terça-feira, 25 de agosto de 2009

Possíveis lições do jornalismo policial

É recorrente ouvir que o jornalismo policial para nada serve. Já cansei de ouvir isso - e, confesso, concordar com os argumentos mais infundados do universo, disparados por alguns colegas e conhecidos. Não só entre o pessoal da área, mas entre os próprios leitores, a editoria de Polícia é tratada como algo baixo, sanguinolento, apelativo, desumano. O motivo: a profusão de corpos explodidos, cabeças esmagadas, facadas, tiros e pauladas afins que povoam nossas páginas, telas e rádios. Não pretendo me ater a esta discussão. Queria falar um pouco de experiência pessoal: como tudo nessa vida é aprendizado e amadurecimento - e, também, obra do acaso -, fui parar neste caderno no jornal em que trabalho, logo em meu primeiro dia de volta das férias.

Na verdade, já era escalado para fazer Polícia nos plantões de sábado e domingo há algum tempo. Também já havia passado uma ou duas semanas na editoria, cobrindo as férias de colegas. Mas desde esse mês de julho é diferente. Acordo, tomo café e vou para o jornal consciente de que, sim, vou fazer ronda. Receber coordenadas de locais em que há gente morta, gente levando o farelo, gente sendo presa e prendendo mais gente. Ir às delegacias procurar desgraça e voltar puto se não houver nada para escrever sobre. Meu nome mudou de lugar na folhinha de pautas distribuída a cada dia. Fiquei amigo de PM, delegado, escrivão - de bandido, até (dia desses uns detentos me pediram cigarro... é mole?). Enfim; um "foca" enfiado num dos setores mais complicados e polêmicos de um jornal diário. Tá institucionalizado.

O que aconteceu comigo não tem nada de especial. Conheço muita gente lá do trabalho que também passou por outras editorias e, de repente, se viu jogada no tal "caderno da baixaria". Por isso, quando recebi a notícia, não fiquei triste, como muita gente pensava. Nervoso, sim, porque realmente não tinha (e não tenho) experiência na área, e, ao contrário do que uns e outros pensam, é preciso tê-la para não fazer e falar besteira à hora de escrever sobre o assunto. Mas decidi entrar na história, para aprender e conviver com gente "vivida" na área. E, em pouco mais de um mês, posso dizer que essa editoria mudou minha forma de ver nossa querida profissão.

Usos e efeitos

Por quê?, você deve estar se perguntando. Bem, porque noticiário policial é jornalismo, e jornalismo importantíssimo. Queiramos nós ou não. A verdade é que relatar desgraça - incêndio, homicídio, acidente, prisão de estuprador, linchamento, tiroteiro, protesto, barraco - tá na essência da nossa profissão. Não só na brownpress como na imprensa culta e especializada. Comecei no jornal na editoria de cultura, e sei muito bem o que significa escrever sobre assuntos maravilhosos que nem todos leem. São temas tão importantes - ou mais - que os policiais, mas é fato: eles concernem menos ao dia a dia "da Dona Maria da Terra Firme" (como diria minha chefe) do que os problemas concretos por ela enfrentada. Uma sessão especial no Líbero Luxardo, por exemplo, não tem impacto comparável à prisão de uma quadrilha responsável por praticar estelionato contra centenas de pessoas, por exemplo. Engulam: antes de pelo universo cultural, o povo se interessa pelas cagadas que envolvem sua cidade, sua rua, sua vizinhança. É um fato a se aceitar - e tentar compreender antes de fazer duras críticas à nossa tão sofrida população.

Talvez por isso a gente aprenda desde cedo que é importantíssimo saber "descrever o momento" de forma simples e concisa na matéria de Polícia - claro, sabendo o limite tênue entre a experiência pessoal e o fato relatado, senão vai todo mundo virar "repórter-notícia". É uma questão de respeito ao leitor, de prestar um serviço público a ele. É a primeira e mais importante das lições: como muita gente lê, e muita gente mal sabe ler, a gente tem que se desdobrar para falar bonito, mas de um jeitão simples, como se estivéssemos contando a história em um bar ali na esquina. Isso já havia ouvido de vários editores lá do jornal, mas passei a me cobrar mais quando mudei para o caderno. Se nas outras editorias isso já é importante, imagine em Polícia. Já ouvi relatos de gente que nem sabe ler, mas pegou o jornal só para confirmar a morte do bandido mais temido da rua por meio da foto. Juro.

Imagem + texto

Por sinal, vamos falar de foto. A Justiça do Estado gerou bastante polêmica ao determinar que os jornais deveriam parar de publicar fotos com cadáveres expostos, caveiras queimadas (lembram das fotos das meninas de Salinas?) e por aí vai. Eu achei certíssimo. E aí esbarramos em uma lição que aprendi com vários dos repórteres fotográficos lá do jornal: a foto não precisa ter baixaria para ser informativa em um caderno policial. Se mataram um figura lá no Canal São Joaquim, por exemplo, que fica perto de vias movimentadas de nossa capital como Pedro Álvares Cabral e Júlio César, não posso ter uma foto da aglomeração de populares em torno do cadáver (devidamente coberto e não identificado, lááááá ao longe) em vez de vislumbrar um olho arrancado à base de tiros de pistola ponto 40, por exemplo?

Posso - e devo. Contanto que não se exponha o cadáver, não se dê indícios de suas origens, de seu local de moradia; enfim, que sejam respeitados seus direitos de cidadão, morto, mas cidadão antes de tudo. Estamos, inclusive, cumprindo um serviço ao mostrar os locais em que os crimes transcorrem - já pararam para pensar nisso? É só fazê-lo de forma respeitosa. Portanto, mesmo trabalhando com texto, já aprendi coisas legais nessa área. Por extensão, compreendo todas as "chatices" e atos "sem noção" que nossos pobres colegas fotógrafos cometem ao tentar registrar um evento trágico. É o trabalho deles, amigo.

Relevância social

Muito longe do argumento de que "a gente tem que fazer matéria sobre o que vende" - infelizmente, já ouvi isso da boca de gente que tem décadas de redação -, tenho convicção em afirmar que o caderno de Polícia é, mais que um produto comercial, um informativo de relevância social; o repórter Dilson Pimentel, um dos mais experientes nessa editoria em Belém, já falou sobre isso numa entrevista muito boa dada à não tão boa assim revista "Troppo", de "O Liberal". Porém, deve-se ir muito além do jornalismo-porta-de-seccional. Isso significa que, mais do que pegar um Boletim de Ocorrência e torná-lo texto jornalístico, ao mesmo tempo em que distribui jornais para os escrivães e delegados, a equipe responsável pela ronda de Polícia tem de tentar repercurtir, suitar e aprofundar os acontecimentos e suas respectivas abordagens na imprensa.

Uma das formas de investir nesse sentido é justamente por meio das matérias especiais, sejam investigativas ou "de ouvir as lamentações do povão". Até porque as autoridades de segurança pública leem jornal (ou, ao menos, deveriam fazê-lo) e podem pautar suas ações a partir das denúncias e declarações postas no papel. É uma coisa que nossos impressos locais estão tentando fazer: se você duvida, pegue o jornal "Amazônia" de domingo e verá pelo menos duas páginas duplas por edição.

São matérias mais aprofundadas sobre tráfico de drogas, violência nos bairros, situação de grupos de risco e incontáveis denúncias sobre nossos sistemas carcerários, nossas delegacias, nosso reduzido efetivo policial e tudo o mais. Vai me dizer que isso é sanguinolência barata ou baixaria? A mesma coisa é feita também no "Diário do Pará", em "O Liberal" e no "Público". Claro que é algo esporádico e que precisa melhorar muito, mas já é um começo. Às vezes nos atemos ao preconceito e até deixamos de lado o caderno de Polícia, deixando-o para receber o xixi do animal de estimação. Muita gente deduz que só verá baixaria em suas páginas. Como já disse: tudo nessa vida é aprendizado. O leitor dotado de olhar crítico aprende lendo Polícia.

Conhecimento de campo

É um pouco óbvio, mas vale lembrar que nós também aprendemos, e muito, sobre a rotina e os problemas que envolvem a nossa digníssima cidade fazendo Polícia. Ainda sou "verde" nesse sentido, tem muita gente que pode falar de forma mais aprofundada sobre o assunto. Mas enfim, em meio a tanta tragédia, tantas escalas de final de semana e tantas horas extras acumuladas, percebi uma coisa: nosso olhar sobre Belém só faz se aprimorar com as benditas rondas divididas entre centro e periferia.

Quer um exemplo? Até ser posto nessa editoria com alguma regularidade, não sabia distinguir Guamá de Terra Firme. Jurunas de Cremação. Paar de Curuçambá. Aliás, nem sabia da existência deste último - só fui entender onde ficava após ver o Filipe parir umas 15 matérias especiais sobre a chacina feita pela Ronda Tática Metropolitana (Rotam) da Polícia Militar (PM) naquele bairro. Também aprendi onde ficavam as ruas, cruzamentos, como chegar à tal "zona vermelha" e sair dela (correndo, de preferência). Coisas aparentemente inúteis, mas que ajudam a gente a travar conversas sobre a situação de nossa cidade sem atropelos.

Querendo ou não, o convívio com equipes experientes (de motoristas, fotógrafos, chefes de reportagem e etc.) da imprensa diária fazem com que a gente aprenda a ver a cidade de outro jeito. Hoje saio do conforto de meu apartamento no Umarizal e sei para qual lado fica uma favela onde nem água potável tem, uma ocupação desordenada em que nem a PM entra; sei que, se descer a Quintino e a Alcindo Cacela, ruas da zona "nobre" (decadente) de Belém, vou parar num fim-de-mundo onde o tráfico é meio de subsistência e sustento de vícios alheios. Levando em consideração que vivemos em uma cidade sitiada, extremamente perigosa - muito mais que São Paulo, sabiam? É só ver nesse relatório da Organização dos Estados Íbero-Americanos Para a Educação, Ciência e Cultura que mostra Belém na 13ª posição, entre 25 capitais, das cidades com maior número de mortes para cada 100 mil habitantes -, isso não é uma questão somente de aprendizado pseudoantropológico: é uma questão de sobrevivência. Sério!

Lembro direitinho, por sinal, do dia em que me dei conta da complexidade da questão da violência em Belém: estava num plantão de domingo à noite, aquele em que nós chegamos ao jornal sem hora para sair. Era quase meia-noite, ia bater meu ponto e... apareceu um assalto com refém na Terra Firme. Mais precisamente, na rua São Domingos, próximo à passagem Nossa Senhora das Graças, um trecho ultraviolento do bairro que, conforme denunciado pela imprensa (e não necessariamente comprovado), teria se tornado alvo da ação de milícias armadas, à moda do que ocorre em cidades como o Rio de Janeiro.

Estávamos cercados de policiais. Só por isso entramos. Porque nem eles recomendam que a gente tente dar uma volta por aquelas bandas. Eram dois adolescentes, vítima e infrator: um de 14 e outro de 17 anos. O mais novo apontava um revólver ponto 38 para a cabeça do outro. Estava assaltando um barzinho nos arredores e se assustou ao avistar a polícia. Quando encarei aquela situação, pensei em duas coisas: por que diabos escolhi essa profissão? E por que diabos aquele moleque estava ali? As duas perguntas levaram a uma terceira: será que noticiar isso em um caderno de Polícia pode ajudar a solucionar o problema? Essa só pude responder agora que estou na editoria. E a resposta, caso você não tenha deduzido, é sim - dependendo da abordagem, do aprofundamento, da qualidade de apuração e do compromisso social para com o leitor. A meu ver, pelo menos.

Amadurecimento

Enfim, é capaz que haja muita discórdia em relação a essas opiniões. Muita gente vai continuar dizendo que só falo isso porque a imprensa paraense "adora uma baixaria", porque abracei a causa de uma escola contrária ao respeito aos Direitos Humanos e ao bom jornalismo. Vão dizer que ando empolgado com a editoria de Polícia (muito pelo contrário; é um desafio ter ânimo para encará-la todo dia), que resolvi puxar o saco do jornal em que trabalho, etc. e tal. Enfim, opiniões são opiniões. Aceito-as na boa.

Até porque o argumento central, aqui, é de que há um bom amadurecimento por trás disso tudo. Desde que entrei no jornal, pus na cabeça uma coisa: a gente, que entra no mercado cedo e sem praticamente nenhum conhecimento profissional adquirido, precisa passar por tudo o que é setor. Desde o "caderno da baixaria" até o que fala de poesia, teatro e música popular brasileira. Como disse o Dilson na entrevista dele, não tem área mais ou menos importante num jornal diário. O mesmo aprendizado que devo ao pessoal de Polícia devo ao povo da Cultura, de Cidades, devo a meus professores das disciplinas práticas e teóricas na universidade.

Tenho total consciência de que a gente tem muito a aprender, que não é só sabendo português que se faz um texto decente. É por isso que, sempre que posso, tento tirar dúvidas (às vezes, até com o povo da "concorrência") e tirar algo de novo de cada apuraçãozinha cotidiana que a gente faz no dia a dia. Creio que isso viabilizará um amadurecimento, tardio ou não, nessa profissão que pareço ter escolhido para o resto da vida.

5 comentários:

Filiblog disse...

Ainda acho que o caderno de polícia beira a inutilidade, na forma como é feito hoje. O objetivo é só chamar atenção pelo grotesco. Reportagens de fim de semana são exceções.

Agora q tu aprendeu a separar terra firme de guamá, jurunas de cremaçao, paar de curuçambá...já é um jornalista! uaheuaheuhauehaehua

Mayara Luma Maia Lobato disse...

é, coisas que só o jornalismo diário ensina...hehehe. Mas ainda acho que é maldade com você ficar em polícia, mas se tu quer né.. hehehehe.

te amo deemaaais!

e cuidado, goto (o que eu digo todo santo dia)!!

beijinho

Anônimo disse...

Tam vários aspectos que podem ser abordados, mas acho que o principal é que, como já comentei, vc. saiu de sua "gaiola" de ouro e caiu na real. Lembro de uma história que o Dudu contou quando uma dessas "moças de Unama" (hahahhaha) foi fazer um teste com ele na ronda de polícia. A mãe dela ligou e perguntou onde ela estava. Quando ela disse que estava num tal de PAAR, a mãe quase foi buscar a mocinha de helicóptero. É sério. Isso aconteceu. Acho que jornalismo é vocação. É querer ser. Não adianta ficar no oba oba. Tem que ir lá. Eu, que nem sou "um velho homem de imprensa", tive que aprender isso na marra. E hoje vejo que tem muita estrada pra percorrer. Admiro muitíssimo a tua coragem e a do Chanchi e, em especial, a mulherada que faz polícia (e elas são muitas). Imagino que já começaram a endurecer, mas ainda bem que isso aconteceu. Concordo com o Faraon: acho que o caderno de polícia faz onda em cima da desgraça alheia. Mas ainda assim, consigo ver um papel social neles (nas especiais mais especificamente). É por aí. Como já te disse, já vou me desculpando porque de alguma forma contribuí para esse teu crescimento forçado. Mas sabes que moras no meu coração e que nunca vais deixar de ser o meu escravo branco. Dedé

Anônimo disse...

Acho a reflexão muito pertinente. Ainda mais vinda de um amiguinho que sempre quis os cadernos culturais. (:
Acredito que seja o melhor exercício.

Só uma coisinha: Ministério Público não determina nada. Quem faz isso é a Justiça...vou colocar na minha sobre jornalismo jurídico...hehehe


beijo.


Yza.

Guto Lobato disse...

EEEEita do erro, Yza! Bem colocado, vou ajeitar heuheuheuheheuehuehueheuhe...