segunda-feira, 21 de agosto de 2006

Post-Scriptum

Um menino esquálido empina pipa no meio dos quarenta graus de uma metrópole, em pela hora do rush. É atropelado enquanto tenta salvar seu brinquedo que caiu no meio da rua.

Uma criança, empunhando fuzil, corre por entre arbustos da savana enquanto atira cegamente em direção a outra criança. Leva um tiro na testa e cai, indistinta.

Uma menina entra na escola silenciosa, entulhada em seus livros, a pensar no vestibular que logo chega. Acaba, na pressa da saída, tropeçando e rolando escada abaixo. Morte cerebral.

Um jovem, cerca de 25 anos, se injeta no banheiro da faculdade. Dessa vez, ele abusa na quantidade e erra a veia. Overdose.

Os quatro morreram, tal qual pólos de um mundo doente, no nascer do dia 6 de março. Encontraram-se após a morte. Sem uma palavra e de súbito, os rostos se cruzaram e trocaram expressões de ansiedade enquanto eram tragados em um vasto túnel de luz. Até que, finalmente, pararam. Estavam diante de uma grande sala. Foram sendo guiados assim até o centro do recinto, onde raios de sol penetravam por entre cortinas alvas e se espalhavam pelo chão translúcido. Abaixo deles, apenas imensidão; acima deles, o céu azul e límpido. Uma sensação de paz os invadiu ao ver milhares, milhões talvez, de pessoas sentadas em um gigantesco círculo os cercando. Havia vagas para todos por entre os vultos. Sentaram-se nervosos, obedecendo ao comando inconsciente que os olhares impuseram.

Mal o silêncio brotou dos passos que cessaram ao sentar, logo foi quebrado pela voz que penetrou pelas janelas, pedindo para que os quatro sentissem-se à vontade. Era a hora de, antes do descanso final, ouvir e falar. Deixar, ali, cuspido, qualquer grito guardado, para enfim deleitar-se no silêncio final. Para suas surpresas, o "julgamento final", de que tanto se falava em vida, não era bem um julgamento, e sim um desabafo conjunto. Por trás do forte reflexo da luz, ouviu-se a voz da menina estudante ressoando no salão:

- Eu já tive sonhos. Morri no meio do caminho, em inconformismo. Antes da hora, no final de uma reta que julguei, até o último momento, a razão de meu viver por tantos anos... agora estou aqui, diante de vocês, provavelmente homens e mulheres que passaram pelo que passei até o dia de minha morte, e tiveram o (des?) prazer de conhecer o mundo por trás dos olhos de um adulto. Morri assim, pisando em falso. Tropeçando em um degrau, dentre tantos outros que viriam. Obra do desespero e da pressa cotidianas. Obra do meu desespero, enfim.

Ao final, as cortinhas se agitaram e a brisa penetrou no salão, trazendo consigo uma forte sensação de conforto. Os braços do silêncio a abraçaram. Não tardou, o menino esquálido rompeu a falar, em gritos.

- Eu não devia tar aqui! Não sei quem são vocês, só sei que minha mãe tá me esperando. Não acredito nesse papo de vida depois de morrer, não! Se aquele ônibus me estraçalhou os miolos, não tou aqui, não tou pensando nem falando nem olhando pra vocês... quem diria, hein! Logo eu, que dia desses tava rindo da cara daquele povo que vai p´ra Igreja e fica abanando as mãos pro céu, agora tou aqui olhando para vocês, que mais parecem um bando de anjos do que gente. Minha mãe tá me esperando na esquina. Minha mãe. Consegui todo o dinheiro que ela me pediu, e a gente vai pra casa e vai ter o que comer. A minha pipa eu deixo no meio da rua, não tem problema. Sò quero voltar pra casa, e amanhã eu roubo de novo, não tem probl...

A voz do garotinho foi se esvaindo, enquanto seu corpo ascendia no meio do círculo e desaparecia em meio à forte luz, que agora estava tornando-se mais fraca. Os rostos começavam a se distinguir, e logo o jovem universitário se prostrou diante da infinidade de vultos brancos, a falar em voz alta e grave.

- Não conheço a morte, embora tenha desejado encontrá-la por anos a esmo. Não conheço o medo, embora o sinta agora que meu corpo jaz em um banheiro a apodrecer. Não conheço vocês, embora saiba que alguns aqui viveram mais que eu, mais intensamente, de forma mais saudável e menos covarde, embora sinta-me próximo de vocês, que hoje sabem o que sinto, que irão me acompanhar. Acima de tudo, não conheço a mim mesmo, esse menino mimado, fraco, que não tem mais a chance de olhar para trás antes de desperdiçar a vida que, dando as costas para os covardes, seguirá ilesa sem minha ínfima presença.

Rapidamente, fora arrancado da sala pelo mesmo brilho ofuscante, deixando para trás apenas a massa de vultos... e o último dos mortos naquele amanhecer, a criança negra. Ela olhou ao seu redor, mal tendo noção do que falar. Procurava sua arma, provavelmente; ao sentir que estavam esperando que falasse, logo deixou escapar dos lábios jovens, a doce voz de seis anos de idade que mal se ouvia, mesmo em tamanha quietude.

- Não sei falar... muita coisa. Não conheço... língua... armas... morta?... antes de...aprendi a matar...

E logo foi tragada, com uma intensidade e velocidade muito maior do que os demais. Ao fundo, podia se ouvir as palavras de conforto da voz que penetrava no recinto com sutileza e força, abençoando o eterno descanso da criança.

Os quatro deram adeus à grande sala da mesma forma que vieram. Sem palavras, em absoluto silêncio. Apenas com o barulho das cortinas cruzando umas nas outras, cobrindo o sol alaranjado da sala, e com a parca respiração dos vultos preenchendo o ar frígido. Foram tragados assim, para se tornar parte do silêncio que se rendia ao adeus que o homem dava ao seu mundo doentio. Restava-lhes, finalmente, o conforto.

No centro da sala, restaram um fuzil, uma seringa, uma pipa e um livro. E um punhado de pegadas, feitas em absoluto silêncio – não fosse o inescapável barulho das cortinas a se fechar para a vida.

José Augusto Mendes Lobato 21/08/06

6 comentários:

Emídio disse...

depois dessa...

nem sei o que falar...
vai tomar um banho guto! tá muito depressivo isso... vou pegar meu lexotan dormir e ser feliz.

tchau

Anônimo disse...

gostei do texto guto

e é verdade. não tá cansativa a leitura. assim é muito melhor de ler, canhoto.

=*

Anônimo disse...

esse teu texto tá um pouco emo...
uauahahaahia

mentira!!
meu, tu não escreves, as palavras que brincam contigo, é como se fosse fácil pra ti enconstar od dedos no teclado e sair essas maravilhas!
amei esse texto!!
bjuss
=*

Anônimo disse...

Poxa Guto, nem sempre tenho coisas boas para comentar como você o fez no meu blog.
Parabéns pelo o que tu escreves e pela tua sensibilidade.
Vou, com certeza, tentar seguir teu conselho.
;*

Anônimo disse...

e talvez o "inferno" seja apenas morrer com peso na consciência (não pode haver nada pior do que isto)
é cara, muito bom o texto (aliás, já morrestes quantas vezes para atingir esse nível de descrição da coisa?)

e teu blog tá no link já

abraço

Anônimo disse...

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