quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Pour elle


Às vezes me bate uma saudade imensa da vovó. Dos netos, provavelmente sou o que melhor encarou a morte dela, em fevereiro passado. Sofri na hora, chorei tudo o que tinha para chorar – e ponto final. Conformei-me com a ideia de que estaria bem melhor lá em cima, longe das doenças e das mazelas desse mundinho nojento por onde ficamos. Mas bem que dizem que a saudade é atenuada, mas fica. Resiste lá dentro, à espera de uma oportunidade de aparecer. E hoje, sei lá por quê, ela veio novamente, mais forte do que nunca.

Cheguei da aula morrendo de fome, lá pelas 22h. Ao saber que não comia desde o almoço, minha mãe fez uma bananada – a mesma que gosto de tomar à noite, quando os sólidos já não descem tão bem, desde os tempos de criança. O ditado é verdadeiro: não tem comida melhor que a de mãe (e olha que a minha é uma negação na cozinha; só com os filhos é que a coisa dá certo). Desceu tão bem, mas tão bem, que acabei me lembrando de tudo o que a vovó fazia por mim. Não só na área de comidas e guloseimas – que preparava com uma mão de ouro, mesmo quando o câncer já a havia enfraquecido – como nas demonstrações de afeto, nos mimos e nas “estragações de vó”. Nas quais, por sinal, ela era especialista.

Quando pequeno, tinha um vício tremendo pelas revistinhas da Turma da Mônica. Minha mãe estabeleceu uma cota de duas revistas por semana para eu buscar lá na Banca do Alvino, na Praça da República – depois ela passava lá e pagava, no domingo. Caso o limite estourasse, sabia a quem recorrer. A vovó não podia me ver diante de uma banca de revistas que logo me presenteava. Uma vez me deu a edição especial Almanaque da Turma, um calhamaço que custava uns R$ 8 e que não tinha sido aprovado por minha, digamos, fornecedora de crédito. “Não diz pra mamãe, é um segredo nosso”, dizia. Escondi a revistinha por anos.

Várias pequenas coisas desse tipo marcaram minha vida, do mesmo jeito que essa bananada que a mamãe me preparou. Nossas idas à Batista Campos, que ficava perto do prédio dela, lá na Pariquis; nossas conversas banais na saleta do apartamento; o macarrão com carne e o doce de sonho de valsa que só ela sabia fazer; as caixas de bombons e mega-ovos entregues à época da Páscoa; as viagens a Salinas em família; os almoços de sábado; e até as fofocas que suas amigas lhe contavam sobre o único neto homem. “Uma amiga minha disse ter te visto a fumar e beber em um quinze-anos, ó Gutinho”, uma vez me disse, apreensiva. Neguei na hora. Não me dói ver que ela se foi sem saber de meu vício. Lá de cima, sei que ela pode me ajudar a largá-lo sem recair em todos os sofrimentos mundanos.

A vovó se orgulhava imensamente de minha opção profissional. Foi uma das primeiras a saber quando fui contratado no jornal. Adorava que a Mayara também fosse jornalista, pois formávamos, a seu ver, "um casal inteligente". Lia com afinco todas as minhas matérias – nem que não saíssem assinadas, reconhecia meu jeito de escrever, disque –, comentava-as em todos os almoços de sábado. Até a cobertura do “Big Brother Brasil 9” que fiz no jornal ela acompanhou, mesmo odiando o reality show. Uma das últimas que ela leu, já no hospital, foi uma análise grotesca sobre o potencial de Mirla Prado, a paraense, para cozinhar para seus colegas de confinamento. Lembro que me disse que a matéria estava ótima, “bem original”. Coisas de avó coruja.

Chega a ser difícil organizar o raciocínio para falar da Rosita. Ela era uma pessoa boa em tantos, mas tantos aspectos, que fica difícil elencá-los de uma só vez. Mulher, mãe e avó excepcionais, voluntária por opção – e sem colunismo social – às causas dos menos favorecidos, escolada pela vida (e não pela sala de aula) e lutadora, minha avó foi uma grande mulher, que viveu tudo o que tinha para viver e foi cercada de carinho do início ao fim. É mesma grande mulher que vejo em minhas irmãs, primas e na mamãe, que se levantou da cama, à noite de hoje, para fazer uma bananada para o filho após passar dez horas trabalhando sem parar. As mesmas de que me orgulho tanto.

Depois de sete meses, finalmente consegui falar da vovó. Não chorei escrevendo isso tudo. Dificilmente me emociono ao lembrar dela, como já disse. Tive a oportunidade de me despedir aos pouquinhos; passei a noite no hospital com ela dois dias antes de sua morte, visitei-a em casa. Agora que sei que aquilo tudo ficará na lembrança, dá um aperto no coração - mas nem que queira consigo externá-lo. Acho que é meu jeito: apesar de parecer mole que nem manteiga Real, consigo suportar as piores coisas sem falar muito, sem sair gritando por aí.

Além do mais, o aperto vem, mas logo vai embora; já o sinto passar nesse exato momento. Porque sei que, como a Isabela diz, ela é um anjinho. Voltou para o lugar de onde veio após cumprir sua missão – constituir, comandar e manter unida essa família linda de paraenses-portugueses, de gente honesta, ética e trabalhadora, da qual me orgulho profundamente. Ela foi embora voando de classe executiva num avião da TAP, comendo bacalhau com natas e camarão aos quatro queijos, suculentos e bem temperados, acompanhados de uma taça de vinho e um copo de guaraná diluído com um pouquinho d´água. Do jeito que ela gostava.

7 comentários:

Anônimo disse...

Pooooo, Guto, adoro essas reminiscências. tenho ótimas lembranças dos meus avós, e até de uma bisavó materna. Meu avô paterno também era português, minha avó, negra, descendente de quilombolas, o lado materno era bem paraense, mas com uma avó distante que era índia. Que tal? Aí veio eu, dessa mistura toda. Um situação! Belo texto, simples e emocionante. Dedé

Anônimo disse...

ai, guto, que post fofo!
lembro bem de como tu falavas da tua vó pra mim e de como tu a admirava. "só a minha vó vai ler a matéria de 9 mil toques sore a ópera"... hehe

=)

Mayara Luma Maia Lobato disse...

vidota, nossa, esse texto tá ótimo, super emocionante, até eu fiquei com lágrimas nos olhos. Parabéns! eu sei o quanto deve ter sido difícil falar dela.

te amo demais!

mil beijos

Marina Chiari disse...

o macarrão com carne. aaaaaaai o macarrão com carne. pra não falar das outras coisas pq tu sabes, eu não sou nada sentimental... saudade dos sábados na casa da vovó...

Lígia Chiari disse...

impossível não se emocionar com esse texto, mas por incrível que pareça também nem chorei. Acho que a gente sabe que a vovó tá muito melhor agora e temos tantas lembranças boas delas que nos deixam é felizes de sabermos que tivemos uma avó tão maravilhosa.
Me fizeste lembrar toda a minha infância nesse post, a nossa, né? As bananas amassadas com leite em pó, as uvas descascadas, o pão-de-ló com coca-cola.... coisas que só a rosinha sabia fazer.
Pequenas coisas que formaram nossa personalidade, que nos ensinaram a amar, a ser carinhosos uns com os outros e que nos ajudaram a construir essa família maravilhosa.
Te amo primo. To com saudades! beijos

Lígia Chiari disse...

só pra te dizer que troquei meu blog de endereço. te amo primo. beijooos


www.novosretratos.blogspot.com

gil sóter disse...

gutus, meu bom,
passei uma hora conhecendo alguns textos do teu blog. foi a minha primeira vez. digo que tenho duas conclusões óbvias: tu és muito talentoso; a segunda, gosto pra caralho de ti. sempre que te leio, essas duas considerações se reafirmam. ainda que a gente tenha convivido pouco, tenho uma fé bem grande de que tu és daquele tipo de gente rara, digna de uma lista imensa de adjetivos dos melhores para te descrever. escolhi o texto sobre sua avó porque nele tu evidencias as duas coisas: um cara de coração imenso, muito humano e que tem uma habilidade linda de se comunicar com as palavras. bróder, o senhor é foda - já te disse isso algumas vezes. grande abraço de urso.