quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Irreversível


Música das boas. Drinks, melhores ainda. Goles de uns e outros, algumas pílulas coloridas debaixo da língua. A voz de Ian Curtis recorta o ar. O menino dança como nunca se viu, agarra-se às paredes para conter a tontura e o vômito. Mas não parece nem um pouco infeliz. Pelo contrário - transmite energia como quem jamais havia, genuinamente, se chapado até o limite. Enfiou-se no banheiro.

Havia sido um dia e tanto. Tudo tinha virado merda. Perdera a mulher, o emprego e - pasmem - trancara a matrícula do mestrado. Os amigos estavam preocupados, tiraram o menino de casa aos berros, arrombando a porta da frente com uma garrafa de Vodca barata nas mãos. Ele não era de beber, mas fixou os olhos na destilada. Aceitou ir, contanto que não dirigisse. "Hoje vocês tomam conta de mim", disse à beira da escada. Atravessaram o centro e, lá estavam, em um daqueles buracos sebosos da Anhangabaú.

Era uma festa temática, anos 80, daquelas amplamente divulgadas no meio gay da capital. Agora, era a voz de Robert Smith. Ele adorava The Cure, muito embora já tivesse quisto se jogar da varanda entre uma audição e outra dos discos mais antigos da banda. Aliás, como diabos ele tinha ido parar naquele banheiro mesmo? Olhou ao seu redor, e nenhum dos amigos. Estava com medo das bichas e putas; não estava a fim de esquecer da mulher. Infelizmente, lembrou-se dela, e tudo virou merda outra vez.

Havia viajado para São Paulo a estudo, largando família e amigos. Nunca punha expectativas em nada; para a cidade sem limites, porém, só tinha grandes planos. Virar professor. Pesquisar. Correr no Ibirapuera todas as manhãs (para lembrar do ar puro do interior), e depois tomar café na Subway. Amar alguém especial. Conseguiu tudo isso no primeiro mês; uma chance de mestrado em economia, e uma menina sensacional, vinda do interior baiano. Morena, seios fartos e estudante de filosofia. Mas tudo, como prevê a bela fugacidade da vida urbana, se desfez em um piscar de olhos. Acordou-se sem ela e, meia hora depois, foi ao trabalho para pedir a demissão. Depois, foi à Usp e fechou a matrícula. E foi pra casa, com doze carteiras de cigarro e uma pilha de filmes cult.

O banheiro escureceu. Não sabia ao certo se eram as luzes, ou parte do efeito das drogas que tomara sem perceber; apenas concentrou-se no turbilhão de imagens lisérgicas que passavam pela fechadura, refletidas no espelho em um borrão verde e vermelho. Agora, a voz de Morrissey cantando um ode à melancolia. E um drum n´bass modernoso ao fundo, que lhe lembrava a juventude certinha de uma semana atrás...

Sentiu, então, o tato de um corpo que se colou ao seu. O corpo foi descendo, deslizando pelo seu abdômen... e logo depois, surgiu um clarão de luz. A porta aberta deu espaço a outra pessoa. Fechou os olhos, não queria saber quem ou o que era. Entregou-se de olhos fechados, e seu corpo foi usado, explorado por mãos perdidas, línguas trêmulas e um hálito chapado que colou nos seus lábios. Sentia, ainda, o vômito na garganta, junto com mil perguntas e mil respostas àqueles corpos que o usavam arbitrariamente; a sensação de prazer, porém, era imensa, imensa demais para dizer qualquer coisa.

Sorria e sentia que os outros corpos também sorriam. Nem mesmo os cinco graus lá fora fizeram algum frio desfazer a fornalha do pequeno albergue. A garrafa de Vodca tombou no meio de um movimento estranho de flexão. Encharcou-se em álcool. Gozou e fez gozar mil vezes, e mil idéias lhe vieram à cabeça. Onde estavam os amigos? Onde estava sua mulher naquele momento? Onde estava seu projeto incompleto de mestrado? Quantos litros de álcool havia bebido? Com quem fodia tão intensamente?

Lá fora, a música era de um tresloucado David Bowie. Look Back in Anger sempre lhe lembrava do filme da Christiane F., e dava uma imensa vontade de dançar. Abriu a porta do banheiro e correu, o pau de fora e a blusa aberta, para o meio da boate. A essa altura, seus amigos se misturavam com o ambiente, agarrando putas e travestis sob o efeito de fumo e bebida. Ninguém ia lembrar de porra nenhuma, bando de viados enrustidos.

Ria, ria descontroladamente, vomitava entre gargalhadas e sentia o ar lhe faltando - que delícia era fazer loucuras na vida! Engolia mais pílulas, tomava goles e mais goles, agarrava uma das únicas mulheres bonitas do local - que delícia era sentir a vida lhe percorrer as veias! Enfiou uma seringa suja no antebraço. Que maravilha era o submundo brasileiro! Tudo corria às soltas. O menino de vinte e poucos anos sentia-se homem, ao som da voz cavernosa do Bowie, com uma garrafa de cerveja barata nas mãos. Sentia seu pau ser agarrado por mãos familiares, a tontura voltando, cada vez pior. O ar começa a rarear, a fumaça e o gelo seco lhe escurece a vista, o cheiro de merda e urina subindo pelas entranhas, o tato de outra mão pegando em seu corpo...

De novo, ouviu a voz de Ian Curtis. E seu sorriso desfaleceu, calmo como se os acordes arrastados de Twenty Four Hours lhe fossem trilha sonora...

* Título e idéia central emulados do filme homônimo...