Saí do elevador com a sensação de quem escapava de um túnel
subterrâneo. Estava com as mãos suadas, a testa brilhando de tanto suor por
causa do verão infernal dessa cidade. O celular não parava de apitar; toda
aquela gente preocupada me deixava nervosa, angustiada. Joguei o crachá no
lixo, apertei a bolsa contra o corpo e corri até a estação de trem. Botei o aparelho no silencioso e chequei o horário, cercada de
um monte de gente que mal me deixava abrir os braços. O fedor de merda
indicava: o sol maturara o esgoto dos bairros nobres da zona sul. O rio
brilhava, espelhando um céu azul-desbotado com nuvens gordas. Pude imaginar o sorriso da moça do tempo no telejornal e fiquei com nojo dessa cidade e dessa gente.
Dois anos fazendo esse caminho de modo ininterrupto tinham
me tirado a atenção aos detalhes. Olhei em volta; todos fitavam seus celulares,
uns dois retardados admiravam a paisagem da avenida engarrafada à direita. Era lamentável em mais sentidos do que poderia descrever. O
trem lotado forçava uma convivência que, a essa altura, já sabia ser
insuportável. Não havia fuga possível, nem mesmo uns dias muito negociados de
férias. Que canseira.
Na troca de linha, abri a carteira e encarei as fotos 3x4
guardadas sem cuidado algum. Ele estava lá, com a cara mais inexpressiva do
mundo; foi como me habituei a vê-lo, sempre reclamando da vida, sempre
amargurado com uma rotina que não era sua, sempre fingindo preencher vazios. Aquelas três imbecis também estavam
ao lado, em várias versões do mesmo retrato, todas me mandando beijinhos. A moldurinha das imagens era cheia
de ícones infantis; coisa ridícula, sabe-se Deus quem teve a ideia. Só
conseguia sentir raiva, raiva de ainda por cima ter de deixar alguém
preocupado. Por alguns segundos, só pude pensar em como estava perto do silêncio.
- Dá pra você andar, por favor? Tá atrapalhando a passagem.
Maldita esteira de cada dia, maldita gentinha apressada, maldito sotaque misturado de cidade grande. Coloquei-me à direita e deixei o povo em sua confortável linha reta. As telas em volta
gritavam, ofereciam coisas que não tinha tempo de ver, um monte de
inutilidades. Cansada de tanto tremor no bolso, joguei o aparelho no lixo. Uns
olharam, incrédulos; outros, como eu, só seguiram viagem. Meia hora depois, já
estava naquele lugar estranho e significativo, só carregando a bolsa e suada dos pés à nuca.
Quantas escadarias, quantos corredores. Muito impessoal.
Lembrei do terapeuta, um senhorzinho pretensioso com ares aristocráticos e voz fina, falando algo sobre as imagens que devíamos guardar para
emoldurar um paraíso. Sempre que sentisse a pontada no peito, sempre que a
violência contra si ficasse palpável, era pra pensar nesse bendito santuário,
enchê-lo de referências próprias, enfim, tê-lo como refúgio. Por muito tempo, fui hipócrita: concebi um quarto em fim de
tarde, com chuva batendo à janela, café, livros decentes e a companhia daquela
gente dispensável. Todo mundo sorria. Pura falsidade, até nas operações da consciência! Apaguei tudo
da memória e, no lugar, pus a imagem do saguão.
O cheiro de produto de limpeza,
a profusão de engravatados e o ar de serviço público caro e ineficiente eram
suficientes. Para ser perfeito, só estando em outra cidade, outro país, outro
continente. Enquanto subia as escadas, vi, de relance, os quatro entrarem correndo no saguão, esbaforidos e cheios de esperança de mudar o que não tinha jeito. Alguém chegou em casa antes da hora, deduzi; preocupavam-se comigo ou com os demais? A luz amarelada do sol de trinta graus rasgava os
janelões encardidos. O corredor do sétimo andar estava vazio e silencioso; somente dois meninos – provavelmente estagiários de uma profissão medíocre como
a minha – batiam um papo animado sobre o feriado que se aproximava. Fiquei excitada em todos os sentidos possíveis. Cenário
perfeito. Eis meu novo santuário.
Abri a bolsa, apertei os botões no código que me fora informado. Deixei-a no chão. Corri para o parapeito, arranquei a blusa e me
senti o ser humano mais digno, potente e dono de si do mundo.