sexta-feira, 26 de outubro de 2012

“Agilize o atendimento. Na sua vez, fale somente o necessário.”


A simpática mensagem, pregada à porta da repartição, só foi vista na saída, mas bem que ajudaria na preparação dos ânimos. Chegamos uns 20 minutos antes da hora. Mais de um mês antes, também foi preciso ir lá para marcá-la. Pessoalmente. Pegar fila. Preencher um papel, mostrar documentos. Hora marcada para atendimento? Quase uma proposta de campanha, não?

Setor público, é verdade, não surpreende ninguém no Brasil. No mundo, aliás: conheço gente que demorou quase um ano pra conseguir marcar consulta em Portugal (!). E, também, gente que passou a madrugada mofando em maca num hospital em Paris – e teve de subornar o motorista da ambulância para ter como voltar pra casa. Enfim, a decadência é notória e universal, e não exclusividade nossa. De todo modo, a gente sempre tem aquele pensamento imbecil de que, por algum motivo, um dia vai ser diferente – e conosco. Ser atendido pontualmente às 15h parecia uma coisa possível, no fim das contas; devem estar fazendo isso pra reduzir filas, pensei.

Santa inocência: era só pra eles poderem controlar a quantidade de trabalho por dia. Subimos um lance de escadas e lá estava ela, a sala de estar do capeta: cadeiras gordurentas, ar fedido e quente – fazia uns 34 graus lá fora –, bebedouro enferrujado, portas velhas, adesivos pregados na parede, funcionários de saco cheio e um punhado de gente mal humorada como eu. Em todos os quadros de parede (e até fora deles), textos em Times New Roman tamanho 60 informando que desacato a funcionário público é crime. Estratégico, não? Sentei, olhei à frente e desejei que aquilo fosse algum esquete televisivo, ao invés de minha tarefa de quinta-feira à tarde.

Duas brigas ocorriam quase simultaneamente na pequena sala em que, por obra e graça de Nossa Senhora do Serviço Público Falido, todos os registros profissionais da maior cidade da América do Sul eram preparados. Num canto, um senhor que parecia ter uns 70 anos de idade resmungava, em fluente portunhol, com um funcionário de camiseta que ostentava, à frente de sua mesa sem computador ou papel e caneta, um adesivo com os dizeres “setor de imigração”. O que aquele serviço fazia ali eu não sabia, mas o velhinho estava bem confuso – e o nosso querido atendente concursado só sabia dar a resposta-padrão: “não fazemos isso aqui”. E emendou: “Olha, não posso te garantir nada, mas acho que você tem que ir pra outro lugar”. E apontou para fora da sala, rumo a algum ponto vago entre o Ministério do Trabalho e Emprego, a terra natal do cara e a rua Martins Fontes. Ficou desolado, o pobre coitado; senti que realmente precisava resolver seu problema e saía dali sem ter dado um passo sequer.

No outro ringue armado, uma garota com ar de Higienópolis que – só depois entendi – era profissional formada em Cinema, Rádio e TV e queria tirar seu registro como técnica de audiovisual. O problema é que isso não existia para a gerente da repartição, que só vislumbrava para a moça a chance de se registrar como radialista – mesma categoria em que, no dia em que fomos lá marcar horário, um maquiador de programa de auditório queria se registrar. Discussão vai, discussão vem, a moça liga pra faculdade, a gerente de área arruma um exemplar encardido da CLT e chega-se à brilhante conclusão de que ela podia ter não só um, mas dois registros: o de radialista e... o de Artista, assim mesmo, com “A” maiúsculo. Era o mais próximo da sétima arte, digamos, que ela encontrara. A jovem Artista chegou pouco depois da gente, 15h10, e permaneceu quando fomos embora, umas 16h20. Mas seu pandemônio trabalhista parecia estar sendo resolvido, ao menos.

E o seu problema no meio disso?, você deve estar se perguntando. Pois bem, esperei minha vez pacientemente na fila que se desenhou à porta da sala. Percebendo que a gente não avançava, resolvi perguntar pelo tal horário marcado. Descobrimos, claro, que era bom demais pra ser verdade: a recepção fez o agendamento para outra data e hora. Não fosse a gerente, única criatura prestativa por ali, o funcionário altamente qualificado para relacionamentos interpessoais que falou conosco nos teria convencido a ir pra casa chupando dedo – “não posso fazer nada por vocês”, sintetizou.

Obviamente, só saímos de lá com o registro profissional – um simples adesivo com o número na carteira de trabalho, que demorou 40 minutos para ser confeccionado. Enquanto a coisa se resolvia, no entanto, fui ao banheiro e tive a sorte de apreciar um belo exemplar da poesia brasileira de azulejaria de sanitário. Num canto encardido, alguém cravou Renato Russo a toques de marca-texto: “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...” – assim mesmo, com reticências. Sem entender a relação entre isso, o funcionalismo público sempre imune a adjetivos elogiosos e o conceito de “falar somente o necessário”, voltei pra casa com dois quilos a menos de papelada na mochila, a alma lavada e a certeza de que todos meus colegas de trabalho vão sofrer bastante nas próximas semanas e meses.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

DC


Num dia daqueles, com direito a duas horas e meia de engarrafamento, tempo gélido e chuvoso e um cansaço que não cabia mais nas 24 horas do dia, peguei o celular no impulso, corri nos favoritos e quase aperto no nome dele. Até julho, alguns segundos me separavam de poder matar a saudade, ouvir sua voz – mesmo que, muitas vezes, a conversa se tornasse uma sessão mútua de resmungos (ah, as semelhanças entre pais e filhos...).

Certas coisas, de fato, só falava com ele. Trocas que, não percebia, eram essenciais para levantar os ânimos, amenizar preocupações, sentir que o tinha por perto. E hoje elas estão aqui, caladas no peito e gritando dentro da mente sempre que a saudade aperta. A dor de cabeça que vem nessas horas, fortíssima, é um sinal de que, por dentro, a ideia ainda está longe de ser processada com tranquilidade. Aliás, há condição mais tranquila – e, ao mesmo tempo, cansativa – que o vazio?

Tylenol para suportar; está perto de completar três meses.