segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Pequenos Prazeres da Vida


Acender um cigarro. Chegar do trabalho cansado, ligar o computador e aliar-se ao (mal)dito comunicador de dias modorrentos. Falar com os amigos, escrever, escrever, ler, dar risada para a tela. Dar um oi para a mãe que passa correndo atrás de você. Ela também fuma. Acender outro cigarro.

Ligar para a namorada, para os amigos. Lembrar do último porre da semana passada. Risada gostosa. Amor verdadeiro é uma coisa muito foda. Alugar um filme – devidamente pesquisado no Google –, e, porque não?, convidar a mãe para assistir junto. É um filme bonito, daqueles que falam dos amores impossíveis, das presilhas ideológicas, etc e tal. Custou vinte milhões, só. Um cara fuma no filme. Acender outro cigarro.

Carne grelhada e salada para o almoço. O cachorro estava com saudades. O trabalho hoje foi bom, nada fora do convencional. Academia, idem. De novo, liga para a namorada, vamos ao cinema hoje? Já é o segundo filme do dia, mas enfim. Ainda está de ressaca do bendito porre, e olha que já são três dias. Mais um cigarrinho, só para tirar o gosto de alface da boca.

Depois, sentar no sofá e ligar para aquele velho amigo. Papo de sempre, ensaio da banda amanhã, não esquece! O computador está ligado lá no escritório, a mãe resmunga, mas o que há de ser feito? O Download do novo cd do Beatles ainda não completou. Faculdade de novo, daqui a alguns dias, terceiro semestre, expectativas, coisa e tal. Bateu um saudosismo.

Saudade das férias que acabam assim, do jeito que começam. Saudades da época onde os minúsculos e fúteis prazeres da vida eram, na verdade, os maiores. Saudades de uma tal irresponsabilidade que vai ficando para trás, cedendo espaço para uma vida regrada e cheia de bons hábitos. Acima de tudo, saudades de uma pessoa que nem reconhece mais no espelho. Mas não há tristeza nesse pequeno acesso de nostalgia. São apenas mudanças, afinal.

A mãe passa correndo de novo, só que dessa vez de terninho branco. Emprego novo, vida nova, é uma correria. Ela oferece um chocolate, mas você já tem que ir tomar banho, o cinema é daqui a meia hora. Agradece. Eu te amo, e afins. Ela é doce, doce como uma boa mãe há de ser. Tchau.

Ah, que pressa, sempre deixando as coisas para a última hora! E que fome... mas a dieta não permite. Mais um cigarro – este para tirar o apetite.

Hora do banho.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Duo.


Há quem venere as cidades, com toda a sua imensidão de concreto, com seu calor físico e seu espírito gélido, que circula entre as esquinas, becos, corações e almas, que nos toma pelas mãos e nos traga tal qual cigarro, em seu ritmo urbano, suntuosamente ininterrupto e caótico. Uma parte de mim odeia tudo isso. A outra se fascina, se entrega.

Muito a se viver, nessas imensas e pulsantes metrópoles. Se uma parte de mim tem nojo da impessoalidade, da melancolia cinzenta que permeia as vidas de tantos homens e mulheres imersos na correria do mundo moderno, a outra dança conforme a música, e sente-se relaxada em sua condição de engrenagem na máquina. Se uma parte de mim estremece ao olhar da janela tantas luzes, faces, cores e objetos que provavelmente nunca mais serão vistos pelos meus olhos, a outra acende mais um cigarro e conforma-se com a sua incapacidade de vivenciar tudo o que vê.

Se uma parte deste homem escreve poesia dura como o asfalto, ácida como o ar que respira nas manhãs chuvosas de Janeiro, a outra se deleita em elogios à sua vida urbanóide, à sua existência repleta de incertezas e surpresas diárias. Os becos, esquinas, bares e cantos sujos são palcos, palcos onde atuo como um menino cheio de anseios a revelar, como um poço de naturalidade e auto-satisfação. Mas quem disse que o sou? Se uma parte de mim é feliz, a outra é melancólica. Ambas, porém, vivem a mesma vida. Se uma parte de mim ama acordar cedo e correr doze horas à base de café e cigarros, a outra só queria passar um dia na cama do lado de um amor tolo, alimentando-se de conversa fiada, fast-food e sexo.

Mas eu preciso estar de pé, afinal. E, do “alto” de meus dezessete anos, olho para todo aquele mar de gente – que espreme-se nos metrôs e galerias e shoppings e corredores e calçadas – e fico pensando em quantos ali sabem aonde vivem. Imagino quantos ali são como eu, pensam nos dois lados da moeda, na dor e na delícia de viver na cidade grande, longe do tédio pastoril, do pseudocaipirismo-por-prazer (que, há tempos, só existe quando falta dinheiro para aqui manter-se) que aterroriza os engomados. Mas acho que, além de mim, só mesmo a cidade para me entender, em tamanho paradoxo de pensar assim. E esse é um segredo meu e dela, das palavras e do silêncio que ecoam insólitos nas avenidas.

Ninguém deveria venerá-la (ou odiá-la) sem antes conhecê-la enquanto um organismo quase-vivo, humanóide, cheio de defeitos, mas nem por isso menos fascinante e enigmático. Cabe a cada um descobrir o que amar e o que odiar em terrenos tão cheios de possibilidades. Há quem simplesmente venere as cidades. A cada dia, aprendo mais e mais com essa gente. Parafraseando um poeta aí: porque metade de mim é amor, e a outra metade também, eu te amo, Modernidade. Eu amo essa vida de cidadão esbaforido, cheio de coisas a fazer, pensar, fingir e, finalmente, vir-a-ser. E ela, a cidade, a vida urbana, me ama, mesmo que do jeitinho dela. Disso eu tenho certeza.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Contos Burgueses I


Nunca sei contra o que conspiro. Só sei que o faço, e com prazer. São muitos planos mirabolantes, muitas vítimas, sabes como é, mais uma ou menos uma... são todas iguais perante minhas idéias! Dia desses caminhava pelas ruas da cidade, a pensar em ti. Não o pude evitar. Recordei das noites de sexo, das promessas, da inconstância, das brigas que vieram crescendo e piorando, das ameaças ... e tudo o que pude fazer por mim - e por ti - foi rir. Gargalhar loucamente, até deixar os ecos formarem uma sinfonia em meio às casas abandonadas da Cidade Velha.

Eu sei, eu não te matei. E teu corpo jaz, agora, desfalecido em um indistinto canal, daqueles que o governo põe uma placa dizendo que a macrodrenagem irá chegar (e ela nunca chega); deves estar boiando agora, contemplando as nuances do plástico negro que te separa da vida. Ah, e que vida, minha querida. Se pensas que eu não o sabia, estás muito enganada: este homem com quem dormias conhecia seus domínios. De uma rastejante mulher da vida a uma conhecida socialite da burguesia amazônida... estás bem, não é, meu amor?!? Ainda mais se eu - justo eu! - não sabia de tal transição.

Pois é, eu já o sei. E agora que já estás desperta, recomendo que coloques o nariz no furo que fiz para ti no topo da sacola. Respira! Sente o ar fétido do nosso esgoto, que penetra nos narizes dos suburbanos e periféricos. Esbalda-te em tanta nojeira e relembra das nossas noites de gala, regadas a vinho, ao som de um grupo de free-jazz e de uma conversa fútil qualquer... são opostos de inigualável semelhança. Quantos dali não te comeram, no escuro do Barroco, em uma esquina da Riachuelo, em um banquinho da Praça da República, sob o turvo calor dos trópicos! Enquanto isso, eu trabalhava em busca do amor de minha vida, o qual anos depois descobri ser isso... grandes surpresas essas. Surpresas que pedem uma reação igualmente surpreendente.

Por isso que sequer encostei o dedo em ti, meu amor. Se te deixei descansar até a morte, foi para permitir à minha esposa... a uma traidora, a uma vagabunda de boceta arrombada, a uma filha-da-puta com cara de anjo, um pouco de redenção, um naco de decência após décadas de mentira e traição. Tua pele permanece alva, teu sangue corre normalmente pelas artérias, teus membros ainda se movem... e teu peito bate, bate rápido por saber o pouco que lhe resta, ao ler cada linha desta calorosa despedida. Ah: não sentirás fome enquanto estiver viva, pois comemos muito bem na última ceia. Por sinal, cozinhas muito bem, não sei se já havia te dito.

São duas horas de vida que restam. É o tempo entre onde estás e o triturador do esgoto central; entre meu carro e o barranco ao final da estrada que percorro a 120 por hora, ao som de uma banda de free-jazz qualquer. A gente se vê, meu amor, na sangrenta existência post-mortem dos nascidos filhos-da-puta neste mundo de imprestáveis. A gente se vê, no mais real e dantesco dos infernos.


José Augusto Mendes Lobato