terça-feira, 25 de agosto de 2009

Possíveis lições do jornalismo policial

É recorrente ouvir que o jornalismo policial para nada serve. Já cansei de ouvir isso - e, confesso, concordar com os argumentos mais infundados do universo, disparados por alguns colegas e conhecidos. Não só entre o pessoal da área, mas entre os próprios leitores, a editoria de Polícia é tratada como algo baixo, sanguinolento, apelativo, desumano. O motivo: a profusão de corpos explodidos, cabeças esmagadas, facadas, tiros e pauladas afins que povoam nossas páginas, telas e rádios. Não pretendo me ater a esta discussão. Queria falar um pouco de experiência pessoal: como tudo nessa vida é aprendizado e amadurecimento - e, também, obra do acaso -, fui parar neste caderno no jornal em que trabalho, logo em meu primeiro dia de volta das férias.

Na verdade, já era escalado para fazer Polícia nos plantões de sábado e domingo há algum tempo. Também já havia passado uma ou duas semanas na editoria, cobrindo as férias de colegas. Mas desde esse mês de julho é diferente. Acordo, tomo café e vou para o jornal consciente de que, sim, vou fazer ronda. Receber coordenadas de locais em que há gente morta, gente levando o farelo, gente sendo presa e prendendo mais gente. Ir às delegacias procurar desgraça e voltar puto se não houver nada para escrever sobre. Meu nome mudou de lugar na folhinha de pautas distribuída a cada dia. Fiquei amigo de PM, delegado, escrivão - de bandido, até (dia desses uns detentos me pediram cigarro... é mole?). Enfim; um "foca" enfiado num dos setores mais complicados e polêmicos de um jornal diário. Tá institucionalizado.

O que aconteceu comigo não tem nada de especial. Conheço muita gente lá do trabalho que também passou por outras editorias e, de repente, se viu jogada no tal "caderno da baixaria". Por isso, quando recebi a notícia, não fiquei triste, como muita gente pensava. Nervoso, sim, porque realmente não tinha (e não tenho) experiência na área, e, ao contrário do que uns e outros pensam, é preciso tê-la para não fazer e falar besteira à hora de escrever sobre o assunto. Mas decidi entrar na história, para aprender e conviver com gente "vivida" na área. E, em pouco mais de um mês, posso dizer que essa editoria mudou minha forma de ver nossa querida profissão.

Usos e efeitos

Por quê?, você deve estar se perguntando. Bem, porque noticiário policial é jornalismo, e jornalismo importantíssimo. Queiramos nós ou não. A verdade é que relatar desgraça - incêndio, homicídio, acidente, prisão de estuprador, linchamento, tiroteiro, protesto, barraco - tá na essência da nossa profissão. Não só na brownpress como na imprensa culta e especializada. Comecei no jornal na editoria de cultura, e sei muito bem o que significa escrever sobre assuntos maravilhosos que nem todos leem. São temas tão importantes - ou mais - que os policiais, mas é fato: eles concernem menos ao dia a dia "da Dona Maria da Terra Firme" (como diria minha chefe) do que os problemas concretos por ela enfrentada. Uma sessão especial no Líbero Luxardo, por exemplo, não tem impacto comparável à prisão de uma quadrilha responsável por praticar estelionato contra centenas de pessoas, por exemplo. Engulam: antes de pelo universo cultural, o povo se interessa pelas cagadas que envolvem sua cidade, sua rua, sua vizinhança. É um fato a se aceitar - e tentar compreender antes de fazer duras críticas à nossa tão sofrida população.

Talvez por isso a gente aprenda desde cedo que é importantíssimo saber "descrever o momento" de forma simples e concisa na matéria de Polícia - claro, sabendo o limite tênue entre a experiência pessoal e o fato relatado, senão vai todo mundo virar "repórter-notícia". É uma questão de respeito ao leitor, de prestar um serviço público a ele. É a primeira e mais importante das lições: como muita gente lê, e muita gente mal sabe ler, a gente tem que se desdobrar para falar bonito, mas de um jeitão simples, como se estivéssemos contando a história em um bar ali na esquina. Isso já havia ouvido de vários editores lá do jornal, mas passei a me cobrar mais quando mudei para o caderno. Se nas outras editorias isso já é importante, imagine em Polícia. Já ouvi relatos de gente que nem sabe ler, mas pegou o jornal só para confirmar a morte do bandido mais temido da rua por meio da foto. Juro.

Imagem + texto

Por sinal, vamos falar de foto. A Justiça do Estado gerou bastante polêmica ao determinar que os jornais deveriam parar de publicar fotos com cadáveres expostos, caveiras queimadas (lembram das fotos das meninas de Salinas?) e por aí vai. Eu achei certíssimo. E aí esbarramos em uma lição que aprendi com vários dos repórteres fotográficos lá do jornal: a foto não precisa ter baixaria para ser informativa em um caderno policial. Se mataram um figura lá no Canal São Joaquim, por exemplo, que fica perto de vias movimentadas de nossa capital como Pedro Álvares Cabral e Júlio César, não posso ter uma foto da aglomeração de populares em torno do cadáver (devidamente coberto e não identificado, lááááá ao longe) em vez de vislumbrar um olho arrancado à base de tiros de pistola ponto 40, por exemplo?

Posso - e devo. Contanto que não se exponha o cadáver, não se dê indícios de suas origens, de seu local de moradia; enfim, que sejam respeitados seus direitos de cidadão, morto, mas cidadão antes de tudo. Estamos, inclusive, cumprindo um serviço ao mostrar os locais em que os crimes transcorrem - já pararam para pensar nisso? É só fazê-lo de forma respeitosa. Portanto, mesmo trabalhando com texto, já aprendi coisas legais nessa área. Por extensão, compreendo todas as "chatices" e atos "sem noção" que nossos pobres colegas fotógrafos cometem ao tentar registrar um evento trágico. É o trabalho deles, amigo.

Relevância social

Muito longe do argumento de que "a gente tem que fazer matéria sobre o que vende" - infelizmente, já ouvi isso da boca de gente que tem décadas de redação -, tenho convicção em afirmar que o caderno de Polícia é, mais que um produto comercial, um informativo de relevância social; o repórter Dilson Pimentel, um dos mais experientes nessa editoria em Belém, já falou sobre isso numa entrevista muito boa dada à não tão boa assim revista "Troppo", de "O Liberal". Porém, deve-se ir muito além do jornalismo-porta-de-seccional. Isso significa que, mais do que pegar um Boletim de Ocorrência e torná-lo texto jornalístico, ao mesmo tempo em que distribui jornais para os escrivães e delegados, a equipe responsável pela ronda de Polícia tem de tentar repercurtir, suitar e aprofundar os acontecimentos e suas respectivas abordagens na imprensa.

Uma das formas de investir nesse sentido é justamente por meio das matérias especiais, sejam investigativas ou "de ouvir as lamentações do povão". Até porque as autoridades de segurança pública leem jornal (ou, ao menos, deveriam fazê-lo) e podem pautar suas ações a partir das denúncias e declarações postas no papel. É uma coisa que nossos impressos locais estão tentando fazer: se você duvida, pegue o jornal "Amazônia" de domingo e verá pelo menos duas páginas duplas por edição.

São matérias mais aprofundadas sobre tráfico de drogas, violência nos bairros, situação de grupos de risco e incontáveis denúncias sobre nossos sistemas carcerários, nossas delegacias, nosso reduzido efetivo policial e tudo o mais. Vai me dizer que isso é sanguinolência barata ou baixaria? A mesma coisa é feita também no "Diário do Pará", em "O Liberal" e no "Público". Claro que é algo esporádico e que precisa melhorar muito, mas já é um começo. Às vezes nos atemos ao preconceito e até deixamos de lado o caderno de Polícia, deixando-o para receber o xixi do animal de estimação. Muita gente deduz que só verá baixaria em suas páginas. Como já disse: tudo nessa vida é aprendizado. O leitor dotado de olhar crítico aprende lendo Polícia.

Conhecimento de campo

É um pouco óbvio, mas vale lembrar que nós também aprendemos, e muito, sobre a rotina e os problemas que envolvem a nossa digníssima cidade fazendo Polícia. Ainda sou "verde" nesse sentido, tem muita gente que pode falar de forma mais aprofundada sobre o assunto. Mas enfim, em meio a tanta tragédia, tantas escalas de final de semana e tantas horas extras acumuladas, percebi uma coisa: nosso olhar sobre Belém só faz se aprimorar com as benditas rondas divididas entre centro e periferia.

Quer um exemplo? Até ser posto nessa editoria com alguma regularidade, não sabia distinguir Guamá de Terra Firme. Jurunas de Cremação. Paar de Curuçambá. Aliás, nem sabia da existência deste último - só fui entender onde ficava após ver o Filipe parir umas 15 matérias especiais sobre a chacina feita pela Ronda Tática Metropolitana (Rotam) da Polícia Militar (PM) naquele bairro. Também aprendi onde ficavam as ruas, cruzamentos, como chegar à tal "zona vermelha" e sair dela (correndo, de preferência). Coisas aparentemente inúteis, mas que ajudam a gente a travar conversas sobre a situação de nossa cidade sem atropelos.

Querendo ou não, o convívio com equipes experientes (de motoristas, fotógrafos, chefes de reportagem e etc.) da imprensa diária fazem com que a gente aprenda a ver a cidade de outro jeito. Hoje saio do conforto de meu apartamento no Umarizal e sei para qual lado fica uma favela onde nem água potável tem, uma ocupação desordenada em que nem a PM entra; sei que, se descer a Quintino e a Alcindo Cacela, ruas da zona "nobre" (decadente) de Belém, vou parar num fim-de-mundo onde o tráfico é meio de subsistência e sustento de vícios alheios. Levando em consideração que vivemos em uma cidade sitiada, extremamente perigosa - muito mais que São Paulo, sabiam? É só ver nesse relatório da Organização dos Estados Íbero-Americanos Para a Educação, Ciência e Cultura que mostra Belém na 13ª posição, entre 25 capitais, das cidades com maior número de mortes para cada 100 mil habitantes -, isso não é uma questão somente de aprendizado pseudoantropológico: é uma questão de sobrevivência. Sério!

Lembro direitinho, por sinal, do dia em que me dei conta da complexidade da questão da violência em Belém: estava num plantão de domingo à noite, aquele em que nós chegamos ao jornal sem hora para sair. Era quase meia-noite, ia bater meu ponto e... apareceu um assalto com refém na Terra Firme. Mais precisamente, na rua São Domingos, próximo à passagem Nossa Senhora das Graças, um trecho ultraviolento do bairro que, conforme denunciado pela imprensa (e não necessariamente comprovado), teria se tornado alvo da ação de milícias armadas, à moda do que ocorre em cidades como o Rio de Janeiro.

Estávamos cercados de policiais. Só por isso entramos. Porque nem eles recomendam que a gente tente dar uma volta por aquelas bandas. Eram dois adolescentes, vítima e infrator: um de 14 e outro de 17 anos. O mais novo apontava um revólver ponto 38 para a cabeça do outro. Estava assaltando um barzinho nos arredores e se assustou ao avistar a polícia. Quando encarei aquela situação, pensei em duas coisas: por que diabos escolhi essa profissão? E por que diabos aquele moleque estava ali? As duas perguntas levaram a uma terceira: será que noticiar isso em um caderno de Polícia pode ajudar a solucionar o problema? Essa só pude responder agora que estou na editoria. E a resposta, caso você não tenha deduzido, é sim - dependendo da abordagem, do aprofundamento, da qualidade de apuração e do compromisso social para com o leitor. A meu ver, pelo menos.

Amadurecimento

Enfim, é capaz que haja muita discórdia em relação a essas opiniões. Muita gente vai continuar dizendo que só falo isso porque a imprensa paraense "adora uma baixaria", porque abracei a causa de uma escola contrária ao respeito aos Direitos Humanos e ao bom jornalismo. Vão dizer que ando empolgado com a editoria de Polícia (muito pelo contrário; é um desafio ter ânimo para encará-la todo dia), que resolvi puxar o saco do jornal em que trabalho, etc. e tal. Enfim, opiniões são opiniões. Aceito-as na boa.

Até porque o argumento central, aqui, é de que há um bom amadurecimento por trás disso tudo. Desde que entrei no jornal, pus na cabeça uma coisa: a gente, que entra no mercado cedo e sem praticamente nenhum conhecimento profissional adquirido, precisa passar por tudo o que é setor. Desde o "caderno da baixaria" até o que fala de poesia, teatro e música popular brasileira. Como disse o Dilson na entrevista dele, não tem área mais ou menos importante num jornal diário. O mesmo aprendizado que devo ao pessoal de Polícia devo ao povo da Cultura, de Cidades, devo a meus professores das disciplinas práticas e teóricas na universidade.

Tenho total consciência de que a gente tem muito a aprender, que não é só sabendo português que se faz um texto decente. É por isso que, sempre que posso, tento tirar dúvidas (às vezes, até com o povo da "concorrência") e tirar algo de novo de cada apuraçãozinha cotidiana que a gente faz no dia a dia. Creio que isso viabilizará um amadurecimento, tardio ou não, nessa profissão que pareço ter escolhido para o resto da vida.

sábado, 1 de agosto de 2009

U2, 360º


Prólogo

A chegada foi conturbada. Pouso em Girona, 30 e sei lá quantos graus do calor seco e insuportável de uma cidadezinha próxima ao Mediterrâneo. Isso depois de duas horas de voo, mais uma hora de trem em Portugal, de madrugada e no frio. Somou-se a isso mais uma hora e meia de ônibus – e engarrafamentos em “vias expressas” mais lentas que a Almirante Barroso – até chegar a Barcelona, o destino final. A meta: deixar as coisas no hotel o quanto antes e correr para o show do U2. Faltava pouco. Foi um dos passeios a pé mais agoniados que já fiz, o da Estació Nord até o hotel em que tínhamos reserva.

Era um prédio pichado e antigo, mas muito confortável, situado no Bairro Gótico. Também, dane-se: conforto para quê? Deixamos as coisas e, sem sequer lavar o rosto ou escovar os dentes, corremos à rua. Dois amigos nos aguardavam com o ingresso em mãos. Descobrimos que, dali até a hora do show, ainda restava um punhado de tempo. Dava para dar um passeio e conhecer um pouco de Barcelona – a charmosíssima capital secundária da Espanha, que nem espanhol fala oficialmente, de tão singular.

Turistas e mais turistas se acotovelavam nas benditas Ramblas – muitos ali estavam pelo mesmo motivo que nós, creio. O céu era irreal, um azul-bebê sem quaisquer manchas nebulosas. A umidade era tão baixa que mal suávamos, mesmo sob os 38º C. Era incômodo, mas tranqüilizava: pelo menos não vai chover à noite. Caminhamos rapidamente pelas ruas apertadas do bairro Gótico, cheias de casarões, muralhas romanas do século IV e lojinhas de souvenires de gosto duvidoso.

A cidade tinha, sim, todos os motivos para nos conquistar – até pelo clima de festa em que estava imersa, em pleno verão. Charmosa, caótica e bem-cuidada, mesmo com a má educação dos turistas, é uma típica metrópole europeia. Mas não era o foco central da coisa, pelo menos ainda não. Já por volta das 16h, rumamos para o metrô mais próximo e seguimos até a estação Collblanc (não esqueço esse nome). Ela ficava na zona oeste de Barcelona, a poucos metros do Camp Nou, o charmoso estádio do “Barça” onde seria a abertura da turnê “360º”.

Havíamos conseguido ingressos promocionais na internet enquanto ainda reservávamos passagens para as férias na Europa, uns 100 euros abaixo do que os cambistas vendiam no dia. Eu e um amigo conseguimos fazer tudo pelo MSN. Tentamos, eu no Brasil, ele em Portugal. Estava no trabalho e arrumei uns segundos para tentar a sorte no U2.com. Consegui quatro lugares (marcados) na arquibancada, logo ao lado do palco. Na pré-venda. Saiu tudo por 55 euros a cabeça. Passamos tudo num cartão e dividimos a fatura. Só de lembrar dos ingressos de 400 reais que muita gente comprou para ver o show deles no Brasil, em 2006, senti um alívio absurdo. Valia, e muito.

Parecia brincadeira, então, olhar para aquele ingresso nas mãos e que faltavam, sei lá, umas quatro horas. Dali em diante, tudo era suportável: a cerveja de quatro euros (12 reais em uma latinha!!!), o calor absurdo, a demora e até a banda de abertura Snow Patrol, que, apesar de bem intencionada, não tinha o peso e intensidade em palco necessários para acalmar as 90 mil pessoas que se acotovelavam no estádio.

O show


Pontualmente às 22h – afinal, eles são da Irlanda... Reino Unido, pontualidade, etc., entendeu? –, eles subiram ao palco. Ainda fazia sol, por conta daquele fenômeno lindo que é o verão europeu; parecia ser umas 17h30, com aquela iluminação amarelada e meio suja que costuma banhar os prédios aqui de Belém (o calor era o mesmo, ou até maior). Estávamos em um lugar até privilegiado, também havia telões em todos os cantos e o palco era naturalmente um círculo (daí o nome da turnê). Para completar, minha mãe levara um binóculo – “só para ver o Bono”, disse ela, enfaticamente. Confesso que fiquei um tanto surpreso ao ouvir os acordes iniciais de “Breathe” ressoarem no estádio logo após a ovacionada entrada de Bono (vocal, guitarra), The Edge (guitarra, teclado), Adam Clayton (baixo) e Larry Mullen Jr. (bateria)... era uma daquelas músicas que não tinham me fascinado em “No line on the horizon” (2009), o novo disco deles. Mas, como é de praxe do U2, aquela canção funcionou bem, muito bem, ao vivo.

Eles são especialistas em fazer isso: experimente ouvir “Mofo”, “Elevation”, “Out of control”, “Zoo station” e tantas outras músicas de abertura de turnê em suas versões de CD; veja se elas têm o mesmo impacto. Não: foram feitas para a performance, para o improviso; são um chamativo para aumentar o calor no palco e a gritaria na plateia. E foi isso que eles conseguiram com aquela cançãozinha simples de três minutos, cujo maior trunfo são os agudos de bono e o ritmo quebrado, cadenciado. Foi aí que caiu de fato a ficha, e eu percebi que realizava um sonho antigo: o de ver esses caras ao vivo, em boa forma e no início de uma turnê megalomaníaca, daquelas que só aparecem de década em década.

Sempre fui do tipo que coleciona tudo o que a banda preferida lança. Tenho praticamente todos os DVDs do U2 – os que faltavam comprei antes do show, nas FNACs de Portugal –, além de uma pilha de discos originais. Só o “Zooropa” (1993) que não tenho em sua versão, digamos, “oficial”. Por conta desse vício saudável, conhecia, minuto por minuto, todos os detalhes de cada turnê deles – a crueza das digressões feitas entre “Boy” e “War”, o exagero estético da “Popmart”, o experimentalismo da “Zoo TV”, o minimalismo da “Elevation tour” e o retorno às raízes com a “Vertigo tour” . Só que, agora, já tinha idade e condições suficientes para encarar vê-los a cores, logo à minha frente. Era o que transcorria ali, diante de meus olhos, naquela calorenta noite em Barcelona. Aquele palco absurdo, aquele telão em 360º que permitia a todos ver o quarteto de perto, aquele exagero de detalhes.

Para o deleite dos fãs mais novos, os U2 usaram do primeiro terço de show para alternar novidades com clássicos que, há tempos, não figuravam em seus setlists. O vai-e-vem de épocas foi inspirado: primeiro a sequência de novidades “No line on the horizon”-“Get on your boots”-“Magnificent”, com esta última levando muita gente ao céu. É, provavelmente, a melhor faixa que o U2 compôs desde “Walk on”. E, ao vivo, soa ainda mais bela que no CD. Em seguida, o megahit “Beautiful day” serviu para trazer muita gente de volta ao chão, só para berrar junto aquele refrão sob a acústica privilegiada do Camp Nou.

Somente aí Bono, com seu habitual carisma e capacidade de fazer-nos sentir na sala de sua casa, resolveu bater um papinho com o público. Disse que adorava Barcelona, adorava começar a turnê por ali e blá blá blá. Seu bate-papo foi cortado pelo dedilhado de “I still haven´t found what i´m looking for”, clássica do “The Joshua tree” (1989) que há tempos não ganhava espaço no repertório da banda. E daí em diante veio uma penca de músicas inesperadas: “Angel of harlem” – que, ao final, ganhou vocalizações de “Don´t stop ´til you get enough”, o hit embrionário de Michael Jackson, em uma homenagem de Bono ao cantor falecido dias antes –, “In a little while”, “City of blinding lights” e até “The unforgettable fire”, a belíssima faixa-título do disco de 1984 que, essa sim, nunca tinha visto em sets ao vivo do U2.


Foi nela e na faixa anterior, “Unknown caller” – uma das melhores do novo CD –, que percebi a dimensão da nova turnê. Antes que essa última fosse anunciada, Bono disse ter em mãos uma surpresa: queria bater um papo com umas pessoas que viam o show de longe, bem longe. E não é que ele falava sério? O telão do palco projetou a imagem dos astronautas da International Space Station (ISS), que assistiam ao show de camarote lá do espaço. Eles bateram papo com a banda, empunhando cartazes e falando de sua rotina. Depois, como se aquilo fosse a coisa mais normal do universo, o grupo tocou “Unknown caller”, “The unforgettable fire” e “City of blinding lights” numa porrada só, sem interrupções para perguntar: “E aí, o que vocês estão achando”? Eu, como as outras 90 mil pessoas que estavam no Camp Nou, fiquei boquiaberto. Realmente não há limite para esses caras...

Daí em diante, foram surpresas atrás de surpresas. Um remix em versão trance deu nova roupagem à bonitinha “I´ll go crazy if i don´t go crazy tonight”, outra das que não me haviam fisgado em “No line on the horizon”. “Sunday bloody Sunday”, “Pride (in the name of love)”, “Walk on” – esta utilizada para a mensagem politizada de praxe dos shows da banda – e “Where the streets have no name” foram a mesma coisa de sempre: lindas e bem apresentadas, com Bono em sua melhor forma vocal, como não se via desde os tempos da “Elevation tour”. E, no meio disso tudo, duas canções que ninguém esperava: “MLK”, aquele interlúdio a capella do CD “The unforgettable fire” (1986), e “Ultraviolet (light my way)”, aquela canção a la Bon Jovi que figura, meio sem quê nem porquê, no disco “Achtung baby”. Tudo milimetricamente pensado, com um errinho aqui e outro acolá, mas nada que quebrasse o ritmo da apresentação.

A parte final da noite serviu para que eu, já rouco e sem forças para ficar em pé – a roupa que estava usando desde a madrugada daquele dia estava imprestável, encharcada –, aproveitasse os assentos marcados da arquibancada. Com “One” e “With ou without you”, o U2 me fez pensar em várias coisas. Na Mayara, que já contava os dias para rever, na viagem que fazia, em que tudo havia dado certo até ali, nos aprendizados e vivências que levava da minha primeira ida à Europa, nos meus planos para o ano que vem... enfim, pieguices que são muito válidas, ainda mais quando inspiradas por dois hits óbvios, porém inevitáveis, daquela turnê-revolução. Acendi o isqueiro e deixei a idiotice de fã me levar junto.

Para encerrar, como já é de praxe desde os tempos da “Popmart”, o U2 se valeu de uma composição cadenciada e, até então, pouco valorizada pelos fãs: “Moment of surrender”. Apesar de não ser lá um destaque do novo disco, ela merecia estar ali. Tem uma das linhas vocais mais difíceis de se executar ao vivo – e Bono fez bonito nela, mesmo após mais de duas horas do show – e um refrão com todo o climão de despedida, bonito como a maioria dos arranjos do U2.

Conforme ela ia chegando ao final, Bono começou a despedir o grupo, dizer que aquela noite fora memorável. Todo mundo estava acabado, incluindo eles. Mas satisfeito de uma forma inexplicável. Saímos do estádio, eu, minha mãe e mais dois amigos, ainda meio extasiados. Nem havia me tocado que “New year´s day”, minha canção preferida do U2 – e, provavelmente, de 80% dos que ali estavam – não havia sido tocada. Mas tudo bem, não tinha problema: já fazia uns 25 anos que Bono tinha de cantá-la umas 60 vezes por ano. Dava para relevar, só dessa vez: eles tinham compensado, e muito. Se reclamasse, perdia a graça.

Epílogo

A volta foi uma porcaria. Fomos esmagados por um mar de gente suada dentro do metrô fétido e apertado de Barcelona, a estação de trem em que faríamos a troca de linha estava lotada, a linha central fechara, tive uma daquelas crises ridículas e vergonhosas de claustrofobia. Caminhamos a pé por umas duas horas naquelas ruas vazias, escapamos de um assalto (tenho certeza!), perdemos a direção no mapa. E, por fim, após desistir de procurar táxi, pegamos um ônibus na Plaça de Espanya – lugar sombrio, mas charmoso – para chegar ao hotel. Fumamos aquele cigarrinho sagrado na varanda, com a vista para o Bairro Gótico. Ainda tinha um mar de gente nas ruas.

No dia seguinte, acordei cedo e fui passear pela cidade com minha mãe. Fizemos um city tour bem fast-food, daqueles com direito a ônibus colorido e fonezinho de ouvido com músicas tradicionais. Passamos rapidamente pelos pontos turísticos, conhecemos as (centenas de) zonas da cidade e, por fim, demo-nos a oportunidade de caminhar calmamente pela área próxima ao hotel – minha preferida de lá, de longe. Ah: compramos o jornal e lá estava uma foto do show estampada na capa. A manchete do dia eram eles.

Depois almoçamos, pegamos ônibus para o aeroporto de Girona, brigamos com os funcionários da Ryan Air à hora do check-in, fomos obrigados a pagar uma taxa inexplicável (vamos pedir o reembolso!). Discuti com a gerente, primeiro em espanhol, depois em inglês (tinha perdido a paciência para me enrolar falando); ela riu da minha cara, disse que teríamos de pagar, senão não iríamos embora da Espanha. Depois de uma hora e meia de voo – horrível, por sinal – chegamos de volta ao Porto, em Portugal, pegamos um metrô de superfície rumo à estação de trens intermunicipais, chegamos à estação São Bento, esperamos mais um pedaço de hora, pegamos o “comboio” para Aveiro... e chegamos em casa. Lá pelas 22h.

E quer saber? Valeu a pena todo esse trabalho.