quinta-feira, 28 de setembro de 2006

Ésper

"Não existe uma única forma de amar. Nós amamos a matéria, nós amamos o não-palpável, nós amamos desde as mais terrenas até as mais inexplicáveis coisas. Amar é um turbilhão de sensações ao qual poucos conseguem se sujeitar sem perder o fio da meada. É, sem dúvidas, um verbo que deveria ser menos usado na linguagem"

Existe um peso em minhas costas. Uma dor penetrante, aguda, que enlaça cada uma destas palavras, cada segundo maldito que dedico à ti. Existe, junta a ele, a vontade de fazer de tuas palavras minhas, e jogar tudo para o espaço.

Eu te esperei, tal qual uma criança. Brinquei por entre teus lençóis, procurando teu corpo por baixo das vestes encardidas. Foram catorze anos de desespero e tensão. Não vi a luz do sol penetrar o quarto uma única vez, nem senti o doce em meus lábios novamente. As teclas do piano faziam ressoar uma torturante melodia pelas paredes. Por catorze anos. Te esperei.

Nosso amor deveria ultrapassar o entendimento humano. As dores da matéria. O sofrimento da fome, da claustrofobia, o desespero. Perdeste, meu amor, o fio da meada. No meio do caminho, optaste por ir às ruas e gritar, e me deixar à tua espera. Aprendi a te amar por através da carne, da matéria. A este turbilhão de sensações estive presa. Te esperando. Por longos catorze anos.

Até que, de tanto sofrer pela tua ausência, meu corpo começou a perder força. Me senti presa à cama. Acorrentada aos lençóis. Às memórias vívidas agarradas às paredes e aos móveis. Uma febre começou a ferir-me a alma, e a tirar o pouco de vida que deixastes de dentro de mim. Cresceu o peso em minha alma. A culpa de ter rendido meu coração a um homem. O ódio de estar me entregando à morte em seu nome.

As últimas palavras de uma mulher devem ser sábias, belas. Mesmo com a insanidade batendo à porta, mesmo com o ódio consumindo seus pensamentos, mesmo com as mãos trêmulas, e com a tinta endurecida e o papel apodrecido engolindo-as inexpressivamente. O Ésper da vida remove meu corpo e minha alma da prisão de vidro na qual me encarceraste.

A liberdade póstuma deve ser, para mim e para ti, meu homem, uma lição.

O meu adeus deve ser, para mim e para ti, meu pai, um até logo.

Caroline LoRaine

Para quem quiser compreender:

quinta-feira, 21 de setembro de 2006

Papo de avô

Namorar é muito bom. Todo homem deveria namorar, para saber o quanto é bom. E namorar direito, com beijo na boca, troca de presentes, jantares e bebedeiras a dois, sexo e muita, mas muita, confiança e respeito. Uma pena que tenha gente por aí jogando tudo isso no lixo.
Tem homem que até namora, sabe? Chega junto de uma mulher, "pega", leva pra cama e, dois dias depois, assume compromisso. A coisa que parecia não ter futuro vai durando, durando... e eis que aparece aquela amiga de anos atrás, liga pra ele quando a tal namorada está viajando. Convida pra dar uma volta, tomar uma. O cara até pensa duas vezes, pensa na namorada, tadinha, que está sem nem imaginar o que acontece pela cidade no momento. Ah, mas quem iria saber? Ele sai. E leva a "outra" pra cama. Transa. Se apaixona. Começa a vida a três.
Há casos nos quais a "outra" começa a se aborrecer. Pergunta para ele o que o prende à namorada. E ele não sabe o quê. Afinal, com a amante é melhor do que com a companheira de três anos. Não sabe por que diabos namora, mas, por inércia e preguiça de se decidir, namora com as duas mesmo. Casa e tem filhos. E continua traindo, o filho da mãe.
Também tem homem que consegue largar a namorada depois de anos de mentira. Aos olhos do mundo, é um canalha bem-sucedido. Fisgou duas de uma só vez, o rapaz. Até existe a chance de ele se arrepender, largar a "outra" (a qual, ele descobre, só serve em doses homeopáticas) e pedir desculpas para a namorada (a qual, ele descobre, só serve ao seu lado), mas... às vezes ela tem amor próprio. Aí, olha só que ironia, ele ainda acaba sozinho. É o infeliz destino de todo homem arrependido.
Namorar é muito bom. Há quem diga que namoro é uma prisão à qual a gente deve se sujeitar depois de muito experimentar. Talvez a poligamia seja um estágio de imaturidade no qual muitos homens e mulheres estejam empacados, talvez seja a tendência natural do homem, que é abafada em nome do convívio social. Não importa. O resultado de uma vida a três (ou a cinco, ou a dez...) é uma inexperiência na vida afetiva que só vai ser notada 50 anos depois, quando estiver sozinho em um gigante apartamento vazio, bebendo vinho e vendo tevê depois de um cansativo dia de trabalho. A pergunta é: vale a pena magoar-se, machucar os outros, estragar amizades, famílias, vidas (porque não?) assumindo um compromisso no qual não acreditamos nem desejamos assumir? Meninos, meninos... vamos ser homens.
Ah! Existe, em esmagadora minoria, o homem fiel. É, ele existe! Só que ele tende a ser o chifrado de triângulo, justamente por ser o contrapeso feminino do casal, o "bonzinho" sacaneado pela mulher a qual ama, e na qual confia. A mulher, pasmem assume esse papel também. E a ele, resta ser ainda mais ridicularizado em seu meio, pela sua natureza não-poligâmica e respeitosa. O mundo é muito injusto mesmo. Meninas, meninas... até vocês!
Namorar é muito bom. Todo homem deveria namorar, para saber o quanto é bom. E namorar direito, com fidelidade, respeito e, se tudo der certo no caminho, amor. Ser homem é muito bom. Ser mulher também deve. Todos os casais deveriam se respeitar mutuamente, para saber o quanto é bom ter orgulho de ser o que é, de ser o que são, de ser o que serão um dia. Deve ser muito bom deitar a cabeça no travesseiro e sentir-se completo ao lado de alguém que ama. Ou então, ao menos, sentir-se completo consigo mesmo e ter a consciência limpa de quem nunca desvalorizou os sentimentos, seus ou dos outros, afetivos ou carnais. Meninos e meninas... vamos tomar vergonha na cara?

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

O Diário de um Yuppie

Eu preciso acordar. Antes que o mundo comece sua correria cotidiana e me deixe para trás, vou estar de pé! Preciso me olhar no espelho, cobrir as olheiras com um bom óculos escuro, lavar o rosto e escovar bem meus dentes. Tomar um bom banho quente e fumar o primeiro cigarro na mesa do café, família em volta, comendo ovos com bacon e cereais. Um bom hálito faz o dia do homem social.

Preciso tomar sol. Mesmo que minha pele fique ardida, é fundamental aparentar jovialidade. Antes das 9, devo estar devidamente engomado, pegando o carro na garagem. E que seja o que Deus quiser. Que o trânsito conspire ao meu favor, que eu não bata o carro novinho em folha comprado com o décimo terceiro. Preciso ainda deixar os filhos na escola, mesmo sabendo que eles só esperam que eu vire a esquina para sair da escola e acender o primeiro cigarro do dia. São coisas da idade. Preciso entendê-los e ignorá-los.

Preciso me cuidar. Tomar conta da minha pele e do meu corpo, tomar meus remédios na hora certa. Prozac com café preto às sete, sim. Nem pensar em ficar doente. Acordar cedo no outro dia para não atrasá-lo. Preciso almoçar rápido, e de preferência que seja na rua. Jantar num fast-food qualquer, para fechar o dia com a chave de ouro de sempre. Não dá para tomar 4 banhos diários, então que seja um só, e bem tomado. Que eu continue perfumado ao chegar em casa e me deparar com a linda mulher sob meus lençóis. Que ela entenda que eu apenas tive uma reunião emergencial em plena madrugada, e que não roube minha metade da cama.

Preciso ser um bom pai e marido. Ir à missa aos domingos, sorrir para o jornal da manhã e ter sempre filhos sadios. Mesmo que eles estejam assim de quando em vez, e se arrastem dopados pelos cantos da cidade enquanto durmo. E que eu nunca os veja no IML na manhã seguinte. Nem minha mulher grávida de novo. Que Deus me permita – e me perdoe por isto – ter, um belo dia, a vidinha de luxo que sempre sonhei. Que essa família não me custe os olhos da cara, senão fujo com a secretária.

É, eu não dependo de ninguém. Nem a coitada da minha família, nem os coitados meus vizinhos, amigos, amantes, colegas de trabalho, amigos e inimigos. Todos são independentes em tese. Precisam acordar também, olhar-se no espelho e nunca, nunca, sentir-se vazios, inúteis. Eles precisam de si mesmos, para se alimentar a si mesmos, e dar gás à máquina do qual são engrenagens. E que Deus perdoe-os por serem tão focados nas coisas que devem fazer. E que Deus os perdoe por serem tão otários.

E que ele nunca me perdoe. Eu preciso fingir não admitir, oras. Mesmo que sob os efeitos de um convívio social falso, mesmo que vivendo um modelo de vida falido, preciso ser um poço de naturalidade kitsch. Eu preciso dormir tendo a certeza de que o que existe atrás da cortina que me separa da realidade nunca será visto por meus olhos. Eu preciso, acima de tudo, acordar no dia seguinte e nem me lembrar do que um dia já vivi. Só para não chegar à infeliz conclusão de que ainda não sei o que é viver de fato.

José Augusto Mendes Lobato

sexta-feira, 1 de setembro de 2006

(...)

Acharam uma criança no lixo. Bairro pobre de uma capital amazônica. Muita gente gritou alto, revoltosos fecharam avenidas, a notícia saiu em rede nacional. O bebê resistiu, sob os cuidados de médicos da melhor estirpe. Não passou uma semana, já estava nas mãos dos avós. A "mãe" sumira após o incidente, provavelmente com medo de também acabar no lixo.
Esse tipo de situação causa uma certa revolta, e é desnecessário dissertar sobre a monstruosidade de alguém que joga um fruto de seu ventre num latão de lixo, ou sobre a insustentável absurdez da situação. O ponto chave é questionar o tumor social que existe, cresce e se reflete em casos como esse.
As pessoas fazem sexo. Ou amor. Enfim, sem a devida cautela, o resultado das duas é o mesmo: gravidez. E quando uma mulher engravida, ela e seu parceiro estão assumindo um compromisso de vida, consigo e com o mundo que os cerca: colocar nele um projeto de homem ou mulher que deve levar adiante o que chamamos de sociedade. Esse laço de espírito é quebrado por mães que, num acesso de desespero, abortam, por pais revoltados que não assumem o filho, por famílias que crucificam seus filhos por terem "arrumado filho cedo demais", entre outros. Julgamentos de valor à parte, não há como não se revoltar ainda mais com alguém que coloca alguém no mundo para jogar no lixo.
Tanto literal quanto metaforicamente, elas, no lixo, não crescerão bem. Ou morrerão. Se vivas, serão crianças de rua, adolescentes marginalizados, adultos de péssima condição e caráter afetado. E, ciclicamente, péssimos pais. Pequenas células cancerosas, no meio de uma metrópole amazônica ou no centro de Nova York. Sempre serão aberrações sociais. E o efeito bola de neve leva a quê? O fardo de ser pai ou mãe é banalizado; mais e mais células cancerosas se reproduzirão; o sexo é banalizado, e mesmo assim, feito sem cuidados, já que há muitas genitálias a se proteger...
Ah! Chega!
Só de pensar nisso, você já se afoga em pensamentos. Essas pequenas obras de arte que caem nas mãos de um mundo doente serão, em um íntimo distante, gênios e pessoas de bem em potencial. Vestidas, porém, com a ignorância, a violência e os farrapos de um meio social decadente, nunca deixarão de ser uma eterna possibilidade. E nós, a minoria que teve a sorte de nascer em berço de ouro, qual nosso papel? Certamente não se resume a fechar avenidas em protesto, prender gente e concentrar jornalistas por um único dia em torno de um incidente isolado. Nossa função é fazer do nosso mundo um berço melhor para essas crianças, fazer de suas famílias ambientes saudáveis, por adoção ou assumindo-as com carinho e afinco, nosso papel é o de preparar o terreno para que eles colham seus frutos com os lábios sedentos. Valorizar essas obras de arte que a natureza nos proporciona é o que nos tornará pessoas grandes, daquelas que você vê nas novelas e comédias românticas e sonha em ser um dia.

Obras de arte existem para serem comtempladas, não jogadas no lixo.
Pessoas são obras de arte.
Você é uma obra de arte.

José Augusto Mendes Lobato 30/08/06 - 01/09/06