiro, quartos. Os gemidos violentos ressoavam nas paredes, deixavam o pequeno imóvel com cheiro de sexo e embalavam a noite das crianças, junto à brisa do mar e ao barulho dos navios que cortavam o mar sujo da periferia.

Tateando as paredes da casa, perturbada pelos sons e suores do quarto vizinho, a menina se sentia suja. Correu rumo à cozinha, dessa vez sem se preocupar com o barulho, abriu a geladeira e virou uma garrafa inteira do líquido amargo que enlouquecia o pai. Sentou-se e tentou aproveitar o momento, sem pensar no que teria de aguentar depois. Encarou aquilo tudo como uma brincadeira: não estudava, não se divertia, não tinha o que fazer com os irmãos. Passavam o dia andando pela casa, sob as ordens da mãe, às vezes pediam dinheiro nas ruas do centro. Quem sabe hoje, com a cabeça rodando, descobriria o que o pai via de tão bom naquele negócio que nunca faltava na geladeira? E ainda havia como livrar-se da dor que aquela e outras noites sempre lhe impunham...

A primeira vez que aconteceu foi numa noite parecida com essa, pensou, vai ver por isso que acordei. Estava chovendo forte, dia de semana, e o movimento no porto era o mesmo das seis da tarde. Quando acordou, só houve tempo para que esboçasse um grito, logo contido pelas mãos ásperas e peludas que lhe taparam a boca. Seu corpo foi penetrado com violência ao longo de uns três minutos; ainda não estava pronto, mas não tardou a se habituar às lançadas quase semanais do homem entorpecido e fétido que invadia sua cama sem alarde. Ao final, recebia um beijo na testa e voltava a dormir, torcendo para que o dia seguinte fosse mais fácil e menos dolorido. E que, dali a algumas semanas, não viessem mais bichinhos para tirar da barriga com a ajuda da mãe experiente.

As lembranças a haviam deixado melancólica, mesmo sob o efeito anestesiante da bebida. Pegou-se lagrimando enquanto observava as palafitas em sua dança sobre o mar gelado. Lá do quarto, ouviu o berro que precedia o gozo que tanto conhecia; dali a alguns minutos, talvez tivesse de estar a postos na cama. Ou talvez tivesse que ter em mãos uma faca de cozinha para furá-lo, como sempre planejava e nunca tinha coragem de fazer. Enquanto o dia certo não chega, porém, melhor brincar com ele. Brincar do jeito que dizem que criança deve brincar, sem medo, sem preocupação, sem responsabilidade, sem porra nenhuma, disse, dessa vez em voz alta e com ódio no peito, para que Deus, o mundo e toda sua família pudessem ouvir, caso quisessem.

Ninguém a ouviu, no entanto; na mesma hora, a chuva ficou mais forte, uns desocupados passaram rindo alto à porta do barraco, os pais deram berros descontrolados de prazer lá no quarto e um outro barco atravessou o porto com violência. É hora de curvar-se diante dele, pensou. E assim, impávida, corajosa, deitou-se na cama, esperou uns cinco minutos e voltou a se entregar ao que de mais extremo acontecia em sua pequena existência.