quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Vovô


Hoje, acordei umas 6h30 e me deparei com esse amanhecer lindo no violento verão de São Paulo. Meio sonâmbulo, peguei o celular e tirei umas fotos borradas da janela do banheiro. Voltei pra cama, revirei ela inteira e não consegui dormir rápido. Às 8h, a Mayara me acordaria com a notícia da partida do vovô, dada por minhas irmãs há pouco. Depois de quase dois dias no hospital, inconsciente, a pressão dele foi caindo, caindo, caindo e pronto. Virou hipótese.

Carinhosamente conhecido como seu Oliveira, meu avô tinha inúmeras histórias na ponta da língua e uma sabedoria infinita, como todo idoso que viu o século XX passar – mas que também deixou sua história cravada nele. Vindo do interior de Portugal bem novo para o Brasil, contava, risonho, sobre como tentou não causar choque na vovó Rosa ao levá-la pela primeira vez a Belém. Mal sabia ele que se apaixonariam pelo Pará. Apegaram-se e ali, como muitos conterrâneos, fizeram família, negócios e construíram uma história de vida, jamais perdendo, no entanto, o sotaque característico da terrinha.

Tivemos – meus tios, meus pais, eu, Clarissa, Isabela, Marina, Ligia – uma trajetória muito feliz ao lado dos dois, cada qual à sua maneira. Com seu jeitão mais sério, sem muitos adjetivos ou dramas, o vovô tinha um apego enorme com os netos; víamos isso nos arroubos de orgulho, nas lições de moral, nos papos cabeçudos, nas implicâncias – nunca vou esquecer a felicidade dele ao me ver sem aquele cabelo comprido, depois de raspar a cabeça no vestibular –, nos pequenos gestos.

Confesso que, em 2009, quando vivemos a sofridíssima partida da vovó, pensei que ele não viveria para minha formatura da graduação, dali a alguns meses. Mas parece que aquela dor toda o fez ter certeza do quanto queria viver mais uns anos conosco. Mudou-se para a casa da mamãe; surpreendeu a todos pela independência, pela capacidade de seguir em frente, diferentemente de tantos homens que ficam viúvos. Mesmo emocionando-se sempre que falava da vovó – deixando claro que nada mais seria igual sem ela –, víamos nele uma enorme vontade de viver. No fundo, tudo isso era para poder ver os bisnetos chegarem; os netos, um a um, casarem; assistir à casa ficar cheia no fim do ano; acompanhar meus tios e minha mãe, diariamente, em seus projetos pessoais e profissionais, aconselhando-os.

O vovô tinha alguns costumes divertidos, como manter uma unha comprida (imagino que por razões de segurança pessoal, heheh), o vício no canal de notícias português RTPi, a hora cronometrada da soneca e do almoço e o planejamento semanal que, sempre e invariavelmente, incluía idas ao supermercado. Foi num destes passeios ao varejo, aliás, que tive um dos meus últimos longos papos com ele. Parados no trânsito tenebroso da Augusto Montenegro, numa manhã de fim de ano, conversamos sobre política, a crise, filhos, os planos para o futuro, a necessidade de eu perder peso, os preços dos peixes em São Paulo, como diferenciar um bacalhau fêmea de um macho, o sinal péssimo da RTPi. Nos últimos anos, depois que ele foi morar com a mamãe, nos aproximamos bastante. Ele sempre me perguntava sobre a vida por aqui, como estava nossa casa, se nossas finanças estavam equilibradas; tinha interesse em saber como levávamos a vida. Sempre mandava um beijo pra Mayara, quando eu não estava com ela. Depois da morte do Lobatão, ele, talvez sem saber, virou minha principal referência paterna.

No fundo, sabia o quanto aqueles momentos com o vovô me fariam falta. Não parava de pensar em como ele estava velhinho e, a qualquer hora, nos deixaria. Ansioso patológico que sou, não parei de pensar nisso desde que o vi pela primeira vez se queixar de cansaço, aumentar a medicação do coração, ter inchaço nos pés e dar sinais de que a vida estava ficando cansativa. Guardava pra mim, mas sempre pensava que toda ida a Belém era uma bênção por poder vê-lo novamente, nem que fosse a última vez. Agora, no Natal de 2015, foi a nossa despedida. Dei um beijo na testa dele e, como sempre, prometi que já, já estaríamos de novo em Belém.

Hoje, volto a me emocionar enquanto escrevo esse texto – do mesmo jeito que anteontem, quando, no trabalho, soube pela minha mãe que ele dificilmente sairia do hospital. Os últimos três dias foram uma longa despedida à distância, mas eu sei que de algum jeito tô pertinho dele. E que todo esse amor que sentimos por ele, clichês à parte, há de servir de fortaleza.

Vai com Deus, vô.