sexta-feira, 20 de julho de 2012

Despedida




Todo mundo ganha um super-herói pra se orgulhar em sua vida. E geralmente ele aparece bem cedo, desde os tempos de útero materno. É um cara a princípio desajeitado, que pode até não ter as artimanhas para conquistar um bebê recém-nascido, mas que, aos poucos, se torna o porto seguro que toda criança deseja ter. Um pai é uma metade; uma raiz que nos prende a nossa identidade, às nossas crenças, que molda nossa forma de pensar e nos atribui uma forma própria de olhar para o mundo.

Há exatamente uma semana, fomos surpreendidos pela perda dessa figura tão importante. Uma partida precoce, de certo, mas que, de algum modo, já era esperada por ele – e temida por todos nós. O Lobatão, como carinhosamente costumávamos chamá-lo, vinha enfrentando a debilidade física há mais ou menos um ano com muita coragem. Sempre confiante, enfrentou várias internações, obedeceu seus colegas médicos e, o mais importante de tudo, passou a valorizar a vida e ter sua saúde como prioridade.

O Lobatão foi um homem de muitas virtudes e poucos, bem poucos, defeitos. Médico traumato-ortopedista apaixonado pela profissão, gostava de meter a mão na massa: tirar plantão, operar, atender no sistema público de saúde e distribuir sorrisos e brincadeiras por onde passava. Serviu nos mais diversos órgãos – Iasep, Câmara Municipal de Belém, URES Doca, Assembleia Legislativa – e fez parte da equipe do Pronto-Socorro do Guamá. Passava do horário pra atender todos os pacientes que faziam fila para se consultar com ele; trabalhava horas seguidas e se orgulhava das cirurgias complexas que conseguia realizar. No final da vida, após meses de recuperação, voltou a exercer a medicina que tanto amava, uma vez na semana, na Câmara Municipal.

Mesmo assim, com uns seis empregos e uma rotina atribulada, foi um pai exemplar. Não tinha luxos: tudo o que precisava era de um bom papo, uma rede de embalar e de todos à sua volta. Cuidou de nossa educação, de nossa saúde e espelhou em nós seu caráter e sua dedicação exemplar à família. Como bom pai, fez tudo isso sem pedir nada em troca, pelo simples prazer de ver nosso êxito e nosso crescimento pessoal e profissional. Além disso, soube aproveitar a vida: deixou em nós lembranças inesquecíveis das férias em Salinas, das brincadeiras e códigos que mantinha com cada um de nós, das caronas para as festas e das conversas madrugada adentro. Chorava e ria com facilidade, o Lobatão: quando dois de seus filhos se mudaram para Marabá e São Paulo, não soube se despedir em aeroporto. Preferiu dizer um até logo e esperar as visitas e ligações – que, caso não viessem, eram devidamente cobradas. E ai dos filhos que viviam em Belém e inventassem de sumir por mais de quatro ou cinco dias...

O papai era um cara de muita fé, confiante na palavra de Deus: quando o medo de deixar esse mundo batia à porta, dizia que tudo o que queria era a oração de todos, para que, caso viesse a morrer, sua alma descansasse em paz e reencontrasse seus entes queridos lá no paraíso. Não precisou pedir: nos quatro dias em que se preparou, no Hospital Saúde da Mulher, para ir ao encontro de Deus, recebeu visitas e orações de todos. Nossa esperança era que sua recuperação viria lenta, mas certa, como aconteceu nas últimas vezes. Ele, por outro lado já não se sentia seguro; preparou o terreno, pediu para se despedir dos filhos assim que foi para a UTI, doou suas roupas. Antes de ir, porém, realizou um sonho importante e ganhou um semblante sereno que há meses não víamos naqueles olhos já cansados da luta. Talvez a sabedoria e a certeza de que a hora estava chegando tenham se encarregado de prepará-lo para uma despedida a seu modo: repleta de amor, união e esperanças de um futuro próspero e melhor.


Já faz uma semana que o Lobatão nos deixou. Os ritos da despedida foram conforme sua vontade: jogamos suas cinzas na orla de Icoaraci – a janela para o rio que Belém ainda preserva e que, para ele, era um ponto garantido para esfriar a cabeça e tomar uma água de coco. No velório, inúmeros gestos de carinho, palavras de apoio e orações foram direcionados a ele; difícil é recordar de todos os amigos, entes queridos e colegas de profissão que prestaram suas homenagens naquela manhã ensolarada de sábado. Nossos corações e mentes ainda estão atormentados. Os olhos ainda insistem em se encher de lágrimas a cada almoço barulhento, a cada canção brega ou da Jovem Guarda que toca no rádio, a cada foto desbotada que encontramos nos álbuns de família – ou a cada vez em que, emocionados, nos olhamos no espelho e encontramos seus traços, seu jeito de andar, sua postura, seu rosto, suas virtudes e seus defeitos, em cada um de nós. Perdemos nosso herói, nosso companheiro de todas as horas, nossa metade, sangue do nosso sangue e carne da nossa carne.

Ou melhor: não perdemos. Apenas deixamos seu espírito seguir no curso natural, rumo ao encontro da vovó Sinhá e de todos aqueles de quem ele sentia saudade. Temos a certeza de que, lá, ele está mais confortável, cercado de paz e bons sentimentos. A companhia física se extinguiu, mas temos certeza de sua felicidade e seu orgulho de nos ver, aqui, lutando para viver a vida com paixão e dignidade, conforme seus bons ensinamentos e lições. Aprendemos assim, dia após dia, a conviver com essa lacuna que o dia 14 de julho de 2012 nos deixou, na certeza de que um dia a dor se converterá na mais bela e pura das saudades.

Descanse em paz, nosso Lobatão querido e amado.