sábado, 19 de maio de 2007

Contos Burgueses II

Eram Camilla, Giselle e Mariana. As três tinham a mesma tendência à melancolia senil de adolescentes rejeitadas pelo mundo. Eram como irmãs: dividiam roupas, noites amargas e copos de bebida, e nada – nada – no mundo podia penetrar naquele círculo de amizade e medo. Estudavam num colégio escroto de uma cidade escrota, cheia de gente suada e feia e com um gosto péssimo para tudo. Tudo que a vida lhes revelava no dia a dia era entediante, chato, perturbador e fútil; família e princípios ali incluídos.

Certa vez, descobriram o sexo. Ele foi escape para toda sorte de problemas enfrentados por todas; especialmente por Camila, criada numa família católica apostólica romana, do tipo que quer que a filha sangre na noite de núpcias. Ela sangrou na boca de Mariana, aos catorze. E gostou do que sentiu. Desde então, mantinha relações com quem visse à sua frente. E as outras duas... bem, as outras duas estavam lá vendo tudo acontecer. Com o tempo passou a cobrar. Descobriu o poder da independência.

Eram de irritar. Tinham tudo em mãos, educação das boas, pais ótimos, uma mesada polpuda... mas o bombardeio de possibilidades e exigências do mundo moderno as atordoava; seja isso, seja aquilo, comporte-se assim ou será malvista... não beba, não fume, não foda! Como já dizia um poeta, the lights are much too bright. Era tudo supostamente feliz demais, era fácil demais ser assim, fingido. As luzes dessas três eram as que menos brilhavam em meio ao festival de flashes programados da sociedade.

Certa vez, descobriram as drogas. E foi aí que Giselle, em especial, encontrou o passatempo para as tardes amareladas que rasgavam a janela do seu quarto. Maconha, cocaína, ecstasy, crack, heroína, lança, ópio, anfetamina, GHB, GLB, PCP, LSD, cogumelos, plantas, líquidos, pós, pílulas, gases; todos ingeridos em quaisquer ocasiões. Despistava os pais para ir comprar mais com as amigas, e, a mesada, trocava por pacotinhos no final da Doca. No fim, pensava naquela fúria urbana e se descobria atrelada a ela, vendendo a alma por um punhado de alucinógenos, comprando, das mãos do seu futuro assassino, uma passagem para a realidade de poucos. E as outras duas... bem, as outras duas estavam lá vendo tudo acontecer. Sempre.

Eram Silveira, Mendes e Vianna. Famílias compostas por doutores, mestres, especialistas e titulados de toda sorte. Freqüentavam os mesmos lugares, encontravam os mesmos amigos e conhecidos e voltavam para casa com a mesma sensação de que a cidade era a mesma bela merda de dois mil anos atrás; uma penca de construções habitadas por uma ou duas famílias que resolveram criar nomes diferentes para si. Eram todos iguais, feudais como a dinastia que tinham orgulho em divulgar nas páginas da Troppo.

Certa vez, descobriram o rock n´roll. A terra do brega repetitivo e dos ritmos pseudo-regionais pseudo-defendidos tinha, enfim, seus sebos, onde se vendiam os clássicos da música européia a preço de banana. Mariana, em especial, gostava de chupar a boceta de Camila ouvindo David Bowie e Joy Division, enquanto Giselle se injetava num canto. Os ídolos de Mariana variavam entre hippies e drogaditos new wave; para ela, era lindo cortar os pulsos no banheiro, que nem a Christiane F. fez na Alemanha e que nem sua mãe fizera dois anos atrás. Sentia-se bem em apagar as luzes da vida com o vício do martírio.

Eram de dar pena, as três. Camilla e seu sexo arrombado, seu vício pelo dinheiro. Giselle e seu olhar lânguido, sua pele ferida pelas agulhas. Mariana e suas tatuagens ridículas, seus pulsos cortados e seus vinis estraçalhados. Era o prazer da autodestruição que reunia-as na mesma rotina transviada. Tudo que a vida lhes revelava no dia a dia era entediante, chato, perturbador e fútil. Acabaram com a repetição a golpes frios.

Camilla é prostituta. Giselle morreu. Mariana é a que vos fala.

8 comentários:

Tyara de La-Rocque disse...

Uau! Guto Guto! Que texto forte.

Parabens moço, visualizei totalmente cada parágrafo. Gosto de textos que abordam assuntos como esse. Que nos fazem pensar mais acerca do mundo, das pessoas as nossa volta, dos tabus da sociedade, das máscaras...e assim vai.
Parabéns! =)
beijo

Rosana Freitas disse...

É a segunda visita que faço a seu blog! Vc tem um estilo forte pesado, mas como toda leitura que considero boa, deixa a gente refletir, pensar no que fingimos não ver ou viver.
abraços!

henrique disse...

e Mariana é a que vos fala. Tem AIDS e odeia foder com camisinha.

Anônimo disse...

Parabéns meu amigo. Um texto como esse não se encontra todo dia.

abração

Guevara

Emídio disse...

muito familiar...


MUITO

Rosana Freitas disse...

Obrigada pela visita e pelo comentário!
É pessoal, muito! Um momento dificil, mas mesmo assim faria tudo outra vez, sem ao menos pensar!!
Abçs!

Camila Barbalho disse...

Concordo com o Emídio.

Quantas Marianas, Gizeles e Camilas nós conhecemos em colégios escrotos e na dinastia Troppo desta cidade que é a mesma bela merda há dois mil anos?

Familiar, meu caro. Familiar.

Unknown disse...

amigo..conheço gizeles,marianas e camilas..adorei seu blog!!!


bem forte..