quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

#mudançafeelings



É legal abrir a janela do quarto às 12h40 da véspera de Natal, logo após acordar num dia de folga, e ver que o dia está chuvoso. Na verdade, todos os natais em Belém são chuvosos, já reparou? Desta vez estava com medo de ser surpreendido por um solzaço de 36 graus, já que o verão tardou a dizer tchau. Mas não - está um calorzinho suportável. Um mormaço típico dos finais de ano que já me parece meio saudoso.

Eu e Mayara nos mudamos daqui a exatos 30 dias. Lembrei disso na hora em que abri os olhos num de meus últimos finais de semana de folga. Estou de aviso prévio do jornal. Trabalho até o réveillon. Depois do dia 3, as rondas de polícia ficarão na memória. Os delegados, escrivães, colegas de trabalho, matérias especiais de domingo... tudo vai ficar por aqui. E eu vou dar o fora, após quatro anos de expectativa - feliz por me livrar de um punhado de coisas que detesto da minha terra natal, mas triste pelas perdas óbvias. Os amigos, os familiares com quem tomo café e janto (almoçar, só na copa do jornal) e, vá lá, alguns lugares.

Adoro Icoaraci. Mesmo que o distrito seja sujo, fedido, malcuidado e cercado de favelas paupérrimas, não existe melhor exemplar de orla em Belém que aquele lá do Cruzeiro. A praia fede e é imprópria para o banho, mas tem uma calçada onde bate um vento da Belém dos anos 1800. Eu e Mayara pegamos a Augusto Montenegro várias vezes nos dias de folga, só para comer no Na Telha e depois observar aquela paisagem linda, conversando sobre nossos planos para o futuro. Fumar um cigarro vendo aquelas águas barrentas é o tipo de luxo que não vou ter nos mil metros de altitude de São Paulo.

Quem acompanha esse blog sabe que eu reclamo muito daqui. É verdade - e creio que nunca vou desmentir o que já falei, a não ser que as coisas mudem (e torço muito por isso). Mas é natural que, às vésperas da mudança, comece a bater aquela pontada de pré-saudade. Aquela insegurança - meu Deus, será que quando voltar aqui as pessoas vão estar iguais? Não vou mais saber sobre todas elas? E as baixarias do submundo belenense? Só vou poder acompanhá-las nos blogs?

Esse foi um ano extremamente difícil. Perdi a minha querida avó, minha vida social e a da Mayara caíram para zero por conta do TCC, trabalhei em excesso e tive pouco tempo para dedicar a mim e à família. Tive de aturar uma série de injustiças - a mais recente praticada contra minha mãe, uma profissional exemplar - e, vá lá, várias decepções com gente de meu entorno. Mas creio que tenha sido uma espécie de provação. Acredito em Deus e em suas pequenas manobras para nos mostrar que a vida não é tão fácil assim.

Por outro lado, creio que aprendi como nunca nesse ano. Viajei muito com meu suado dinheirinho do trabalho, ganhei de presente da doutora um mês de passeio no Velho Continente, tive um monte de oportunidades sensacionais. Para mim, viagens são essenciais para que nossos olhos se abram, para que a gente amadureça. Não é à toa que meu plano de vida seja juntar grana para viver em aeroportos. Se puder me dar ao luxo, viajo todo final de semana. Melhor que trocar de carro todo mês e morar no trigésimo sétimo andar de uma torre monumental cercada de favelas. É isso.

A chegada desse Natal, já imaginava, me deixaria assim, meio saudoso e pensativo. Neste ano, a ceia vai ser aqui em casa. A vovó estará aqui, muito embora não no sentido físico da coisa. Aqui começa mais cedinho, tipo umas 20h. Depois de comer, seguimos à casa da Mayara, onde a ceia entra na madrugada. E depois é festa - se a gente tiver forças para tanta-coisa-junta-ao-mesmo-tempo-agora.

Fico de folga do jornal e da rádio até domingo. Vou aproveitar estes dias para empacotar meus CDs, DVDs e livros, pensar no que devo levar e no que fica por aqui. É uma tarefa cansativa, mas tem seu quê de fascinação; afinal de contas, já começo a pensar onde pôr esses caixotes no nosso cafofo paulistano. Meu quarto azul, com fresquíssimo papel de parede de barquinhos, vai virar o de visitas, e a minha vaga na garagem será finalmente cedida ao carro do vovô. E é isso. Decisões são decisões - e, como tais, sempre trazem aquele quê de insegurança. E fascinação.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Pour elle


Às vezes me bate uma saudade imensa da vovó. Dos netos, provavelmente sou o que melhor encarou a morte dela, em fevereiro passado. Sofri na hora, chorei tudo o que tinha para chorar – e ponto final. Conformei-me com a ideia de que estaria bem melhor lá em cima, longe das doenças e das mazelas desse mundinho nojento por onde ficamos. Mas bem que dizem que a saudade é atenuada, mas fica. Resiste lá dentro, à espera de uma oportunidade de aparecer. E hoje, sei lá por quê, ela veio novamente, mais forte do que nunca.

Cheguei da aula morrendo de fome, lá pelas 22h. Ao saber que não comia desde o almoço, minha mãe fez uma bananada – a mesma que gosto de tomar à noite, quando os sólidos já não descem tão bem, desde os tempos de criança. O ditado é verdadeiro: não tem comida melhor que a de mãe (e olha que a minha é uma negação na cozinha; só com os filhos é que a coisa dá certo). Desceu tão bem, mas tão bem, que acabei me lembrando de tudo o que a vovó fazia por mim. Não só na área de comidas e guloseimas – que preparava com uma mão de ouro, mesmo quando o câncer já a havia enfraquecido – como nas demonstrações de afeto, nos mimos e nas “estragações de vó”. Nas quais, por sinal, ela era especialista.

Quando pequeno, tinha um vício tremendo pelas revistinhas da Turma da Mônica. Minha mãe estabeleceu uma cota de duas revistas por semana para eu buscar lá na Banca do Alvino, na Praça da República – depois ela passava lá e pagava, no domingo. Caso o limite estourasse, sabia a quem recorrer. A vovó não podia me ver diante de uma banca de revistas que logo me presenteava. Uma vez me deu a edição especial Almanaque da Turma, um calhamaço que custava uns R$ 8 e que não tinha sido aprovado por minha, digamos, fornecedora de crédito. “Não diz pra mamãe, é um segredo nosso”, dizia. Escondi a revistinha por anos.

Várias pequenas coisas desse tipo marcaram minha vida, do mesmo jeito que essa bananada que a mamãe me preparou. Nossas idas à Batista Campos, que ficava perto do prédio dela, lá na Pariquis; nossas conversas banais na saleta do apartamento; o macarrão com carne e o doce de sonho de valsa que só ela sabia fazer; as caixas de bombons e mega-ovos entregues à época da Páscoa; as viagens a Salinas em família; os almoços de sábado; e até as fofocas que suas amigas lhe contavam sobre o único neto homem. “Uma amiga minha disse ter te visto a fumar e beber em um quinze-anos, ó Gutinho”, uma vez me disse, apreensiva. Neguei na hora. Não me dói ver que ela se foi sem saber de meu vício. Lá de cima, sei que ela pode me ajudar a largá-lo sem recair em todos os sofrimentos mundanos.

A vovó se orgulhava imensamente de minha opção profissional. Foi uma das primeiras a saber quando fui contratado no jornal. Adorava que a Mayara também fosse jornalista, pois formávamos, a seu ver, "um casal inteligente". Lia com afinco todas as minhas matérias – nem que não saíssem assinadas, reconhecia meu jeito de escrever, disque –, comentava-as em todos os almoços de sábado. Até a cobertura do “Big Brother Brasil 9” que fiz no jornal ela acompanhou, mesmo odiando o reality show. Uma das últimas que ela leu, já no hospital, foi uma análise grotesca sobre o potencial de Mirla Prado, a paraense, para cozinhar para seus colegas de confinamento. Lembro que me disse que a matéria estava ótima, “bem original”. Coisas de avó coruja.

Chega a ser difícil organizar o raciocínio para falar da Rosita. Ela era uma pessoa boa em tantos, mas tantos aspectos, que fica difícil elencá-los de uma só vez. Mulher, mãe e avó excepcionais, voluntária por opção – e sem colunismo social – às causas dos menos favorecidos, escolada pela vida (e não pela sala de aula) e lutadora, minha avó foi uma grande mulher, que viveu tudo o que tinha para viver e foi cercada de carinho do início ao fim. É mesma grande mulher que vejo em minhas irmãs, primas e na mamãe, que se levantou da cama, à noite de hoje, para fazer uma bananada para o filho após passar dez horas trabalhando sem parar. As mesmas de que me orgulho tanto.

Depois de sete meses, finalmente consegui falar da vovó. Não chorei escrevendo isso tudo. Dificilmente me emociono ao lembrar dela, como já disse. Tive a oportunidade de me despedir aos pouquinhos; passei a noite no hospital com ela dois dias antes de sua morte, visitei-a em casa. Agora que sei que aquilo tudo ficará na lembrança, dá um aperto no coração - mas nem que queira consigo externá-lo. Acho que é meu jeito: apesar de parecer mole que nem manteiga Real, consigo suportar as piores coisas sem falar muito, sem sair gritando por aí.

Além do mais, o aperto vem, mas logo vai embora; já o sinto passar nesse exato momento. Porque sei que, como a Isabela diz, ela é um anjinho. Voltou para o lugar de onde veio após cumprir sua missão – constituir, comandar e manter unida essa família linda de paraenses-portugueses, de gente honesta, ética e trabalhadora, da qual me orgulho profundamente. Ela foi embora voando de classe executiva num avião da TAP, comendo bacalhau com natas e camarão aos quatro queijos, suculentos e bem temperados, acompanhados de uma taça de vinho e um copo de guaraná diluído com um pouquinho d´água. Do jeito que ela gostava.

sábado, 12 de setembro de 2009

Por que odiar Belém? (Parte II)



Minha tolerância para com Belém está indo pelo ralo. Triste, mas verdade. Quem me conhece - e já leu outras postagens desse blog - sabe que, como muita gente com um mínimo de apreço pela civilidade e boa educação, não aguento mais morar em um lugar sujo, fétido, sem lei, desorganizado, provinciano e decadente como a nossa outrora charmosa (segundo os historiadores, porque não conheci essa fase) capital do Estado do Pará. Perco o controle dirigindo quando sou cortado por ônibus e carroças em plena Almirante Barroso, mando cotocos para pedestres que atravessam sem olhar para os lados, pergunto qual é o problema dos atendentes de supermercado mal-humorados que me tratam como se fizessem um favor (e não seu trabalho), deixo de ir a lugares onde vou pegar fila (e ser furado)... e por aí vai. Sei que isso não é o correto, mas não dá para controlar.

Podem me chamar de implicante, intolerante, beligerante, esnobe – não vou mudar de opinião. A cada semana que passo morando aqui – e contando os dias para a minha mudança – tenho mais certeza de que não iria aguentar passar o resto da vida vendo tanta desgraça, tanta porcaria e tanto atraso no meu entorno. É um desafio à paciência e ao bom senso que, infelizmente, não pretendo nem tentar assumir; quem o fizer, ficando por aqui para tentar mudar as coisas, será parabenizado um dia. Do alto dos meus 20 anos de idade, sei que, graças a Deus, tenho consciência para poder criticar esta porcaria de terra natal em que nasci. Nada melhor para isso que utilizar meu blog, não acham?

Nos últimos dias, muitas coisas que não tive tempo de comentar por aqui aconteceram. Na verdade, elas concernem mais aos outros do que a mim; mas, de alguma forma, acompanhei tais situações, seja como cidadão, profissional, amigo, familiar ou simplesmente “popular” (aqueles que, sabe-se lá por quê, ficam de olho na vida dos outros). Casos de violência urbana, violação de direitos, cenas tragicômicas ou degradantes... enfim, coisa para cacete. Resolvi pôr tudo de uma vez só para fora, de forma a simplificar os raciocínios, reduzir o volume de postagens e, de alguma forma, aludir ao início da série temática “Por que odiar Belém?” – que, infelizmente, não tive tempo de terminar. Por sinal, quem se sentir apto a isso pode tentar. Tem assuntos e argumentos demais. Vamos por tópicos, amigo leitor?

Assaltos vistos da varanda e o medo de andar até a esquina

Eu preciso comentar isso, não importa o quão clichê seja o tema insegurança-em-Belém. Somente entre as 16h e as 4h de ontem (11 de setembro de 2009... oh! Meu Deus), dois assaltos à mão armada transcorreram nas ruas que se cruzam na esquina de meu prédio, aqui no pseudochic Umarizal. De tarde, meu avô chegava em casa quando se deparou com um barraco armado em frente a uma vendinha de morangos que fica aqui na Boaventura. Uma senhora que tinha entrado no banco Itaú da esquina com a Doca e sacado uma grana (R$ 10 mil) foi seguida por bandidos e roubada. Reagiu, nervosa, atraindo populares e a polícia para o local após muita gritaria. Mas os assaltantes fugiram, é claro. Enquanto isso acontecia eu estava almoçando na maior paz, após um dia tranquilo de trabalho.


Já de noite, estava sentado na sala de casa com a Mayara, vendo tevê, quando ouvi uma gritaria na Wandenkolk, em frente a um barzinho muito estimado pelo público A, A+ e A++ de nossa cidade (foto). Corri para a varanda, como todo bom brasileiro curioso, e me deparei com a cagada: carros da PM na contramão, de sirene ligada, uma ambulância do Samu-192, gente e mais gente acumulada na rua, dezenas de carros conduzidos por gente mal educada buzinando, trânsito parado... tudo porque, adivinhem, outro assalto à mão armada tinha sido praticado contra um casal que descia àquela hora de seu carro, estacionado no quarteirão anterior ao bar. Depois de uns dez minutos, a confusão foi dispersada e o trânsito voltou a fluir naquele trecho de rua.

Não vou nem entrar nos méritos da violência que atinge o centro econômico, ultrapassa barreiras e não possui mais controle por parte das autoridades policiais – até porque tem número de sobra para evidenciar que não é só de facadas em bares da Terra Firme e tiroteios no Curuçambá que se faz o faroeste caboclo na Grande Belém. Só achei curioso o fato de estes dois incidentes terem transcorrido à porta de minha casa na exata noite em que a mamãe, assustada por algum motivo que até agora não soube explicar, pediu que eu a deixasse de carro na casa de uma amiga que fica a um quarteirão (é sério, na esquina com a João Balbi!) daqui de casa. Ela ia para um chá de panela da filha de uma amiga.

O prédio fica a uns dois minutos de caminhada. Mas minha mãe, coitada, já viu tanta desgraça acontecer em situações semelhantes que negou ir a pé. Fui deixá-la na confraternização com a Mayara – gastamos uns 40 segundos, no máximo, nessa empreitada. Ainda era cedo, umas oito horas da noite, mas nem eu teria arriscado ir a pé para lá com traje social. “A rua fica muito vazia nesse horário”, disse. E foi exatamente o que deu para perceber: os bares tinham gente, as luzes estavam acesas, mas ninguém andava na rua.

Já repararam como a nossa cidade tem poucos pedestres? Às vezes a gente vê aquela confusão no centro, com mares de gente atravessando a rua sem olhar para os lados, e tem impressão oposta. Mas é fato que, em Belém, as pessoas não têm o hábito de caminhar. Quem tem carro ou pode pegar um ônibus ou táxi dispensa os minutos gastando a sola do sapato. Eu mesmo, que moro a poucos quarteirões da Mayara, nunca fui a pé até sua casa, que fica na Praça da República. Até táxi já peguei de lá para cá, dá uns R$ 5,50 – economia que poderia fazer em troca de 15 minutos de cooper.

É um reflexo de que, mesmo com iluminação pública e movimento, as ruas de Belém são muito perigosas. Seja no centro ou na periferia. Minha mãe não está errada, portanto, em pedir para que eu a deixe na casa de sua amiga, jogando um pouquinho a mais de CO2 no ar da cidade e gastando uns mililitros a mais de gasolina. É o preço que a coletividade paga pela insegurança absurda de nossas ruas, mesmo ao início do período noturno. Ela poderia ter sido a terceira assaltada deste 11 de setembro no Umarizal. Tenho certeza disso, e agradeço a Deus por poder dar alguma segurança a ela dentro do meu carro – devidamente peliculado e trancado.

P.S.: Poucas horas depois, descobri que, na mesma madrugada, um jovem de apenas 23 anos havia sido morto durante um assalto na Antônio Barreto, próximo à Alcindo Cacela, também aqui no Umarizal. Ele foi abordado por bandidos enquanto voltava para casa - tinha acabado de ir comprar um lanche para a mãe na avenida Duque de Caxias, acompanhado do primo. A hipótese é que ele tenha reagido e levado os dois tiros por tentar impedir que os bandidos fugissem com seu veículo (quem disser que "a culpa foi toda dele" leva soco). Passo nessa esquina todos os dias, voltando do trabalho - muitas vezes à noite e/ou de madrugada. É nessas horas que bate certa incredulidade com tudo.

Multas, motoristas de ônibus e a desgraça do trânsito

Nessa semana, fui notificado pela Companhia de Transportes de Belém (Ctbel) de uma multa que recebi por falar ao celular na Bernal do Couto, à manhã de 31 de agosto. Nada contra, até porque esse é um dos erros que mais cometo desde que tirei a carteira de motorista. Tenho completa noção que isso representa um risco para mim e para os outros, que isso ajuda a aumentar a insegurança no trânsito e etc. Pois bem, já disse estar errado. Vou pagar a bendita multa com o dinheiro do meu trabalho, sem dar satisfação a ninguém senão às autoridades de trânsito, e de quebra tomá-la como lição para parar com essa mania. Ponto. Mas isso me lembrou de várias outras situações que também mereciam resultar em punição. E que, invariavelmente, nunca dão em nada.

No final desse ano, termino a faculdade. Durante quatro anos, fiz o desgastante trajeto Duque de Caxias-Almirante Barroso-Entroncamento-BR-316 para chegar à Unama, consumindo uma média de R$ 10 diários de gasolina e 40 minutos de trânsito. Primeiro à tarde, com a Mayara dirigindo, e agora à noite, comigo no volante. Não sei nem qual horário é o pior: às 18h, quando voltávamos, o engarrafamento era quilométrico no sentido de retorno ao centro. Agora, quando saímos para a aula nesse mesmo horário, o trânsito é ainda pior rumo a Ananindeua. E um dos principais fatores que deixam a velocidade média dos carros nas vias de Belém igual à de um barquinho pô-pô-pô é justamente a conduta dos motoristas de ônibus.



Esses – e digo isso sem pena alguma – deveriam ser multados até não terem mais um puto para receber ao final do mês. Só assim aprenderiam a honrar a dignidade de um emprego estável e que envolve a segurança de centenas de vidas. Tudo bem que muitos dos condutores de veículos particulares também cometem loucuras; mas não, não tem para eles. Motoristas de ônibus de Belém cortam veículos subitamente, atiram suas latas velhas para as pistas de alta velocidade, não usam freio ou retrovisor, enfileiram-se sem medo de parar o trânsito (foto), “queimam” paradas e, quando resolvem parar, fazem-no de um jeito que só falta arremessar os passageiros pela janela. No meio de tudo isso, ainda buzinam e jogam luz para quem dirige nas velocidades estabelecidas por lei, como se obedecer às normas fosse exceção (quem sabe não é, para eles?).


A meu ver, motoristas de ônibus dirigem pior do que um deficiente visual com boa educação o faria. Mesmo assim, eles cometem suas desgraceiras diante dos guardas de trânsito na maior, sem o mínimo medo de receberem uma multa ao final do mês. Isso é bem fácil de ver na saída do túnel do Entroncamento (foto), entre 18h e 20h. Todo dia tem uma viaturazinha da Ctbel por lá, torrando dinheiro público para evitar que a pista direita do túnel seja usada em sua saída. E também pode-se ver os benditos ônibus cortarem os veículos menores de forma covarde. Eles trafegam pela pista de alta velocidade, à esquerda, mesmo sabendo que, nas normas de trânsito vigentes naquela via, os ônibus só podem estar na pista direita. E ninguém faz nada. Só eu já passei por umas cinco situações de risco causadas por isso, sendo cortado bruscamente quando andava direitinho, na minha faixa.

Isso sem contar outros absurdos que os figuras cometem e que não resultam em nenhuma punição, como as paradas irregulares, os avanços de sinais e preferenciais, as curvas bruscas e, principalmente, as famosas “trancadas”. É aquela típica cena da hora do rush em avenidas centrais: quando seu sinal vai abrir, o ônibus faz o favor de passar no amarelo, mesmo vendo que está engarrafado. O sinal abre, mas ele fica por lá, impedindo você e os outros de atravessarem. Quando o trânsito anda, seu sinal já ficou vermelho de novo.

É uma bola de neve cuja maior “contribuição”, queiramos ou não, vem dos coletivos. Já perdi as contas das vezes em que isso aconteceu comigo – na esquina da Doca com a Senador Lemos, na Presidente Pernambuco com a Conselheiro Furtado, na Nazaré com a Doutor Moraes, na Alcindo Cacela com a Antônio Barreto... e, em várias ocasiões, diante dos tais guardinhas. Nunca vi nenhum sequer levantar os olhos para aquele espetáculo grotesco. E, regra geral, sempre tem um ônibus no meio da cagada.

Sem prolongar mais, isso me leva a pensar na hipótese de minha multa ser exceção. Considero minha conduta no trânsito boa, salvo alguns erros. Não costumo fazer fila dupla – a não ser que haja um motivo plausível e o tempo seja realmente curto –, paro se o sinal está amarelo, não avanço preferenciais, fico na pista dos cantos de quero dobrar mais à frente, não ultrapasso pela direita e, se quiser correr, não saio da pista esquerda.


Não sou nenhum santo. Só obedeço o básico das regras. Já vi muita gente – não só os motoristas de ônibus, é verdade; carroças também dão um charme extra a nossas vias mais movimentadas (foto) – colaborar para a desgraça do trânsito de Belém diante da Ctbel sem, ao menos, ouvir um apito, um bloquinho em mãos, nada. Mas, entre eles e eu, quem fica com a multa? Eu, claro! É óbvio que nada disso me exime de culpa por ter dirigido ao celular. Mas, até onde sei, a lei é igual para todos, em especial no que tange às sanções. Ser o único a levar o farelo é foda. Muitos de vocês, mais velhos e experientes que eu, devem saber como é isso.

Violação de direitos (humanos e/ou animais)

Cavalos desnutridos amarrados no muro da Eletronorte da avenida Perimetral, sob um calor insuportável e à beira de uma pista de alta velocidade, e detentos enfiados dentro de um camburão da polícia durante uma operação de desafogamento de celas de seccionais e delegacias. Situações tão distintas, mas tão parecidas sob o ponto de vista das noções humanitárias e de respeito à vida dos animais. Não estou comparando cavalos a pessoas, que fique bem claro; mas, de uns tempos para cá, o tratamento dado às duas espécies anda bem parecido. Ambos completamente brutais e inaceitáveis.

Já faz uns dois anos que vejo os cavalos amarrados à beira da Perimetral, no trecho entre a UFRA e a avenida Tucunduba, na fronteira do Guamá com a Terra Firme. Desde que entrei nas rondas de policia, passamos pelo menos uma vez por dia naquela área, rumo à Seccional do Guamá. Não me canso de, todos os dias, ficar revoltado com aquela cena degradante. Moradores, veterinários, imprensa, Ministério Público – todo mundo já denunciou isso. Mas nada é feito.


A gente passa na área – que, por si só, já parece um filme de terror, com seus barracos, pilhas de lixo, carros destruídos e favelas infindáveis (foto) – e se vê obrigado a aturar a deprimência estampada diante de nossos olhos. Os bichos, que servem como meio de transporte de carga e gente nas carroças que povoam nossas avenidas, são visivelmente maltratados. As costelas saltam de suas peles, tamanho é o estado de desnutrição e desidratação em que ficam debaixo do solzinho ameno de 40 graus de nossa cidade.

Lembrei-me dessa cena quando vi, na quinta-feira passada (10), o resultado de mais uma operação atrapalhada de transferência de detentos conduzida em nossa capital. Saiu no jornal: à hora em que umas dezenas de presos eram levadas das celas convencionais às centrais de triagem – depois de um esvaziamento das centrais feito durante a madrugada, aparentemente sem nenhuma violação de direitos –, o ônibus em que o transporte era feito quebrou. Qual solução foi encontrada? Pô-los em um caminhão-baú. Isso mesmo: um daqueles que são usados para transportar objetos e móveis de um lugar para outro.

Nem carne animal poderia ser transportada ali: a única “refrigeração” que o contêiner metálico do veículo possuía era um orifício de uns 10 a 20 centímetros, que trazia vento vindo da rua. Algo entre 50 e 100 detentos foram levados de um lado para outro de nossa cidade, no horário de maior calor, usando essas “viaturas”. A cena grotesca foi vista por várias pessoas que estavam em frente à delegacia do Marco e à Seccional de São Brás, onde funciona uma das centrais de triagem da Susipe, por volta das 9h da quinta-feira. Os presos desciam amarrados em “correntes humanas” correspondentes às seccionais. O policial berrava, por exemplo, “venham os da Cremação!” – e os bandidos desciam, em grupo, rumo ao xadrez.


Nunca fui de ter pena de bandido. Sempre achei que os direitos humanos são, antes de tudo, para humanos direitos – perdoem o clichê, por favor, era necessário – e tal; mas, vá lá, as coisas têm limite. Não é questão de pena ou de vitimização dos criminosos, e sim de bom senso. Se as celas superlotadas (foto), a comida apodrecida e os tratamentos de higiene e saúde degradantes concedidos aos detentos já eram alvo de denúncia junto aos órgãos competentes, o que dizer diante de um amontoado de presos de Justiça dentro de um contêiner metálico em plena região central de uma capital de Estado? É, no mínimo, um caso de polícia.

Ouvi dizer que um figura bem posicionado chegou a perguntar à imprensa o que seria melhor: que os bandidos fugissem do ônibus quebrado e promovessem uma chacina no centro de Belém ou que fossem transportados de forma "inadequada", porém emergencial, às centrais de triagem. A resposta é: nenhum dos dois. É papel das autoridades de segurança pública garantir a segurança da sociedade, assim como o é fazer o transporte de presos de uma unidade carcerária com o mínimo de condições. Ambas as funções não estão sendo bem cumpridas, no final das contas.

Dane-se o que diabos os detentos fizeram para estar ali, sob custódia: ninguém merece situação tão degradante - e, inclusive, de risco de morte. Se for para os caras viverem assim, melhor matá-los de uma vez, não concordam? Os direitos humanos continuarão a ser desrespeitados do primeiro ao último artigo, só que com um pouco mais de cara de pau. Como me disse um colega, o poço da segurança pública no Pará realmente não tem fundo.

Se a imprensa local se comprometer a explorar esse caso a fundo, teremos um novo escândalo nos moldes menina-de-Abaetetuba, que renderá muito pano na manga. Regra geral, a coisa iria feder para as mesmas autoridades. E as pessoas voltariam a olhar de forma mais crítica para o nosso Estado, essa terrinha degradada, sem lei e inóspita, tanto para para humanos quanto para animais, cuja capital é apenas um reflexo de toda a pobreza de espírito que consome suas autoridades públicas e, em maior ou menor escala, sua própria população.

* Leia a parte um aqui.

(Fotos minhas, à exceção da primeira - divulgação - e das duas últimas - Igor Mota e divulgação)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Possíveis lições do jornalismo policial

É recorrente ouvir que o jornalismo policial para nada serve. Já cansei de ouvir isso - e, confesso, concordar com os argumentos mais infundados do universo, disparados por alguns colegas e conhecidos. Não só entre o pessoal da área, mas entre os próprios leitores, a editoria de Polícia é tratada como algo baixo, sanguinolento, apelativo, desumano. O motivo: a profusão de corpos explodidos, cabeças esmagadas, facadas, tiros e pauladas afins que povoam nossas páginas, telas e rádios. Não pretendo me ater a esta discussão. Queria falar um pouco de experiência pessoal: como tudo nessa vida é aprendizado e amadurecimento - e, também, obra do acaso -, fui parar neste caderno no jornal em que trabalho, logo em meu primeiro dia de volta das férias.

Na verdade, já era escalado para fazer Polícia nos plantões de sábado e domingo há algum tempo. Também já havia passado uma ou duas semanas na editoria, cobrindo as férias de colegas. Mas desde esse mês de julho é diferente. Acordo, tomo café e vou para o jornal consciente de que, sim, vou fazer ronda. Receber coordenadas de locais em que há gente morta, gente levando o farelo, gente sendo presa e prendendo mais gente. Ir às delegacias procurar desgraça e voltar puto se não houver nada para escrever sobre. Meu nome mudou de lugar na folhinha de pautas distribuída a cada dia. Fiquei amigo de PM, delegado, escrivão - de bandido, até (dia desses uns detentos me pediram cigarro... é mole?). Enfim; um "foca" enfiado num dos setores mais complicados e polêmicos de um jornal diário. Tá institucionalizado.

O que aconteceu comigo não tem nada de especial. Conheço muita gente lá do trabalho que também passou por outras editorias e, de repente, se viu jogada no tal "caderno da baixaria". Por isso, quando recebi a notícia, não fiquei triste, como muita gente pensava. Nervoso, sim, porque realmente não tinha (e não tenho) experiência na área, e, ao contrário do que uns e outros pensam, é preciso tê-la para não fazer e falar besteira à hora de escrever sobre o assunto. Mas decidi entrar na história, para aprender e conviver com gente "vivida" na área. E, em pouco mais de um mês, posso dizer que essa editoria mudou minha forma de ver nossa querida profissão.

Usos e efeitos

Por quê?, você deve estar se perguntando. Bem, porque noticiário policial é jornalismo, e jornalismo importantíssimo. Queiramos nós ou não. A verdade é que relatar desgraça - incêndio, homicídio, acidente, prisão de estuprador, linchamento, tiroteiro, protesto, barraco - tá na essência da nossa profissão. Não só na brownpress como na imprensa culta e especializada. Comecei no jornal na editoria de cultura, e sei muito bem o que significa escrever sobre assuntos maravilhosos que nem todos leem. São temas tão importantes - ou mais - que os policiais, mas é fato: eles concernem menos ao dia a dia "da Dona Maria da Terra Firme" (como diria minha chefe) do que os problemas concretos por ela enfrentada. Uma sessão especial no Líbero Luxardo, por exemplo, não tem impacto comparável à prisão de uma quadrilha responsável por praticar estelionato contra centenas de pessoas, por exemplo. Engulam: antes de pelo universo cultural, o povo se interessa pelas cagadas que envolvem sua cidade, sua rua, sua vizinhança. É um fato a se aceitar - e tentar compreender antes de fazer duras críticas à nossa tão sofrida população.

Talvez por isso a gente aprenda desde cedo que é importantíssimo saber "descrever o momento" de forma simples e concisa na matéria de Polícia - claro, sabendo o limite tênue entre a experiência pessoal e o fato relatado, senão vai todo mundo virar "repórter-notícia". É uma questão de respeito ao leitor, de prestar um serviço público a ele. É a primeira e mais importante das lições: como muita gente lê, e muita gente mal sabe ler, a gente tem que se desdobrar para falar bonito, mas de um jeitão simples, como se estivéssemos contando a história em um bar ali na esquina. Isso já havia ouvido de vários editores lá do jornal, mas passei a me cobrar mais quando mudei para o caderno. Se nas outras editorias isso já é importante, imagine em Polícia. Já ouvi relatos de gente que nem sabe ler, mas pegou o jornal só para confirmar a morte do bandido mais temido da rua por meio da foto. Juro.

Imagem + texto

Por sinal, vamos falar de foto. A Justiça do Estado gerou bastante polêmica ao determinar que os jornais deveriam parar de publicar fotos com cadáveres expostos, caveiras queimadas (lembram das fotos das meninas de Salinas?) e por aí vai. Eu achei certíssimo. E aí esbarramos em uma lição que aprendi com vários dos repórteres fotográficos lá do jornal: a foto não precisa ter baixaria para ser informativa em um caderno policial. Se mataram um figura lá no Canal São Joaquim, por exemplo, que fica perto de vias movimentadas de nossa capital como Pedro Álvares Cabral e Júlio César, não posso ter uma foto da aglomeração de populares em torno do cadáver (devidamente coberto e não identificado, lááááá ao longe) em vez de vislumbrar um olho arrancado à base de tiros de pistola ponto 40, por exemplo?

Posso - e devo. Contanto que não se exponha o cadáver, não se dê indícios de suas origens, de seu local de moradia; enfim, que sejam respeitados seus direitos de cidadão, morto, mas cidadão antes de tudo. Estamos, inclusive, cumprindo um serviço ao mostrar os locais em que os crimes transcorrem - já pararam para pensar nisso? É só fazê-lo de forma respeitosa. Portanto, mesmo trabalhando com texto, já aprendi coisas legais nessa área. Por extensão, compreendo todas as "chatices" e atos "sem noção" que nossos pobres colegas fotógrafos cometem ao tentar registrar um evento trágico. É o trabalho deles, amigo.

Relevância social

Muito longe do argumento de que "a gente tem que fazer matéria sobre o que vende" - infelizmente, já ouvi isso da boca de gente que tem décadas de redação -, tenho convicção em afirmar que o caderno de Polícia é, mais que um produto comercial, um informativo de relevância social; o repórter Dilson Pimentel, um dos mais experientes nessa editoria em Belém, já falou sobre isso numa entrevista muito boa dada à não tão boa assim revista "Troppo", de "O Liberal". Porém, deve-se ir muito além do jornalismo-porta-de-seccional. Isso significa que, mais do que pegar um Boletim de Ocorrência e torná-lo texto jornalístico, ao mesmo tempo em que distribui jornais para os escrivães e delegados, a equipe responsável pela ronda de Polícia tem de tentar repercurtir, suitar e aprofundar os acontecimentos e suas respectivas abordagens na imprensa.

Uma das formas de investir nesse sentido é justamente por meio das matérias especiais, sejam investigativas ou "de ouvir as lamentações do povão". Até porque as autoridades de segurança pública leem jornal (ou, ao menos, deveriam fazê-lo) e podem pautar suas ações a partir das denúncias e declarações postas no papel. É uma coisa que nossos impressos locais estão tentando fazer: se você duvida, pegue o jornal "Amazônia" de domingo e verá pelo menos duas páginas duplas por edição.

São matérias mais aprofundadas sobre tráfico de drogas, violência nos bairros, situação de grupos de risco e incontáveis denúncias sobre nossos sistemas carcerários, nossas delegacias, nosso reduzido efetivo policial e tudo o mais. Vai me dizer que isso é sanguinolência barata ou baixaria? A mesma coisa é feita também no "Diário do Pará", em "O Liberal" e no "Público". Claro que é algo esporádico e que precisa melhorar muito, mas já é um começo. Às vezes nos atemos ao preconceito e até deixamos de lado o caderno de Polícia, deixando-o para receber o xixi do animal de estimação. Muita gente deduz que só verá baixaria em suas páginas. Como já disse: tudo nessa vida é aprendizado. O leitor dotado de olhar crítico aprende lendo Polícia.

Conhecimento de campo

É um pouco óbvio, mas vale lembrar que nós também aprendemos, e muito, sobre a rotina e os problemas que envolvem a nossa digníssima cidade fazendo Polícia. Ainda sou "verde" nesse sentido, tem muita gente que pode falar de forma mais aprofundada sobre o assunto. Mas enfim, em meio a tanta tragédia, tantas escalas de final de semana e tantas horas extras acumuladas, percebi uma coisa: nosso olhar sobre Belém só faz se aprimorar com as benditas rondas divididas entre centro e periferia.

Quer um exemplo? Até ser posto nessa editoria com alguma regularidade, não sabia distinguir Guamá de Terra Firme. Jurunas de Cremação. Paar de Curuçambá. Aliás, nem sabia da existência deste último - só fui entender onde ficava após ver o Filipe parir umas 15 matérias especiais sobre a chacina feita pela Ronda Tática Metropolitana (Rotam) da Polícia Militar (PM) naquele bairro. Também aprendi onde ficavam as ruas, cruzamentos, como chegar à tal "zona vermelha" e sair dela (correndo, de preferência). Coisas aparentemente inúteis, mas que ajudam a gente a travar conversas sobre a situação de nossa cidade sem atropelos.

Querendo ou não, o convívio com equipes experientes (de motoristas, fotógrafos, chefes de reportagem e etc.) da imprensa diária fazem com que a gente aprenda a ver a cidade de outro jeito. Hoje saio do conforto de meu apartamento no Umarizal e sei para qual lado fica uma favela onde nem água potável tem, uma ocupação desordenada em que nem a PM entra; sei que, se descer a Quintino e a Alcindo Cacela, ruas da zona "nobre" (decadente) de Belém, vou parar num fim-de-mundo onde o tráfico é meio de subsistência e sustento de vícios alheios. Levando em consideração que vivemos em uma cidade sitiada, extremamente perigosa - muito mais que São Paulo, sabiam? É só ver nesse relatório da Organização dos Estados Íbero-Americanos Para a Educação, Ciência e Cultura que mostra Belém na 13ª posição, entre 25 capitais, das cidades com maior número de mortes para cada 100 mil habitantes -, isso não é uma questão somente de aprendizado pseudoantropológico: é uma questão de sobrevivência. Sério!

Lembro direitinho, por sinal, do dia em que me dei conta da complexidade da questão da violência em Belém: estava num plantão de domingo à noite, aquele em que nós chegamos ao jornal sem hora para sair. Era quase meia-noite, ia bater meu ponto e... apareceu um assalto com refém na Terra Firme. Mais precisamente, na rua São Domingos, próximo à passagem Nossa Senhora das Graças, um trecho ultraviolento do bairro que, conforme denunciado pela imprensa (e não necessariamente comprovado), teria se tornado alvo da ação de milícias armadas, à moda do que ocorre em cidades como o Rio de Janeiro.

Estávamos cercados de policiais. Só por isso entramos. Porque nem eles recomendam que a gente tente dar uma volta por aquelas bandas. Eram dois adolescentes, vítima e infrator: um de 14 e outro de 17 anos. O mais novo apontava um revólver ponto 38 para a cabeça do outro. Estava assaltando um barzinho nos arredores e se assustou ao avistar a polícia. Quando encarei aquela situação, pensei em duas coisas: por que diabos escolhi essa profissão? E por que diabos aquele moleque estava ali? As duas perguntas levaram a uma terceira: será que noticiar isso em um caderno de Polícia pode ajudar a solucionar o problema? Essa só pude responder agora que estou na editoria. E a resposta, caso você não tenha deduzido, é sim - dependendo da abordagem, do aprofundamento, da qualidade de apuração e do compromisso social para com o leitor. A meu ver, pelo menos.

Amadurecimento

Enfim, é capaz que haja muita discórdia em relação a essas opiniões. Muita gente vai continuar dizendo que só falo isso porque a imprensa paraense "adora uma baixaria", porque abracei a causa de uma escola contrária ao respeito aos Direitos Humanos e ao bom jornalismo. Vão dizer que ando empolgado com a editoria de Polícia (muito pelo contrário; é um desafio ter ânimo para encará-la todo dia), que resolvi puxar o saco do jornal em que trabalho, etc. e tal. Enfim, opiniões são opiniões. Aceito-as na boa.

Até porque o argumento central, aqui, é de que há um bom amadurecimento por trás disso tudo. Desde que entrei no jornal, pus na cabeça uma coisa: a gente, que entra no mercado cedo e sem praticamente nenhum conhecimento profissional adquirido, precisa passar por tudo o que é setor. Desde o "caderno da baixaria" até o que fala de poesia, teatro e música popular brasileira. Como disse o Dilson na entrevista dele, não tem área mais ou menos importante num jornal diário. O mesmo aprendizado que devo ao pessoal de Polícia devo ao povo da Cultura, de Cidades, devo a meus professores das disciplinas práticas e teóricas na universidade.

Tenho total consciência de que a gente tem muito a aprender, que não é só sabendo português que se faz um texto decente. É por isso que, sempre que posso, tento tirar dúvidas (às vezes, até com o povo da "concorrência") e tirar algo de novo de cada apuraçãozinha cotidiana que a gente faz no dia a dia. Creio que isso viabilizará um amadurecimento, tardio ou não, nessa profissão que pareço ter escolhido para o resto da vida.

sábado, 1 de agosto de 2009

U2, 360º


Prólogo

A chegada foi conturbada. Pouso em Girona, 30 e sei lá quantos graus do calor seco e insuportável de uma cidadezinha próxima ao Mediterrâneo. Isso depois de duas horas de voo, mais uma hora de trem em Portugal, de madrugada e no frio. Somou-se a isso mais uma hora e meia de ônibus – e engarrafamentos em “vias expressas” mais lentas que a Almirante Barroso – até chegar a Barcelona, o destino final. A meta: deixar as coisas no hotel o quanto antes e correr para o show do U2. Faltava pouco. Foi um dos passeios a pé mais agoniados que já fiz, o da Estació Nord até o hotel em que tínhamos reserva.

Era um prédio pichado e antigo, mas muito confortável, situado no Bairro Gótico. Também, dane-se: conforto para quê? Deixamos as coisas e, sem sequer lavar o rosto ou escovar os dentes, corremos à rua. Dois amigos nos aguardavam com o ingresso em mãos. Descobrimos que, dali até a hora do show, ainda restava um punhado de tempo. Dava para dar um passeio e conhecer um pouco de Barcelona – a charmosíssima capital secundária da Espanha, que nem espanhol fala oficialmente, de tão singular.

Turistas e mais turistas se acotovelavam nas benditas Ramblas – muitos ali estavam pelo mesmo motivo que nós, creio. O céu era irreal, um azul-bebê sem quaisquer manchas nebulosas. A umidade era tão baixa que mal suávamos, mesmo sob os 38º C. Era incômodo, mas tranqüilizava: pelo menos não vai chover à noite. Caminhamos rapidamente pelas ruas apertadas do bairro Gótico, cheias de casarões, muralhas romanas do século IV e lojinhas de souvenires de gosto duvidoso.

A cidade tinha, sim, todos os motivos para nos conquistar – até pelo clima de festa em que estava imersa, em pleno verão. Charmosa, caótica e bem-cuidada, mesmo com a má educação dos turistas, é uma típica metrópole europeia. Mas não era o foco central da coisa, pelo menos ainda não. Já por volta das 16h, rumamos para o metrô mais próximo e seguimos até a estação Collblanc (não esqueço esse nome). Ela ficava na zona oeste de Barcelona, a poucos metros do Camp Nou, o charmoso estádio do “Barça” onde seria a abertura da turnê “360º”.

Havíamos conseguido ingressos promocionais na internet enquanto ainda reservávamos passagens para as férias na Europa, uns 100 euros abaixo do que os cambistas vendiam no dia. Eu e um amigo conseguimos fazer tudo pelo MSN. Tentamos, eu no Brasil, ele em Portugal. Estava no trabalho e arrumei uns segundos para tentar a sorte no U2.com. Consegui quatro lugares (marcados) na arquibancada, logo ao lado do palco. Na pré-venda. Saiu tudo por 55 euros a cabeça. Passamos tudo num cartão e dividimos a fatura. Só de lembrar dos ingressos de 400 reais que muita gente comprou para ver o show deles no Brasil, em 2006, senti um alívio absurdo. Valia, e muito.

Parecia brincadeira, então, olhar para aquele ingresso nas mãos e que faltavam, sei lá, umas quatro horas. Dali em diante, tudo era suportável: a cerveja de quatro euros (12 reais em uma latinha!!!), o calor absurdo, a demora e até a banda de abertura Snow Patrol, que, apesar de bem intencionada, não tinha o peso e intensidade em palco necessários para acalmar as 90 mil pessoas que se acotovelavam no estádio.

O show


Pontualmente às 22h – afinal, eles são da Irlanda... Reino Unido, pontualidade, etc., entendeu? –, eles subiram ao palco. Ainda fazia sol, por conta daquele fenômeno lindo que é o verão europeu; parecia ser umas 17h30, com aquela iluminação amarelada e meio suja que costuma banhar os prédios aqui de Belém (o calor era o mesmo, ou até maior). Estávamos em um lugar até privilegiado, também havia telões em todos os cantos e o palco era naturalmente um círculo (daí o nome da turnê). Para completar, minha mãe levara um binóculo – “só para ver o Bono”, disse ela, enfaticamente. Confesso que fiquei um tanto surpreso ao ouvir os acordes iniciais de “Breathe” ressoarem no estádio logo após a ovacionada entrada de Bono (vocal, guitarra), The Edge (guitarra, teclado), Adam Clayton (baixo) e Larry Mullen Jr. (bateria)... era uma daquelas músicas que não tinham me fascinado em “No line on the horizon” (2009), o novo disco deles. Mas, como é de praxe do U2, aquela canção funcionou bem, muito bem, ao vivo.

Eles são especialistas em fazer isso: experimente ouvir “Mofo”, “Elevation”, “Out of control”, “Zoo station” e tantas outras músicas de abertura de turnê em suas versões de CD; veja se elas têm o mesmo impacto. Não: foram feitas para a performance, para o improviso; são um chamativo para aumentar o calor no palco e a gritaria na plateia. E foi isso que eles conseguiram com aquela cançãozinha simples de três minutos, cujo maior trunfo são os agudos de bono e o ritmo quebrado, cadenciado. Foi aí que caiu de fato a ficha, e eu percebi que realizava um sonho antigo: o de ver esses caras ao vivo, em boa forma e no início de uma turnê megalomaníaca, daquelas que só aparecem de década em década.

Sempre fui do tipo que coleciona tudo o que a banda preferida lança. Tenho praticamente todos os DVDs do U2 – os que faltavam comprei antes do show, nas FNACs de Portugal –, além de uma pilha de discos originais. Só o “Zooropa” (1993) que não tenho em sua versão, digamos, “oficial”. Por conta desse vício saudável, conhecia, minuto por minuto, todos os detalhes de cada turnê deles – a crueza das digressões feitas entre “Boy” e “War”, o exagero estético da “Popmart”, o experimentalismo da “Zoo TV”, o minimalismo da “Elevation tour” e o retorno às raízes com a “Vertigo tour” . Só que, agora, já tinha idade e condições suficientes para encarar vê-los a cores, logo à minha frente. Era o que transcorria ali, diante de meus olhos, naquela calorenta noite em Barcelona. Aquele palco absurdo, aquele telão em 360º que permitia a todos ver o quarteto de perto, aquele exagero de detalhes.

Para o deleite dos fãs mais novos, os U2 usaram do primeiro terço de show para alternar novidades com clássicos que, há tempos, não figuravam em seus setlists. O vai-e-vem de épocas foi inspirado: primeiro a sequência de novidades “No line on the horizon”-“Get on your boots”-“Magnificent”, com esta última levando muita gente ao céu. É, provavelmente, a melhor faixa que o U2 compôs desde “Walk on”. E, ao vivo, soa ainda mais bela que no CD. Em seguida, o megahit “Beautiful day” serviu para trazer muita gente de volta ao chão, só para berrar junto aquele refrão sob a acústica privilegiada do Camp Nou.

Somente aí Bono, com seu habitual carisma e capacidade de fazer-nos sentir na sala de sua casa, resolveu bater um papinho com o público. Disse que adorava Barcelona, adorava começar a turnê por ali e blá blá blá. Seu bate-papo foi cortado pelo dedilhado de “I still haven´t found what i´m looking for”, clássica do “The Joshua tree” (1989) que há tempos não ganhava espaço no repertório da banda. E daí em diante veio uma penca de músicas inesperadas: “Angel of harlem” – que, ao final, ganhou vocalizações de “Don´t stop ´til you get enough”, o hit embrionário de Michael Jackson, em uma homenagem de Bono ao cantor falecido dias antes –, “In a little while”, “City of blinding lights” e até “The unforgettable fire”, a belíssima faixa-título do disco de 1984 que, essa sim, nunca tinha visto em sets ao vivo do U2.


Foi nela e na faixa anterior, “Unknown caller” – uma das melhores do novo CD –, que percebi a dimensão da nova turnê. Antes que essa última fosse anunciada, Bono disse ter em mãos uma surpresa: queria bater um papo com umas pessoas que viam o show de longe, bem longe. E não é que ele falava sério? O telão do palco projetou a imagem dos astronautas da International Space Station (ISS), que assistiam ao show de camarote lá do espaço. Eles bateram papo com a banda, empunhando cartazes e falando de sua rotina. Depois, como se aquilo fosse a coisa mais normal do universo, o grupo tocou “Unknown caller”, “The unforgettable fire” e “City of blinding lights” numa porrada só, sem interrupções para perguntar: “E aí, o que vocês estão achando”? Eu, como as outras 90 mil pessoas que estavam no Camp Nou, fiquei boquiaberto. Realmente não há limite para esses caras...

Daí em diante, foram surpresas atrás de surpresas. Um remix em versão trance deu nova roupagem à bonitinha “I´ll go crazy if i don´t go crazy tonight”, outra das que não me haviam fisgado em “No line on the horizon”. “Sunday bloody Sunday”, “Pride (in the name of love)”, “Walk on” – esta utilizada para a mensagem politizada de praxe dos shows da banda – e “Where the streets have no name” foram a mesma coisa de sempre: lindas e bem apresentadas, com Bono em sua melhor forma vocal, como não se via desde os tempos da “Elevation tour”. E, no meio disso tudo, duas canções que ninguém esperava: “MLK”, aquele interlúdio a capella do CD “The unforgettable fire” (1986), e “Ultraviolet (light my way)”, aquela canção a la Bon Jovi que figura, meio sem quê nem porquê, no disco “Achtung baby”. Tudo milimetricamente pensado, com um errinho aqui e outro acolá, mas nada que quebrasse o ritmo da apresentação.

A parte final da noite serviu para que eu, já rouco e sem forças para ficar em pé – a roupa que estava usando desde a madrugada daquele dia estava imprestável, encharcada –, aproveitasse os assentos marcados da arquibancada. Com “One” e “With ou without you”, o U2 me fez pensar em várias coisas. Na Mayara, que já contava os dias para rever, na viagem que fazia, em que tudo havia dado certo até ali, nos aprendizados e vivências que levava da minha primeira ida à Europa, nos meus planos para o ano que vem... enfim, pieguices que são muito válidas, ainda mais quando inspiradas por dois hits óbvios, porém inevitáveis, daquela turnê-revolução. Acendi o isqueiro e deixei a idiotice de fã me levar junto.

Para encerrar, como já é de praxe desde os tempos da “Popmart”, o U2 se valeu de uma composição cadenciada e, até então, pouco valorizada pelos fãs: “Moment of surrender”. Apesar de não ser lá um destaque do novo disco, ela merecia estar ali. Tem uma das linhas vocais mais difíceis de se executar ao vivo – e Bono fez bonito nela, mesmo após mais de duas horas do show – e um refrão com todo o climão de despedida, bonito como a maioria dos arranjos do U2.

Conforme ela ia chegando ao final, Bono começou a despedir o grupo, dizer que aquela noite fora memorável. Todo mundo estava acabado, incluindo eles. Mas satisfeito de uma forma inexplicável. Saímos do estádio, eu, minha mãe e mais dois amigos, ainda meio extasiados. Nem havia me tocado que “New year´s day”, minha canção preferida do U2 – e, provavelmente, de 80% dos que ali estavam – não havia sido tocada. Mas tudo bem, não tinha problema: já fazia uns 25 anos que Bono tinha de cantá-la umas 60 vezes por ano. Dava para relevar, só dessa vez: eles tinham compensado, e muito. Se reclamasse, perdia a graça.

Epílogo

A volta foi uma porcaria. Fomos esmagados por um mar de gente suada dentro do metrô fétido e apertado de Barcelona, a estação de trem em que faríamos a troca de linha estava lotada, a linha central fechara, tive uma daquelas crises ridículas e vergonhosas de claustrofobia. Caminhamos a pé por umas duas horas naquelas ruas vazias, escapamos de um assalto (tenho certeza!), perdemos a direção no mapa. E, por fim, após desistir de procurar táxi, pegamos um ônibus na Plaça de Espanya – lugar sombrio, mas charmoso – para chegar ao hotel. Fumamos aquele cigarrinho sagrado na varanda, com a vista para o Bairro Gótico. Ainda tinha um mar de gente nas ruas.

No dia seguinte, acordei cedo e fui passear pela cidade com minha mãe. Fizemos um city tour bem fast-food, daqueles com direito a ônibus colorido e fonezinho de ouvido com músicas tradicionais. Passamos rapidamente pelos pontos turísticos, conhecemos as (centenas de) zonas da cidade e, por fim, demo-nos a oportunidade de caminhar calmamente pela área próxima ao hotel – minha preferida de lá, de longe. Ah: compramos o jornal e lá estava uma foto do show estampada na capa. A manchete do dia eram eles.

Depois almoçamos, pegamos ônibus para o aeroporto de Girona, brigamos com os funcionários da Ryan Air à hora do check-in, fomos obrigados a pagar uma taxa inexplicável (vamos pedir o reembolso!). Discuti com a gerente, primeiro em espanhol, depois em inglês (tinha perdido a paciência para me enrolar falando); ela riu da minha cara, disse que teríamos de pagar, senão não iríamos embora da Espanha. Depois de uma hora e meia de voo – horrível, por sinal – chegamos de volta ao Porto, em Portugal, pegamos um metrô de superfície rumo à estação de trens intermunicipais, chegamos à estação São Bento, esperamos mais um pedaço de hora, pegamos o “comboio” para Aveiro... e chegamos em casa. Lá pelas 22h.

E quer saber? Valeu a pena todo esse trabalho.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Le temps


Lembro direitinho do tempo que fazia na estrada de Belém para Salinas na semana do réveillon de 1996. Ou seria 1997? Enfim. Tinha uma nuvem imensa, amarelada, no céu típico de final de ano. Àquela época, as chuvas eram mais intensas e o "inverno" já dava seus primeiros sinais desde as luzinhas de Natal. A gente sempre passava a virada em Salinas ou na Assembleia, geralmente com toda a família reunida. Daquela vez, fomos ao balneário e tivemos azar - choveu do primeiro ao último dia. Foi isso que me marcou, creio.

Era o mesmo tipo de chuva que caiu à tarde e noite de hoje aqui em Belém, em 27 de abril de 2009. Respingos teimosos, que molharam a janela do meu carro, do meu quarto, porque eu teimei em ficar fumando. Eles me fizeram lembrar, sei lá por qual motivo, de coisas que achei por bem escrever nesse blog, só para arredar a poeira, mesmo.

Eu costumava gravar fitas cassete de 30 minutos e dois lados para a família ir ouvindo no caminho para Salinas. E também no caminho para as praias - àquela época, não tinha engarrafamento para o Atalaia... -, geralmente por volta de 10h, que era a hora que eu e meus pais gostávamos de ir (a Clarissa e a Isabela, no auge da adolescência, ficavam possessas, mas era o jeito... democracia familiar). Enfim, as fitinhas custavam uns R$ 3, mais ou menos o que custa um DVD pirata dos blockbusters mais recentes na Doca de 2009.

O papai tinha acabado de comprar aquele Ford Mondeo cor vinho - surradíssimo quando foi vendido, agora em 2005 -, e nós nos achávamos a família mais única do mundo indo para o Atalaia num importado 1.8, ouvindo sucessos da época em áudio mono. Lembro que as meninas adoravam aquelas cantoras trash da estirpe de Mariah Carey e Celine Dion, mas às vezes até que gostavam de ouvir alguma dos Beatles. Já eu gostava de U2 (o "Unforgettable fire" foi o primeiro CD deles que ouvi, a Rita tinha uma cópia), Beatles, Elton John (ihhhh...) e umas coisas de menor valor. A mamãe não tinha grandes preferências. Já o papai adorava aquelas coisas Diário-FM-às-duas-da-manhã: Credence Clearwater Revival, The Fevers, Tim Maia, Roberto Carlos.

Como que atingido por uma pontada de profissionalismo, esmerava-me naquelas gravações e acabava agradando todo mundo. Naquele 1996, passei a véspera da viagem gravando a bendita fita na sala de nosso antigo apartamento, lá em Batista Campos. Na verdade, comprei duas fitinhas virgens para que nosso repertório fosse bem variado. R$ 6. Comprei-as na lojinha do CEO, a escola em que a gente estudava. Botei, de um lado, o que gostava. Do outro, o que as meninas queriam. As do papai ficavam espalhadas pelo meio, já que ele era o que tinha de ficar acordado e ouvir tudo, no final das contas.

Lembro que começou a tocar "Pride" do U2 quando a gente passava por aquela bizarríssima plantação de pinheiros (?!?!?) em plena selva amazônica que fica logo depois de Castanhal, no meio da estrada. Chovia muito, o trânsito estava um lixo. Todo mundo dormia, menos eu e o papai, que estava dirigindo (graças a Deus, né?). Não sei por que, aquele momento teve algo de marcante e ficou na minha cabeça até hoje. O Bono berrando "What more in the name of love?" naquele carro tinha algo a ver com os pinheiros teimosamente saudáveis no clima equatorial.

Naquele feriado, lembro que nosso apartamento estava uma bagunça. Eram três quartos para três núcleos familiares: de um lado, a vovó e o vovô; do outro, Tia Sandra, Tio Carlos, Lígia e Marina; e do outro, eu, mamãe, papai, a Clarissa e a Isabela. Ninguém se arriscou a dormir na rede da sala com medo dos carapanãs e morcegos. Só um banheiro para todo mundo. A gente chegava da praia e fazia fila.

Lembro que a Isabela ficou doente de alguma coisa e só podia se alimentar tomando sorvete (hepatite? Sei lá). Aí eu ficava entornando potes de sorvete napolitano com ela - "os dois gorduchinhos". À noite, saía para passear com a mamãe em volta do prédio, para curtir a lanterna que tinha comprado e gostava de focalizar nas ruas escuras da orla do Maçarico (adorava lanternas, não me pergunte por que).

Àquela época, sei lá por que motivo, Salinas era um lugar pacato. Toda vez que tínhamos algum estresse, alguma bronca familiar coletiva, íamos para lá. Ou então quando todo mundo estava de férias. Em 1996, as duas coisas faziam sentido. Todo mundo estava de folga. Só fui saber, anos depois, que aquele ano era o começo do fim do casamento dos meus pais, eles andavam meio mal. Para mim, no entanto, nos meus imbecilíssimos sete anos de idade, era só um ano novo longe de Belém.

O réveillon foi divertidíssimo. Fomos à praia (não lembro se Atalaia ou Farol Velho), passamos a virada e mais alguns minutos por lá. Lembro que, desde aquela época, não desgrudava da mamãe por nada. Era visto até como mimado, preferidinho-cuti-cuti-protegido dela - o que, de fato, era - e gostava de ficar atrás da coitada, dando ordens nela, pedindo comida, sei lá. Foi nesse ano, creio eu, que aconteceu um episódio clássico em que mandei ela ir dormir comigo às dez da noite, sendo que ela estava jogando baralho com os amigos - e o pior: ela obedeceu.

Enfim, passamos a virada na praia. Aí veio a chuva de novo. E, junto com a chuva, mais um respingo de memória auditiva. Uma música do Fruta Quente, creio eu, uma base em acordes maiores que nem sei cantarolar. Estava encostado num cantinho da barraca e vi os fogos explodindo. Abracei todo mundo que via pela frente (sempre fui sociável) e fiquei olhando para o mar. E daí não lembro de mais nada até uns dois anos depois.

Não sei bem o motivo, mas essa viagem ignóbil fincou raízes. Ela voltou à mente hoje de noite, enquanto eu olhava o movimento da rua com a chuva. Querendo ou não, esses momentos em que a memória dá um sobressalto nos são de extremo valor. Eles trazem de volta um pouquinho do que a gente foi e nem se lembra - em meu caso, lembrou de uma infância que aos poucos vai ficando longínqua e surreal. Tanto nas imagens quanto nos sons, na essência mesmo.

Faz uns três anos que não vou a Salinas - fui ano passado a trabalho, mas prefiro nem contar. Não consigo arrumar tempo nem um motivo bom para perder finais de semana por lá. A cidade é um caos, vive lotada de playboys bêbados dirigindo Hiluxes do papai com placas de Paragominas, Marabá e Tailândia. As praias fedem a cerveja, mijo e churrasco de gato. A maré sobe demais, os carros se entalam. Os arrombadores fazem plantão diante de predinhos bucólicos e pimbudos como o meu.

Falta chuva, o calor está bem pior, mesmo com a brisa da maré. O forró-rala-coxa e o tecnobrega conseguem ser piores que o pagode, a axé music e o pop internacional sofrível dos anos 1990. E, principalmente: o nosso apartamento não é o mesmo. Não tem mais o clima caótico, cada um vive sua vida numa boa e passa por lá quando as férias do trabalho permitem. Ainda é nosso lar, mas não tem alguns elementos essenciais que não vale a pena listar. Nada que envolva a unidade familiar ou algo do tipo; é uma questão de época, e só.

Sabe aquele clichê de que a gente não é o mesmo de um minuto atrás? Pois é: a vida é um ciclo, mas às vezes a gente muda o ponto da circunferência. Gira em torno de outros eixos, enfim. Àquela época o eixo era outro, bem mais fácil, bem mais simples. As fitinhas de 30 minutos e dois lados, certamente, eram mais divertidas, embora mais rústicas, que o CD, o DVD e o MP4 que está carregando a bateria no computador de 250 GB neste momento. O Ford Mondeo era mais possante que o Celta vagabundo em que passo pelo menos 1/6 de meu dia dirigindo no trânsito nojento de Belém (sempre correndo). Talvez por isso, por tudo isso, não vá lembrar das coisas por que passo hoje com a mesma intensidade daqui a alguns anos. É tudo rápido demais, um lema pós-moderno que nem vale estender por mais linhas.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Quase-experiência de quase-morte transforma a vida de jovem belenense



O título acima é quase de jornal, mas dá todo o significado ao relato que se segue. Na véspera do ano-novo, quase as coisas se invertem e eu viro notícia de caderno policial. Calma, paraenses ávidos por mais uma notícia mórbida - não fui assaltado, linchado pela população ou atropelado por um ônibus no Entroncamento, nada disso. O fato é que quase fui atingido na cabeça por uma janela que caiu de sei lá que andar no prédio de minha tia. Não só eu, mas minha namorada, minha irmã, meu cunhado e minhas duas primas.

O objeto pontiagudo e quebradiço se espatifou a cerca de dez centímetros de nossas cabeças; quase que todo mundo leva o farelo. Quando a gente se acostuma à iminência da morte, as coisas ficam mais fáceis de assimilar - e, para quem mora em uma cidade como Belém, era de se esperar que um susto cotidiano desse não fosse gerar tamanha comoção. Mas gerou, pelo menos em mim. Repensei minha vida às vésperas do reveillon - e desta vez, sem ironia!

Enfim, vamos aos fatos: nós tínhamos acabado de chegar ao aniversário da minha tia, e, como bom núcleo jovem de família portuguesa, decidido fumar um cigarro lá fora. Era, sei lá, umas nove e pouco da noite, o céu estava todo estrelado. Nem sinal de chuva (por sinal, cadê nosso "inverno" amazônico? Hã, hã?). Acendemos o cigarro e começamos a bater papo.

Os assuntos eram vários - viagens já feitas, planos para o futuro, memórias de infância... todo mundo estava tranqüilo, sem trabalho acumulado, sem brigar feio com ninguém, sem vontade de ir ao banheiro, nada. Só com fome - e muita (lá dentro, os pais e avós já estavam atrás da gente). Ali, estavam reunidos familiares que moram em Belém, em Marabá e em Portugal, lá onde a violência (quase) não chega.

Pois bem, o tempo foi passando e, um ou dois cigarros depois, nosso círculo de bate-papo deu uma mudada normal de posição. Antes estávamos mais unidos e diante da porta; agora, todo mundo estava no meio do corredor a céu aberto, curtindo a brisa. Do nada - e quando digo "do nada", é do nada mesmo! - teve um barulho. Antes que desse para olhar pra cima, uma janela de banheiro se espatifou ao nosso lado, caindo lá do décimo sei-lá-o-quê andar.

Alguns cacos de vidro voaram nos pés da minha prima caçula, mas antes de qualquer coisa a gente saiu correndo para dentro do prédio, gritando de "puta que o pariu" para baixo. Quando olhamos para o lado de fora, vimos a dimensão da bicha: ela tinha um metro de largura, mais ou menos. E caiu a um ou dois passos de distância de mim - quem ia se foder era eu, de fato.

Nunca dei uma de ateu, mas às vezes confesso que a minha crença fica abalada em meio à rotina de trabalho no jornal - quando a gente vê tanta desgraça que parece não crer na beleza e positividade da vida. Deixei de freqüentar a Igreja por questão de hábito, mas até hoje me considero católico e acredito em Deus - por isso, cheguei à conclusão de que, se a vida é frágil, é porque há alguém apto para protegê-la ou olhar por nós, sei lá! Naquela queda de janela, alguma coisa deve ter protegido a gente. Não acredito em ventos meridionais ou ângulos de inclinação que a tenham jogado bem ao nosso lado.

Numa crônica divertidíssima que minha namorada me mostrou, a Martha Medeiros comenta sobre isso - como o acaso pode nos pregar peças e nos sacanear, tirando nossa vida enquanto temos milhares, talvez milhões de coisas a fazer nesse mundico. Naquela noite próxima ao ano novo, tudo o que tinha em mente para este ano - meu TCC, minha mudança para São Paulo com a Mayara, meu segundo emprego recém-conquistado, minha mudança de turno na faculdade, meu primeiro ano completado de trabalho - quase foi ceifado por uma porra de janela que resolveu se desprender de uma construção que só visito umas três vezes ao ano.

Conversando com a minha mãe - ah, as mães, sempre tão sábias! -, eu e minha namorada ouvimos palavras de puro empirismo de médica: "É, Mayara, quase que tu viras viúva!". Risadas à parte, a gente olhou um para o outro e pensou: por que não, né? Às vezes, mesmo em uma cidade violenta e tribal como Belém, a gente pode morrer de formas imbecis, daquelas que chegam em nossa caixa de entrada em e-mails de origem duvidosa. E isso sem nunca ter saído com os vidros do carro abertos de madrugada, sem ter pegado um atalho para a Unama da Br-316 pela Pedro Álvares Cabral, sem ter dado carona a um mendigo suspeito. Nada.

A gente toma cuidado para não entrar nas páginas de polícia, mas às vezes morre e ponto. Fazer o quê? Contra essas coisas não há segurança alguma. Naquela noite de dia 30/12/2008, quase viro noticiário policial, mas nada que a gente não supere. O ano já começou, tinha até esquecido do assunto é só lembrei dele depois de ler a crônica da Martha. E depois, com o tempo a gente passa a levar na brincadeira, né? Vou encerrar por aqui com uma reflexão que tive com um amigo. Via Google Talk, ele analisou a quase-experiência de quase-morte e disse tudo:

- Égua, bicho, mas pensa bem... levar uma janelada e ser partido ao meio em Belém é bem mais cult que levar bala na Terra Firme, não é?

- Sábias palavras!