A simpática mensagem, pregada à porta da repartição, só foi vista na saída,
mas bem que ajudaria na preparação dos ânimos. Chegamos uns 20 minutos antes da
hora. Mais de um mês antes, também foi preciso ir lá para marcá-la.
Pessoalmente. Pegar fila. Preencher um papel, mostrar documentos. Hora marcada para atendimento? Quase uma proposta de campanha,
não?
Setor público, é verdade, não surpreende ninguém no
Brasil. No mundo, aliás: conheço gente que demorou quase um ano pra conseguir
marcar consulta em Portugal (!). E, também, gente que passou a madrugada
mofando em maca num hospital em Paris – e teve de subornar o motorista da
ambulância para ter como voltar pra casa. Enfim, a decadência é notória
e universal, e não exclusividade nossa. De todo modo, a gente sempre tem aquele pensamento imbecil de
que, por algum motivo, um dia vai ser diferente – e conosco. Ser atendido
pontualmente às 15h parecia uma coisa possível, no fim das contas; devem estar
fazendo isso pra reduzir filas, pensei.
Santa inocência: era só pra eles poderem controlar a
quantidade de trabalho por dia. Subimos um lance de escadas e lá estava ela, a sala de
estar do capeta: cadeiras gordurentas, ar fedido e quente – fazia uns 34 graus
lá fora –, bebedouro enferrujado, portas velhas, adesivos pregados na parede,
funcionários de saco cheio e um punhado de gente mal humorada como eu. Em todos
os quadros de parede (e até fora deles), textos em Times New Roman tamanho 60
informando que desacato a funcionário público é crime. Estratégico, não? Sentei, olhei à frente e desejei que aquilo fosse algum esquete televisivo, ao invés de
minha tarefa de quinta-feira à tarde.
Duas brigas ocorriam quase simultaneamente na pequena
sala em que, por obra e graça de Nossa Senhora do Serviço Público Falido, todos
os registros profissionais da maior cidade da América do Sul eram preparados.
Num canto, um senhor que parecia ter uns 70 anos de idade resmungava, em
fluente portunhol, com um funcionário de camiseta que ostentava, à frente de
sua mesa sem computador ou papel e caneta, um adesivo com os dizeres “setor de
imigração”. O que aquele serviço fazia ali eu não sabia, mas o velhinho estava
bem confuso – e o nosso querido atendente concursado só sabia dar a
resposta-padrão: “não fazemos isso aqui”. E emendou: “Olha, não posso te
garantir nada, mas acho que você tem que ir pra outro lugar”. E
apontou para fora da sala, rumo a algum ponto vago entre o Ministério do
Trabalho e Emprego, a terra natal do cara e a rua
Martins Fontes. Ficou desolado, o pobre coitado; senti que realmente precisava
resolver seu problema e saía dali sem ter dado um passo sequer.
No outro ringue armado, uma garota com ar de
Higienópolis que – só depois entendi – era profissional
formada em Cinema, Rádio e TV e queria tirar seu registro como técnica de
audiovisual. O problema é que isso não existia para a gerente da repartição,
que só vislumbrava para a moça a chance de se registrar como radialista – mesma
categoria em que, no dia em que fomos lá marcar horário, um maquiador de programa de auditório queria se registrar.
Discussão vai, discussão vem, a moça liga pra faculdade, a gerente de área
arruma um exemplar encardido da CLT e chega-se à brilhante conclusão de que ela
podia ter não só um, mas dois registros: o de radialista e...
o de Artista, assim mesmo, com “A” maiúsculo. Era o mais próximo da sétima
arte, digamos, que ela encontrara. A jovem Artista chegou pouco depois da
gente, 15h10, e permaneceu quando fomos embora, umas 16h20. Mas seu pandemônio
trabalhista parecia estar sendo resolvido, ao menos.
E o seu problema no meio disso?, você deve estar se
perguntando. Pois bem, esperei minha vez pacientemente na fila que se desenhou
à porta da sala. Percebendo que a gente não avançava, resolvi perguntar pelo tal horário marcado. Descobrimos, claro, que era bom demais pra ser verdade: a recepção fez o agendamento para outra
data e hora. Não fosse a gerente, única criatura
prestativa por ali, o funcionário altamente qualificado para relacionamentos
interpessoais que falou conosco nos teria convencido a ir pra casa chupando
dedo – “não posso fazer nada por vocês”, sintetizou.
Obviamente, só saímos de lá com o registro
profissional – um simples adesivo com o número na carteira de trabalho, que
demorou 40 minutos para ser confeccionado. Enquanto a coisa se resolvia, no
entanto, fui ao banheiro e tive a sorte de apreciar um belo exemplar da poesia
brasileira de azulejaria de sanitário. Num canto encardido, alguém
cravou Renato Russo a toques de marca-texto: “é preciso amar as pessoas como se
não houvesse amanhã...” – assim mesmo, com reticências. Sem entender a relação
entre isso, o funcionalismo público sempre imune a adjetivos elogiosos e o
conceito de “falar somente o necessário”, voltei pra casa com dois quilos a
menos de papelada na mochila, a alma lavada e a certeza de que todos meus
colegas de trabalho vão sofrer bastante nas próximas semanas e meses.