quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Caroline


Tudo no que acreditei fede. Às traças, entrego os meus sentimentos - agora já não me valem nada -, esses patéticos devaneios que já tive me atormentando, praticamente pedindo para serem vomitados no mais sujo penico que aparecer na minha frente.

A porta da casa range toda hora, pessoas entram e saem, balbuciando as mesmas lições de moral fajutas. Teu cheiro está aqui, em cada um destes objetos que, agora, são levados para longe de mim. Não tenho mais o direito legal de ter memórias? Ora! Quero todos os meus livros e cartas mofentos aqui, apodrecendo comigo no passar decadente de cada minuto!

Quero sentir, sim, à mercê das horas, teus lábios já póstumos alfinetando minhas orelhas, enquanto ouço tuas doces sonatas de piano... gravadas ainda em fita! Meu deus, fita! O que seria do mundo sem essas tecnologias ultrapassadas? Chega a soar bem falar de coisas passadas, não é? Acho que dedicarei a ti meus últimos momentos, sentado a fumar um charuto, escrevendo o livro dos teus dias ao meu lado.

As noites movidas a ópio me trazem tua sombra, envolta em fumaça cinzenta, da cor dos meus já doentes olhos, te ver traz, quem diria, uma lágrima do meu interior. E tarda a cair, este subproduto do meu sofrimento. Quando cai, a dor passa, e mais uma tragada me trará novo ânimo.

Tudo cheira mal. Minhas roupas, fétidas e manchadas, não são lavadas por ninguém; minha alimentação é tratada com a mesma higiene com que trato minhas fezes; meu apartamento é viveiro de ratos e de vermes, esses que me comem, no passar decadente de cada dia.

As pessoas ainda entram, fazendo ranger a porta enferrujada. Não me estendem a mão. Sequer olham para mim, como que me culpando pela tua falência. Dizem que te "matei de tristeza". Ora, que tristeza é essa? Seria ela proveniente do órgão que tanto fizestes o uso enquanto jovem? Ou viria ela dos colares, jóias, vestidos e diamantes que te dei? Teu corpo era, sim, o espelho mais belo, onde refletia o ouro e a beleza dos deuses! Ostentava-te tal qual um troféu, eras minha musa. E eu, teu marido exemplar. O que nunca ficou bebendo até cair, o que pagava as despesas, o que não te traía. O teu amante ideal!

Nossa fama na cidade era péssima, e não por tua culpa. Aquela louca que nós bem conhecemos saiu se desembestando a falar por aí coisas absurdas! Por sorte, sua sanidade já era comprovadamente afetada, e consegui colocá-la num manicômio com os outros loucos que nos malfalavam. Sempre fui um homem influente.

Mas, vangloriações à parte, agora sei que não estás mais aqui. Se pudesse, daria minha vida por ti, Caroline. O mofo começa a impregnar o ar a ponto de impedir minha respiração, e, não fossem as memórias purificando meu coração, já estaria morto. Teu segredo maior, tua idade, é o que me assusta. Teu ainda alvo seio carregava dentro um coração puro, fiel e inocente. Uma alma virgem, de míseras três décadas de caminhada terrena, morta pela vontade de Deus?Não! Deveria eu ter morrido, se Ele fosse mais sensato...

Mas não! Ele te levou, e me deixou aqui, entre livros incompletos, fotografias rasgadas e lençóis encardidos. Agora os abutres estão à espreita, esperando por sua mais nova carniça, Caroline. Meu livro acaba aqui, junto com a promessa de um eterno - e bizzarro para o leitor,talvez - amor. O ar que respiro já está rareando, e os vermes já sobem pelo pé da cama, prontos para penetrar pelas feridas, que abri com a simples ato de te escrever, e consumir minha alma e minha já podre carne.

Tua mãe já está no céu, Caroline: os loucos se libertam deste mundo mais cedo. E teu pai, que te honrou e amou até o último minuto, está indo ao teu encontro.

Espere por mim.

Cornell Thrust

2 comentários:

Luiz Mário Brotherhood disse...

AAAh o mundo é dos espertos!
Vou roubar esse teu magnífico texto, publicá-lo e ganhar o prêmio nobel de literatura.

PQP! =D

=*****

Anônimo disse...

Tua criatividade é sensacional,assim como o teu talento!Adorei tudo aqui,desde o nome do blog aos posts.
Te amo,amigo!Desculpa o meu mal humor,tá?
Beijões