domingo, 15 de outubro de 2017

Pelos ares

Saí do elevador com a sensação de quem escapava de um túnel subterrâneo. Estava com as mãos suadas, a testa brilhando de tanto suor por causa do verão infernal dessa cidade. O celular não parava de apitar; toda aquela gente preocupada me deixava nervosa, angustiada. Joguei o crachá no lixo, apertei a bolsa contra o corpo e corri até a estação de trem. Botei o aparelho no silencioso e chequei o horário, cercada de um monte de gente que mal me deixava abrir os braços. O fedor de merda indicava: o sol maturara o esgoto dos bairros nobres da zona sul. O rio brilhava, espelhando um céu azul-desbotado com nuvens gordas. Pude imaginar o sorriso da moça do tempo no telejornal e fiquei com nojo dessa cidade e dessa gente.

Dois anos fazendo esse caminho de modo ininterrupto tinham me tirado a atenção aos detalhes. Olhei em volta; todos fitavam seus celulares, uns dois retardados admiravam a paisagem da avenida engarrafada à direita. Era lamentável em mais sentidos do que poderia descrever. O trem lotado forçava uma convivência que, a essa altura, já sabia ser insuportável. Não havia fuga possível, nem mesmo uns dias muito negociados de férias. Que canseira.

Na troca de linha, abri a carteira e encarei as fotos 3x4 guardadas sem cuidado algum. Ele estava lá, com a cara mais inexpressiva do mundo; foi como me habituei a vê-lo, sempre reclamando da vida, sempre amargurado com uma rotina que não era sua, sempre fingindo preencher vazios. Aquelas três imbecis também estavam ao lado, em várias versões do mesmo retrato, todas me mandando beijinhos. A moldurinha das imagens era cheia de ícones infantis; coisa ridícula, sabe-se Deus quem teve a ideia. Só conseguia sentir raiva, raiva de ainda por cima ter de deixar alguém preocupado. Por alguns segundos, só pude pensar em como estava perto do silêncio.

- Dá pra você andar, por favor? Tá atrapalhando a passagem.

Maldita esteira de cada dia, maldita gentinha apressada, maldito sotaque misturado de cidade grande. Coloquei-me à direita e deixei o povo em sua confortável linha reta. As telas em volta gritavam, ofereciam coisas que não tinha tempo de ver, um monte de inutilidades. Cansada de tanto tremor no bolso, joguei o aparelho no lixo. Uns olharam, incrédulos; outros, como eu, só seguiram viagem. Meia hora depois, já estava naquele lugar estranho e significativo, só carregando a bolsa e suada dos pés à nuca.

Quantas escadarias, quantos corredores. Muito impessoal. Lembrei do terapeuta, um senhorzinho pretensioso com ares aristocráticos e voz fina, falando algo sobre as imagens que devíamos guardar para emoldurar um paraíso. Sempre que sentisse a pontada no peito, sempre que a violência contra si ficasse palpável, era pra pensar nesse bendito santuário, enchê-lo de referências próprias, enfim, tê-lo como refúgio. Por muito tempo, fui hipócrita: concebi um quarto em fim de tarde, com chuva batendo à janela, café, livros decentes e a companhia daquela gente dispensável. Todo mundo sorria. Pura falsidade, até nas operações da consciência! Apaguei tudo da memória e, no lugar, pus a imagem do saguão. 

O cheiro de produto de limpeza, a profusão de engravatados e o ar de serviço público caro e ineficiente eram suficientes. Para ser perfeito, só estando em outra cidade, outro país, outro continente. Enquanto subia as escadas, vi, de relance, os quatro entrarem correndo no saguão, esbaforidos e cheios de esperança de mudar o que não tinha jeito. Alguém chegou em casa antes da hora, deduzi; preocupavam-se comigo ou com os demais? A luz amarelada do sol de trinta graus rasgava os janelões encardidos. O corredor do sétimo andar estava vazio e silencioso; somente dois meninos – provavelmente estagiários de uma profissão medíocre como a minha – batiam um papo animado sobre o feriado que se aproximava. Fiquei excitada em todos os sentidos possíveis. Cenário perfeito. Eis meu novo santuário.


Abri a bolsa, apertei os botões no código que me fora informado. Deixei-a no chão. Corri para o parapeito, arranquei a blusa e me senti o ser humano mais digno, potente e dono de si do mundo.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Vovô


Hoje, acordei umas 6h30 e me deparei com esse amanhecer lindo no violento verão de São Paulo. Meio sonâmbulo, peguei o celular e tirei umas fotos borradas da janela do banheiro. Voltei pra cama, revirei ela inteira e não consegui dormir rápido. Às 8h, a Mayara me acordaria com a notícia da partida do vovô, dada por minhas irmãs há pouco. Depois de quase dois dias no hospital, inconsciente, a pressão dele foi caindo, caindo, caindo e pronto. Virou hipótese.

Carinhosamente conhecido como seu Oliveira, meu avô tinha inúmeras histórias na ponta da língua e uma sabedoria infinita, como todo idoso que viu o século XX passar – mas que também deixou sua história cravada nele. Vindo do interior de Portugal bem novo para o Brasil, contava, risonho, sobre como tentou não causar choque na vovó Rosa ao levá-la pela primeira vez a Belém. Mal sabia ele que se apaixonariam pelo Pará. Apegaram-se e ali, como muitos conterrâneos, fizeram família, negócios e construíram uma história de vida, jamais perdendo, no entanto, o sotaque característico da terrinha.

Tivemos – meus tios, meus pais, eu, Clarissa, Isabela, Marina, Ligia – uma trajetória muito feliz ao lado dos dois, cada qual à sua maneira. Com seu jeitão mais sério, sem muitos adjetivos ou dramas, o vovô tinha um apego enorme com os netos; víamos isso nos arroubos de orgulho, nas lições de moral, nos papos cabeçudos, nas implicâncias – nunca vou esquecer a felicidade dele ao me ver sem aquele cabelo comprido, depois de raspar a cabeça no vestibular –, nos pequenos gestos.

Confesso que, em 2009, quando vivemos a sofridíssima partida da vovó, pensei que ele não viveria para minha formatura da graduação, dali a alguns meses. Mas parece que aquela dor toda o fez ter certeza do quanto queria viver mais uns anos conosco. Mudou-se para a casa da mamãe; surpreendeu a todos pela independência, pela capacidade de seguir em frente, diferentemente de tantos homens que ficam viúvos. Mesmo emocionando-se sempre que falava da vovó – deixando claro que nada mais seria igual sem ela –, víamos nele uma enorme vontade de viver. No fundo, tudo isso era para poder ver os bisnetos chegarem; os netos, um a um, casarem; assistir à casa ficar cheia no fim do ano; acompanhar meus tios e minha mãe, diariamente, em seus projetos pessoais e profissionais, aconselhando-os.

O vovô tinha alguns costumes divertidos, como manter uma unha comprida (imagino que por razões de segurança pessoal, heheh), o vício no canal de notícias português RTPi, a hora cronometrada da soneca e do almoço e o planejamento semanal que, sempre e invariavelmente, incluía idas ao supermercado. Foi num destes passeios ao varejo, aliás, que tive um dos meus últimos longos papos com ele. Parados no trânsito tenebroso da Augusto Montenegro, numa manhã de fim de ano, conversamos sobre política, a crise, filhos, os planos para o futuro, a necessidade de eu perder peso, os preços dos peixes em São Paulo, como diferenciar um bacalhau fêmea de um macho, o sinal péssimo da RTPi. Nos últimos anos, depois que ele foi morar com a mamãe, nos aproximamos bastante. Ele sempre me perguntava sobre a vida por aqui, como estava nossa casa, se nossas finanças estavam equilibradas; tinha interesse em saber como levávamos a vida. Sempre mandava um beijo pra Mayara, quando eu não estava com ela. Depois da morte do Lobatão, ele, talvez sem saber, virou minha principal referência paterna.

No fundo, sabia o quanto aqueles momentos com o vovô me fariam falta. Não parava de pensar em como ele estava velhinho e, a qualquer hora, nos deixaria. Ansioso patológico que sou, não parei de pensar nisso desde que o vi pela primeira vez se queixar de cansaço, aumentar a medicação do coração, ter inchaço nos pés e dar sinais de que a vida estava ficando cansativa. Guardava pra mim, mas sempre pensava que toda ida a Belém era uma bênção por poder vê-lo novamente, nem que fosse a última vez. Agora, no Natal de 2015, foi a nossa despedida. Dei um beijo na testa dele e, como sempre, prometi que já, já estaríamos de novo em Belém.

Hoje, volto a me emocionar enquanto escrevo esse texto – do mesmo jeito que anteontem, quando, no trabalho, soube pela minha mãe que ele dificilmente sairia do hospital. Os últimos três dias foram uma longa despedida à distância, mas eu sei que de algum jeito tô pertinho dele. E que todo esse amor que sentimos por ele, clichês à parte, há de servir de fortaleza.

Vai com Deus, vô.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Closure

                      

As duas meninas acordaram, trocaram uns beijos e correram para a escola. A mãe de uma delas serviu o café da manhã, mas ninguém quis acompanhá-la. Não via o marido há dias. Mordeu a torrada com gosto de café amargo, chorou baixo e ligou para a terapeuta. Saiu de casa correndo; perdera a hora curtindo a chuva borrar suas janelas.

Do outro lado da cidade, o garoto ruivo e sardento assistia à briga dos pais. Batia os dentes; o frio de cinco graus incomodava menos que a sensação de que ia acabar apanhando. Quando estava perto da porta, ouviu gemidos na sala; voltou e, de relance, viu-os estirados no chão, pernas escurecidas, seringas injetadas desajeitadamente, aquele cheio adocicado horrendo no ar. Saiu correndo e pegou o primeiro ônibus que passou na rua.

Dentro do metrô lotado, a mulher de meia idade pensava no quanto era insuportável deixar o carro a quilômetros do trabalho. Sentia-se presa, cercada daquela gente imunda que pegava a linha na periferia. Na saída, tropeçou na escada. Uma senhora gentil a ajudou a se levantar; pediu para que a levasse até o centro financeiro, pois nunca tinha estado na capital. Aborrecida, apertou o passo, puxando a idosa para a faixa de pedestre.


Com a pressão do relógio nas costas e um pivete de oito anos chorando por ajuda em seu ouvido, o motorista do ônibus acelerou – derrapou ao ver o sinal vermelho piscar. As duas meninas também atravessavam a rua, risonhas; na direção oposta, a mãe fumava dentro de um sedã perdido entre as faixas de mão dupla. Os pais do garoto ruivo sentiram a pontada no cérebro, mais forte e persistente. O relógio de rua parou às 8h05.