quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Carmen


Ora,chega então o fim de novembro.Acabam aqui as mulheres e seus devaneios,sonhos e projeções - apenas aqui,é claro! - , mudarei meu foco para outra direção.Enquanto planejava o que dizer hoje,me lembrei que estava deixando para trás a mais indescritível mulher de minha vida,talvez por não saber o que falar...como esquecer-me ia de ti,Carmen?
Estou de acordo:mereces muito mais que uma mísera narrativa.Mereces algo mais rebuscado do que um tiroteio de idéias desmilinguidas,meu amor.Ainda me lembro bem do nosso último diálogo,na porta do bordel,que com maestria,inicia minha tentativa de homenagear-te:
- Carmen,o que posso te dar além de meu dinheiro e meu corpo sem alma?Meu coração te pede uma resposta!
- Mereço de ti a mais suja das vestes,Álvaro;no entanto,jamais as vestiria enquanto continuasses aí,preso nesse teu terno,nesse teu sorriso fútil.Já me despi das aparências,sou o que muitos chamam de uma "vagabuna dissimulada"...e você?O que é,além de um cliente a mais em minha lista?Não consegues me sintetizar em tua boca,em teu diálogo de mesa de bar,não é?Não sabes falar de mim como um ser humano,e sim como um orifício dos mais nobres desta cidade!Acha que este colar de brilhantes me dará uma companhia através das noites?Acha que terei,nesse apartamento lindo que ostento,sequer um par de mãos para entrelaçar enquanto queimo em febre?Não,Álvaro,e isso que não entendes.Falta em ti a perspectiva de ver que,nesse mundo que abraças ao meu lado,tens que assumir o que és e o que desejas,não o que convém a ti ser.
-A dor me convém,Carmen.Estar ao teu lado me convém.Abandonaria tudo,jogaria meus filhos,minha mulher,enfim,minha vida no lixo,só para te ter ao meu lado em cada passo do tempo.
-E quem és tu para falar de tempo?Achas que o tempo só existe para ti?O passar das horas também já me rasgou o veludo dessas paredes.A espera por ti já me rendeu muitas cicatrizes nos pulsos.
-A mesma dor que sentistes se refletia em meu peito!!!
-Mentira!Teu peito não pertence a mim,nem mesmo tu percebes disso?Já lutei por ti,já arrumei para ti toda uma situação para que se livrasse daquela sanguessuga,e tudo o que fizestes foi fingir não me conhecer!Tornei-me a insanidade em forma humana para todos,a cidade já ri de mim.As ruas são o palco de minha humilhação,e você,Álvaro,foi o primeiro a se levantar e puxar as palmas.Agora me pede um "bis"?
-Peço a ti uma segunda chance,uma noite de conversa que seja!Por favor,entrega-te a mim uma última vez!Te provarei que desses meus olhos posso derramar lágrimas por ti.E posso lutar por ti.
-Os dias não lhe agradam.
-O que?
-Entre tantas noites,qual foi a vez que nos combinamos de nos encontrarmos durante o dia?
-Por favor,Carmen!Dá a mim uma última chance!Deixa eu te tirar desta vida.
Nessa hora,lembro que um breve segundo de paz e silêncio se fez naquela rua.
-Esta vida é minha,Álvaro.Não podes me tirar de onde me achaste,a não ser que se liberte comigo.
E entrastes,esmurrando a porta.Tua patroa me olhou com desdém e fechou as janelas da mansão.
Meu passo cansado daquela noite agora é minha caligrafia falha desta carta que te escrevo,esta breve e pomposa homenagem que chegará a ti com uma quantidade considerável de dinheiro.Não,não seja impulsiva:espere que eu ainda não terminei.
O álcool já confunde minhas idéias,Carmen.Mas nunca,em minha vida,me senti tão disposto a me humilhar como agora,em nome de ti.Em nome dos meus resíduos que perduram em tua memória,e em nome do teu cheiro,que agora exala em cada lençol deste apartamento fétido em que vivo,o mesmo que julgaste lindo e que usaste por essa década de mentiras.Queria apenas que me ouvisse,não tenho esperanças de que volte.Queria que olhasses em tua volta,visse tuas companhias e o ambiente em que vives.Queria que reconhecesses quem está do teu lado e quem fica do teu lado.Queria que as memórias,uma última vez,te dopassem,para que a navalha pudesse penetrar doce,lisa,calma em teu corpo.Queria estar em outro lugar que não fosse dentro da tua vida,tão disposto a nos sacrificar em nome de um amor impossível.Meu desejo era ter forças de te esquartejar de forma mais ardente,no meio da rua,e,como disseste naquela vez,ser o primeiro a levantar e te aplaudir.Levantaria a lâmina para o céu,e teu sangue pingaria,formoso e purificado,no asfalto jovem.Mas não.Estou aqui,do teu lado,apenas eu,teu eterno michê,teu único amor,ostentando no peito um coração que já definha.O veneno que corre pelas minhas veias está em tua boca,que permanecerá calada por toda a eternidade.Olhe em volta novamente.Estranhas o silêncio,Carmen?São as pessoas fingindo não te ouvir.São as gargalhadas por trás das sombras,daqueles que te traíram e te humilharam a cada segundo da tua breve caminhada terrena.Eu estou,e sempre estive,com você aqui.Agora sou o responsável pela poesia de nossos últimos segundos nessa terra.Selando nosso pacto de sangue,farei eternas tuas palavras:
Esta vida é sua.Não posso tirá-la de você sem tirar a minha.
O sangue cairá de nós dois,então.
Iremos juntos ao inferno.

José Augusto Mendes Lobato 30/11/05

domingo, 27 de novembro de 2005

Vânia

Ah, pai, eu não tenho culpa! Não me julgue, o senhor já teve libido um dia e sabe como essas coisas não dependem da gente... poxa! O senhor sabe que eu sou um menino ainda, os hormônios estão transbordando junto com as espinhas. E eu não posso ser tão santinho assim, a ponto de ser assexuado. O senhor conhece seu filho, sabe que tantas horas no banheiro não são passando condicionador! Sem falso celibato, por favor, não está lidando com um santo!

Veja só que ironia, meu pai: eu fui abusado sexualmente. Tá bom, engole a risada, e afasta esse cinto de mim, senão nem pagar as fraldas do bebê vou poder. Mas eu fui mesmo! Não estava em um pouco mal-intencionado, muito pelo contrário, tentei até evitar. Mas aquela mulher, papai... meu Deus! Aquilo era muito mais que uma mulher... era uma ninfa! Sim, eu sei, não tenho idade para pensar nessas coisas. Mas tenho cabeça para isso já, sou um cara maduro. Não, a situação atual não afeta isso em nada, ainda me considero um cara de cabeça no lugar.
(...)

Bom, como ia lhe dizer antes de levar as porradas de cinto, estava jogando bola com meus amigos e acabei sofrendo uma contusão das brabas, isso o senhor já deve ter tomado conhecimento. Meu joelho estava completamente deslocado, e meus amigos, desesperados, decidiram me levar pro pronto socorro, que, magicamente, é do lado da pracinha. Sei cultivar boas amizades, o senhor sabe disso.

Entramos esmurrando as paredes, gritando por ajuda, mas o plantão parecia ter se transformado numa imensa partida de poker. Apenas uns poucos médicos ainda estavam de pé, e estes poucos conversavam e jogavam papo pra cima das enfermeiras. Sim, pai, parecia início de filme pornô... elas esfregando aquelas canetinhas no canto da boca, rindo de tudo que os doutores falavam, e por aí vai.Mas quebramos a eminência de uma suruba clínica para resolverem meu pequeno “causo” na perna. A essa altura, nem ligava mais para a porcaria da minha perna: estava de olho numa moça, que...

É pai, é ela mesma. Sim, foi ela. Sim, vai ser ela.

No crachá, lia Vânia; no corpo, lia a loucura em versos... a dor da minha lesão foi curada só pelo imagem daquele corpo coberto por aquela batinha de enfermeira, pai! E não estou sendo metafórico! Já a olhava desde a entrada, e ela me respondia o olhar com um sorrisinho cínico. Desde aí já estava ligadão, não tinha jeito.

Calma, o senhor pode fazer o favor de me ouvir? Ainda não me expliquei, relaxe!

Sim, voltando. Entramos na sala, vieram ela e um doutor (nem vi o rosto do figura) me atender. O cara foi rápido, disse que foi apenas um “mau-jeito”, passou uma pomada qualquer, me deu um antiinflamatório, um relaxante e foi embora. Logo meus amigos resolveram voltar para o campinho, alegando que eu “precisava ficar sozinho” (aqui está a prova do quanto cultivo boas amizades). Resumindo, em questão de minutos, ficamos só eu e Vânia na sala.

Tentava olhar para a tevê e fugir da tentação, meu pai, mas a coisa tava complicada, o senhor nem imagina o quanto. A mulher estava a fim mesmo! Ela ficava cruzando as pernas, para exibir aquele par de coxas definidas, e a ditacuja, escondida entre elas, vez ou outra, aparecia coberta pela fina renda da calcinha. Que era preta e transparente, por sinal. Ela ficava me olhando, fazendo perguntinhas, até que uma hora veio a investida a la Sylvia Saint:

- Você tem fetiche com enfermeiras?

- Err... tenho...

- Hum-hum! Percebi,já! Sabia que eu tenho fetiche por garotinhos como você, inexperientes, bobinhos, taradinhos?

- É?

- É.

- Ah...

Fiquei sem resposta. Mal sabia o que fazer. Ela veio andando em minha direção, tirando
cada peça de sua roupa lentamente, fechou a porta da sala com chave, e me deu um olhar sugestivo.

- O que será que temos debaixo desse lençol?

Desnecessário dizer o que ela fez, né pai? E isso não foi nada! Quando eu já estava nas estrelas, ela se jogou por cima de mim! Acho que o ranger da cama deve ter acordado até os pacientes que estavam em coma na UTI. A mulher urrava, me arranhava, até me socava na sua gloriosa cavalgada, e eu lá, “desfalecido” como um bom paciente deve ser. Nem sabia mais o que estava fazendo: o remédio que tomado já estava fazendo efeito, e via várias Vânias, uma mais enlouquecida do que a outra. Em alguns minutos, a festinha acabou, e lá caímos os dois encharcados na cama, cada qual acendendo seu cigarrinho.

Não, pai! Eu não fumo! Foi só para dar o clima!

...E Vânia começou a chorar! Vai entender essas mulheres, né, meu pai? Perguntei para ela porque ela estava assim, mas minha resposta não foi nada fácil de ouvir.

- A gente não usou camisinha...

Bom, desnecessário dizer algo mais! Agora estamos aqui, eu, um futuro pai de 14 anos, o senhor, um futuro avô que nem nos cinquenta chegou ainda, sentados vendo uma enfermeira ninfomaníaca gritar lá da sala de cirurgia pelo meu nome... é, ela se apaixonou por mim.

Não, não vou dar papo. Sigo seus conselhos, papai.

O que quis dizer nessa história toda? Narrar para o senhor a progressão dos fatos, como fui seduzido, como ela que tem a culpa e eu mereço é uma mulher de verdade, como ainda sou o mesmo garoto pé-no-chão que o senhor criou, como estou disposto a arcar com as consequências e fazer o melhor e mudar minha vida, e estudar pra passar no vestibular e trabalhar, e como posso explicar meus erros por ser ingênuo e bem-intencionado, e...

Tá certo, tá certo, desisto.

Pode me bater.

José Augusto Mendes Lobato 26 e 27/11/05

sábado, 26 de novembro de 2005

Andrea

A foto já havia sido tirada.Mesmo assim,continuava reunindo suas amigas em um arco perfeito,focando a câmera no centro de forma que nem um centímetro do grupo escapasse da foto.Ela sorria com cada flash,já articulando qual seria o próximo sorriso falso que faria.Pensava em como gostaria de passar o dia inteiro naquela pose,com aquelas roupas e pessoas ao seu redor,e não tivesse que voltar para casa,e lá se deparar com seu reflexo no espelho.
Era inconformada com sua beleza,embora todos os meninos a vangloriassem.Todo artifício que tinha em mãos para se sembelezar utilizava,e isso não se restringe a maquiagens e pingentes.Já tinha feito certas intervenções cirúrgicas para tirar as gordurinhas herdadas da infância,e suas amigas nem sonhavam com isso,admirando-a como uma "privilegiada de corpo".O modelo que seguia e difundia era o ideal para alimentar suas frustrações,ela sabia disso.Talvez por covardia,hesitava em mudá-lo.
Voltou as atenções para a festa.Andrea ainda sorria,mas agora sentada na mesa com as amigas.Taças de vinho e cigarros embalavam a conversa plastificada do grupinho.Ela,lá pelas tantas da noite,olhava o relógio,à espera do motorista.Queria ir embora,mesmo sabendo o que lhe aconteceria quando chegasse em casa,estava cansada.Não enxergava mais as amigas:vultos indistintos eram tudo que via à sua frente,e isso a colocou de volta trancafiada na sua cabeça.Era ela indistinta,exatamente daquele jeito?Vivia sob o efeito de alguma droga,forçada a moldar-se inconscientemente?Será que não estava se descobrindo (como acreditava) , e sim se perdendo mais ainda?
Será que sua vida não era tão estática e tão monocromática como aquela fotografia que haviam acabado de tirar?
Não,não.Aquilo devia ser coisa de porre.Buscou mais um cigarro na bolsa,e acendeu-o,enfiando goela abaixo o pouco de vinho que tinha em sua taça,só para pedir outra ao garçom que passava por perto.A situação piorava,sua cabeça rodava e rodava,e ela via os vultos se multiplicarem à sua volta.Resolveu ir dançar um pouco,curtir a liga.
Essas festas tinham teor semelhante à sua vida.Ela tinha que se divertir.Tinha que beber,dançar,pirar,beijar...se "libertar",nas palavras de suas amigas.Ela tinha que fazer aquilo,invariavelmente,toda sexta-feira,na mesma boate.Aliás,as festas por si só já eram iguais.Só mudavam os rostos que apareciam no clip de 15 anos.Era isso e pronto.Cerca de 8 horas de trabalho semanal,em nome do status que ostentava no círculo de adolescentes transviados da escola.
Andrea estava calada naquela noite...apenas sorria,e deixava os flashes a banharem.Não queria abrir a boca,ao menos ali.Dentro de si,tinha guardada mágoas,pensamentos de relevância,medos,sonhos,desejos...mas quem ali a ouviria?Nunca teve o costume de se abrir com ninguém.Só tinha o espelho para ouvi-la.Talvez por isso,temesse encará-lo.Assim como agora,via que nada sabia encarar sozinha,percebeu que sua face não era digna de ser encarada.
Que ela não era nada.
A dança,caótica,seguia.Os corpos à sua volta,os pensamentos percorrendo sua cabeça em espirais,o vinho exalando na sua pele,o cheiro de maconha no ar,os casais se agarrando pelos cantos,a luz difusa e multicolorida refletida nos olhos distantes.Já não se sentia bem.A certeza de um desespero que crescia dentro de si,uma sensação de deslocamento e frustração indescritível tomaram Andrea.A menina que antes estava de divertindo (ou fingindo se divertir) com as amigas,a que iluminava as fotos da Troppo com seu lindo sorriso,já não estava mais ali dentro.Nem mais um pingo de vontade de estar ali restava.A ficha tinha caído para ela.O passo,porém,tinha se tornardo paradoxalmente firme.As amigas observaram Andrea indo em direção ao pátio e a chamaram.Ela se virou,pediu-as para ficar sozinha e saiu da boate.
Chegando ao pátio,os pensamentos se esvaíram da mente de Andrea,e as sensações acabaram.Restou somente o gosto do vinho na sua boca,e a crescente dor dos pés calejados de tanto dançar.Olhava do pátio as ruas da cidade,vazias em plena madrugada.Olhou a lua,o céu limpo,a fonte d´água lá embaixo,as árvores em volta,a iluminação fraca...aquele ambiente quase teatral à sua volta.Propício.Perfeito.Inevitável.
Olhou para baixo.

José Augusto Mendes Lobato 26/11/05

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

Silvia


Tudo começa com a libido.Essa voluptuosa força que empurra os dois corpos,jovens,atraentes e inexperientes,em direção à cama.A loucura do momento é tamanha que detalhes "ínfimos",como a proteção,são esquecidos.Se entregam ao prazer,e o namoro de dois meses começa a tomar o molde de uma relação madura.
Passam-se dois meses.Os dois,claro,já estão devidamente terminados e nem se olham mais.Já é notícia em todo o morro do término dos dois.Ele já voltou a "trabalhar",e ela já está com outro,esse mais velho e mais esperto do que nunca.Largou os estudos e os pais para ir morar com ele,todos a criticam.Na sua consciência,apenas um desejo:o de dar uma vida digna para si...e para quem estava por vir.
A silueta não enganava mais:estava grávida.Desesperos à parte,estava decidida a levar a gravidez adiante.Seus pais a aconselhavam a abortar,suas amigas se afastavam gradativamente.Seu novo par parecia ser o único a aceitar a situação.Ele pensava que o filho era dele,e,se Deus fosse justo,o bebê nasceria moreno,e ele continuaria achando.Ela não podia acreditar que se via sozinha em situação tão linda como a de ser mãe!E a injustiça desse mundo com ela não acabaria aí.
Novamente,o morro assume sua forma de formigueiro humano,e as fofocas giram pelo distrito onde morava o ex-casal.Ele,traficante temido no lugar,já imaginava que o bebê era produto daquela noite que passaram juntos.O novo namorado dela era,coincidentemente,outro homem do serviço e inimigo mortal do futuro pai biológico.Ele olhava por através da janela de sua casa e via ela e o homem atravessando a rua.Apalpava sua arma,mas ainda não faria nada."Esperarei o momento certo",pensou,enquanto guardava numa caixa fotografias dela.
Os meses passavam,e ela já sentia os chutinhos da criança.Aqueles aparentemente bobos momentos de mãe e filho eram,na verdade,marcos na vida dela,que vinham como alívio em meio ao caos em que vivia.Tiroteios,mortes,chacinas,sangue,morro...pensava em fugir daquela favela quando seu bebê nascesse,e tentaria levar consigo seu namorado.Caso ele não quisesse largar a vida,ela iria mesmo assim.Sonhava em colocar o filho numa escola,arrumar um emprego e conseguir sua casa.Tinha visto na tevê que a prefeitura estava alojando famílias em um novo residencial para ex-favelados...era sua chance.
Ele já não queria mais fazer mal:os planos dela haviam chegado aos seus ouvidos,e,de repente,uma saudade,aquela solidão esganiçada,que corroe por dentro,tão comum aos homens ditos de ferro,veio.A dor parecia prever o que iria acontecer com ela,mas ele guardou para si,mais uma vez,o que sentia.Iria espera o filho nascer para conversar com ela.
Mas,como toda história envolvendo jovens sonhadores de classe média baixa,a história da menina que sonhava em mudar de vida terminou em tragédia.Em trabalho de parto,Silvinha morreu,deixando a criança antes mesmo de ver seu rosto.Um menino,nasceu branco,a cara do pai.Enfezado,o novo namorado foi entregá-lo ao ex,que já havia guardado sua arma numa gaveta,tamanho seu arrependimento de nunca ter dito para ela...que ainda a amava.Segurou-se por tanto tempo para não dar o braço a torcer,e agora tinha apenas aquele seu clonezinho,que representava uma história inacabada,como companhia no morro.Havia se tornado uma espécie de vilão na região,teria "a largado quando soube que estava grávida",estava marcado para morrer.Mas o medo não o atingia.O que o atingia era imaginar seu filho sozinho no mundo.Decidiu jogar tudo para o ar,largar o crime,reconstruir sua vida.Decidiu levar nas costas apenas o seu filho,uma muda de roupa,algumas memórias e - por que não - um pouco de esperança.
Seguiu morro abaixo.A metrópole o esperava de braços abertos.

José Augusto Mendes Lobato 25/11/05

Celine


Porque não posso sentir mais o aroma das rosas fazendo espirais no ar,dançando em torno da minha mente?Porque as palavras agora me consomem,e não mais são para mim libertárias,aconchegantes?Onde estão as minhas mãos,além de dentro de meus bolsos,enroscadas em papéis dobrados cheios de poesias inacabadas?
Aliás...cadê a poesia que escrevia com meus passos neste mundo?
Porque nada mais brilha diante de meus jovens olhos,se é dito que o sol está sempre à minha espreita?Porque não recebo mais de mim mesmo aprovação,e tudo que desejo é pecado?Porque sou tão inseguro,e minhas mãos trêmulas não me dão equilíbrio?
Aliás...cadê o meu equilíbrio?
Cada momento que estipulo eternizar se torna apenas um instante,volátil e breve esse,que leva minha mente ao infinito e me joga de volta na realidade.Meus olhos ainda estão secos,tenho forças para não chorar ainda.
Não,eu ainda não admiti a derrota.
Porque essas cicatrizes se abrem a cada conversa,a cada palavra que ouço de um amigo?Porque minhas vitórias de cada dia não compensam esssa dor imensa que é estar sozinho?Onde estão os bons conselhos,quando largo-me das presilhas e ajo pelo instinto?
Aliás...o que é o instinto?
Minha boca teima em tremer e pronunciar um nome que agora não me vem à cabeça.Seria isso o inconsciente?O mesmo que nos afasta agora,o mesmo que nos coloca frente a frente numa batalha sem vencedor ou perdedor?
Aliás...para quem eu construo minha história?Para mim,para o que fomos?
Cada lágrima que contenho,tento tornar mais um motivo de orgulho,amargo e frágil esse,que se quebra com um simples toque do teu olhar.Meu coração disfarça o desespero com o lento bater no seio que agora acelera ao te olhar.
Me faltam palavras para repetir os mesmos conceitos sob outro viés,o que posso me dar?Senão esperanças falsas,outro aroma de rosas,essas artificiais,sem cor,sem sabor,sem nada além do cheiro vazio de quem não mais pode amar?
Porque insisto em apunhalar-me a cada segundo,e contar os minutos em que pude enxergar o quão falsa minha fortaleza era,e o quanto me apeguei a uma terra onde não mais posso pisar?
Porque agora minhas mãos mal escrevem,e as letras tortas ainda conseguem um significado formar?
Porque elas ainda te desejam,Celine,querem teu corpo ao meu lado para nele repousar.
Meu amor agora está em suspenso,e meu corpo,tenso,busca um chão para pisar.Ainda sinto que,denso,meu caos será eterno:agora busco uma saída.Uma chance de recuperar minha solidão passiva.Deixo-te um adeus,conforme me entrego,olho para o chão que me espera,me atiro e sinto o vento meu corpo cortar.

José Augusto Mendes Lobato 24/11/05

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Caroline


Tudo no que acreditei fede. Às traças, entrego os meus sentimentos - agora já não me valem nada -, esses patéticos devaneios que já tive me atormentando, praticamente pedindo para serem vomitados no mais sujo penico que aparecer na minha frente.

A porta da casa range toda hora, pessoas entram e saem, balbuciando as mesmas lições de moral fajutas. Teu cheiro está aqui, em cada um destes objetos que, agora, são levados para longe de mim. Não tenho mais o direito legal de ter memórias? Ora! Quero todos os meus livros e cartas mofentos aqui, apodrecendo comigo no passar decadente de cada minuto!

Quero sentir, sim, à mercê das horas, teus lábios já póstumos alfinetando minhas orelhas, enquanto ouço tuas doces sonatas de piano... gravadas ainda em fita! Meu deus, fita! O que seria do mundo sem essas tecnologias ultrapassadas? Chega a soar bem falar de coisas passadas, não é? Acho que dedicarei a ti meus últimos momentos, sentado a fumar um charuto, escrevendo o livro dos teus dias ao meu lado.

As noites movidas a ópio me trazem tua sombra, envolta em fumaça cinzenta, da cor dos meus já doentes olhos, te ver traz, quem diria, uma lágrima do meu interior. E tarda a cair, este subproduto do meu sofrimento. Quando cai, a dor passa, e mais uma tragada me trará novo ânimo.

Tudo cheira mal. Minhas roupas, fétidas e manchadas, não são lavadas por ninguém; minha alimentação é tratada com a mesma higiene com que trato minhas fezes; meu apartamento é viveiro de ratos e de vermes, esses que me comem, no passar decadente de cada dia.

As pessoas ainda entram, fazendo ranger a porta enferrujada. Não me estendem a mão. Sequer olham para mim, como que me culpando pela tua falência. Dizem que te "matei de tristeza". Ora, que tristeza é essa? Seria ela proveniente do órgão que tanto fizestes o uso enquanto jovem? Ou viria ela dos colares, jóias, vestidos e diamantes que te dei? Teu corpo era, sim, o espelho mais belo, onde refletia o ouro e a beleza dos deuses! Ostentava-te tal qual um troféu, eras minha musa. E eu, teu marido exemplar. O que nunca ficou bebendo até cair, o que pagava as despesas, o que não te traía. O teu amante ideal!

Nossa fama na cidade era péssima, e não por tua culpa. Aquela louca que nós bem conhecemos saiu se desembestando a falar por aí coisas absurdas! Por sorte, sua sanidade já era comprovadamente afetada, e consegui colocá-la num manicômio com os outros loucos que nos malfalavam. Sempre fui um homem influente.

Mas, vangloriações à parte, agora sei que não estás mais aqui. Se pudesse, daria minha vida por ti, Caroline. O mofo começa a impregnar o ar a ponto de impedir minha respiração, e, não fossem as memórias purificando meu coração, já estaria morto. Teu segredo maior, tua idade, é o que me assusta. Teu ainda alvo seio carregava dentro um coração puro, fiel e inocente. Uma alma virgem, de míseras três décadas de caminhada terrena, morta pela vontade de Deus?Não! Deveria eu ter morrido, se Ele fosse mais sensato...

Mas não! Ele te levou, e me deixou aqui, entre livros incompletos, fotografias rasgadas e lençóis encardidos. Agora os abutres estão à espreita, esperando por sua mais nova carniça, Caroline. Meu livro acaba aqui, junto com a promessa de um eterno - e bizzarro para o leitor,talvez - amor. O ar que respiro já está rareando, e os vermes já sobem pelo pé da cama, prontos para penetrar pelas feridas, que abri com a simples ato de te escrever, e consumir minha alma e minha já podre carne.

Tua mãe já está no céu, Caroline: os loucos se libertam deste mundo mais cedo. E teu pai, que te honrou e amou até o último minuto, está indo ao teu encontro.

Espere por mim.

Cornell Thrust