segunda-feira, 27 de abril de 2009

Le temps


Lembro direitinho do tempo que fazia na estrada de Belém para Salinas na semana do réveillon de 1996. Ou seria 1997? Enfim. Tinha uma nuvem imensa, amarelada, no céu típico de final de ano. Àquela época, as chuvas eram mais intensas e o "inverno" já dava seus primeiros sinais desde as luzinhas de Natal. A gente sempre passava a virada em Salinas ou na Assembleia, geralmente com toda a família reunida. Daquela vez, fomos ao balneário e tivemos azar - choveu do primeiro ao último dia. Foi isso que me marcou, creio.

Era o mesmo tipo de chuva que caiu à tarde e noite de hoje aqui em Belém, em 27 de abril de 2009. Respingos teimosos, que molharam a janela do meu carro, do meu quarto, porque eu teimei em ficar fumando. Eles me fizeram lembrar, sei lá por qual motivo, de coisas que achei por bem escrever nesse blog, só para arredar a poeira, mesmo.

Eu costumava gravar fitas cassete de 30 minutos e dois lados para a família ir ouvindo no caminho para Salinas. E também no caminho para as praias - àquela época, não tinha engarrafamento para o Atalaia... -, geralmente por volta de 10h, que era a hora que eu e meus pais gostávamos de ir (a Clarissa e a Isabela, no auge da adolescência, ficavam possessas, mas era o jeito... democracia familiar). Enfim, as fitinhas custavam uns R$ 3, mais ou menos o que custa um DVD pirata dos blockbusters mais recentes na Doca de 2009.

O papai tinha acabado de comprar aquele Ford Mondeo cor vinho - surradíssimo quando foi vendido, agora em 2005 -, e nós nos achávamos a família mais única do mundo indo para o Atalaia num importado 1.8, ouvindo sucessos da época em áudio mono. Lembro que as meninas adoravam aquelas cantoras trash da estirpe de Mariah Carey e Celine Dion, mas às vezes até que gostavam de ouvir alguma dos Beatles. Já eu gostava de U2 (o "Unforgettable fire" foi o primeiro CD deles que ouvi, a Rita tinha uma cópia), Beatles, Elton John (ihhhh...) e umas coisas de menor valor. A mamãe não tinha grandes preferências. Já o papai adorava aquelas coisas Diário-FM-às-duas-da-manhã: Credence Clearwater Revival, The Fevers, Tim Maia, Roberto Carlos.

Como que atingido por uma pontada de profissionalismo, esmerava-me naquelas gravações e acabava agradando todo mundo. Naquele 1996, passei a véspera da viagem gravando a bendita fita na sala de nosso antigo apartamento, lá em Batista Campos. Na verdade, comprei duas fitinhas virgens para que nosso repertório fosse bem variado. R$ 6. Comprei-as na lojinha do CEO, a escola em que a gente estudava. Botei, de um lado, o que gostava. Do outro, o que as meninas queriam. As do papai ficavam espalhadas pelo meio, já que ele era o que tinha de ficar acordado e ouvir tudo, no final das contas.

Lembro que começou a tocar "Pride" do U2 quando a gente passava por aquela bizarríssima plantação de pinheiros (?!?!?) em plena selva amazônica que fica logo depois de Castanhal, no meio da estrada. Chovia muito, o trânsito estava um lixo. Todo mundo dormia, menos eu e o papai, que estava dirigindo (graças a Deus, né?). Não sei por que, aquele momento teve algo de marcante e ficou na minha cabeça até hoje. O Bono berrando "What more in the name of love?" naquele carro tinha algo a ver com os pinheiros teimosamente saudáveis no clima equatorial.

Naquele feriado, lembro que nosso apartamento estava uma bagunça. Eram três quartos para três núcleos familiares: de um lado, a vovó e o vovô; do outro, Tia Sandra, Tio Carlos, Lígia e Marina; e do outro, eu, mamãe, papai, a Clarissa e a Isabela. Ninguém se arriscou a dormir na rede da sala com medo dos carapanãs e morcegos. Só um banheiro para todo mundo. A gente chegava da praia e fazia fila.

Lembro que a Isabela ficou doente de alguma coisa e só podia se alimentar tomando sorvete (hepatite? Sei lá). Aí eu ficava entornando potes de sorvete napolitano com ela - "os dois gorduchinhos". À noite, saía para passear com a mamãe em volta do prédio, para curtir a lanterna que tinha comprado e gostava de focalizar nas ruas escuras da orla do Maçarico (adorava lanternas, não me pergunte por que).

Àquela época, sei lá por que motivo, Salinas era um lugar pacato. Toda vez que tínhamos algum estresse, alguma bronca familiar coletiva, íamos para lá. Ou então quando todo mundo estava de férias. Em 1996, as duas coisas faziam sentido. Todo mundo estava de folga. Só fui saber, anos depois, que aquele ano era o começo do fim do casamento dos meus pais, eles andavam meio mal. Para mim, no entanto, nos meus imbecilíssimos sete anos de idade, era só um ano novo longe de Belém.

O réveillon foi divertidíssimo. Fomos à praia (não lembro se Atalaia ou Farol Velho), passamos a virada e mais alguns minutos por lá. Lembro que, desde aquela época, não desgrudava da mamãe por nada. Era visto até como mimado, preferidinho-cuti-cuti-protegido dela - o que, de fato, era - e gostava de ficar atrás da coitada, dando ordens nela, pedindo comida, sei lá. Foi nesse ano, creio eu, que aconteceu um episódio clássico em que mandei ela ir dormir comigo às dez da noite, sendo que ela estava jogando baralho com os amigos - e o pior: ela obedeceu.

Enfim, passamos a virada na praia. Aí veio a chuva de novo. E, junto com a chuva, mais um respingo de memória auditiva. Uma música do Fruta Quente, creio eu, uma base em acordes maiores que nem sei cantarolar. Estava encostado num cantinho da barraca e vi os fogos explodindo. Abracei todo mundo que via pela frente (sempre fui sociável) e fiquei olhando para o mar. E daí não lembro de mais nada até uns dois anos depois.

Não sei bem o motivo, mas essa viagem ignóbil fincou raízes. Ela voltou à mente hoje de noite, enquanto eu olhava o movimento da rua com a chuva. Querendo ou não, esses momentos em que a memória dá um sobressalto nos são de extremo valor. Eles trazem de volta um pouquinho do que a gente foi e nem se lembra - em meu caso, lembrou de uma infância que aos poucos vai ficando longínqua e surreal. Tanto nas imagens quanto nos sons, na essência mesmo.

Faz uns três anos que não vou a Salinas - fui ano passado a trabalho, mas prefiro nem contar. Não consigo arrumar tempo nem um motivo bom para perder finais de semana por lá. A cidade é um caos, vive lotada de playboys bêbados dirigindo Hiluxes do papai com placas de Paragominas, Marabá e Tailândia. As praias fedem a cerveja, mijo e churrasco de gato. A maré sobe demais, os carros se entalam. Os arrombadores fazem plantão diante de predinhos bucólicos e pimbudos como o meu.

Falta chuva, o calor está bem pior, mesmo com a brisa da maré. O forró-rala-coxa e o tecnobrega conseguem ser piores que o pagode, a axé music e o pop internacional sofrível dos anos 1990. E, principalmente: o nosso apartamento não é o mesmo. Não tem mais o clima caótico, cada um vive sua vida numa boa e passa por lá quando as férias do trabalho permitem. Ainda é nosso lar, mas não tem alguns elementos essenciais que não vale a pena listar. Nada que envolva a unidade familiar ou algo do tipo; é uma questão de época, e só.

Sabe aquele clichê de que a gente não é o mesmo de um minuto atrás? Pois é: a vida é um ciclo, mas às vezes a gente muda o ponto da circunferência. Gira em torno de outros eixos, enfim. Àquela época o eixo era outro, bem mais fácil, bem mais simples. As fitinhas de 30 minutos e dois lados, certamente, eram mais divertidas, embora mais rústicas, que o CD, o DVD e o MP4 que está carregando a bateria no computador de 250 GB neste momento. O Ford Mondeo era mais possante que o Celta vagabundo em que passo pelo menos 1/6 de meu dia dirigindo no trânsito nojento de Belém (sempre correndo). Talvez por isso, por tudo isso, não vá lembrar das coisas por que passo hoje com a mesma intensidade daqui a alguns anos. É tudo rápido demais, um lema pós-moderno que nem vale estender por mais linhas.