quinta-feira, 24 de novembro de 2005

Silvia


Tudo começa com a libido.Essa voluptuosa força que empurra os dois corpos,jovens,atraentes e inexperientes,em direção à cama.A loucura do momento é tamanha que detalhes "ínfimos",como a proteção,são esquecidos.Se entregam ao prazer,e o namoro de dois meses começa a tomar o molde de uma relação madura.
Passam-se dois meses.Os dois,claro,já estão devidamente terminados e nem se olham mais.Já é notícia em todo o morro do término dos dois.Ele já voltou a "trabalhar",e ela já está com outro,esse mais velho e mais esperto do que nunca.Largou os estudos e os pais para ir morar com ele,todos a criticam.Na sua consciência,apenas um desejo:o de dar uma vida digna para si...e para quem estava por vir.
A silueta não enganava mais:estava grávida.Desesperos à parte,estava decidida a levar a gravidez adiante.Seus pais a aconselhavam a abortar,suas amigas se afastavam gradativamente.Seu novo par parecia ser o único a aceitar a situação.Ele pensava que o filho era dele,e,se Deus fosse justo,o bebê nasceria moreno,e ele continuaria achando.Ela não podia acreditar que se via sozinha em situação tão linda como a de ser mãe!E a injustiça desse mundo com ela não acabaria aí.
Novamente,o morro assume sua forma de formigueiro humano,e as fofocas giram pelo distrito onde morava o ex-casal.Ele,traficante temido no lugar,já imaginava que o bebê era produto daquela noite que passaram juntos.O novo namorado dela era,coincidentemente,outro homem do serviço e inimigo mortal do futuro pai biológico.Ele olhava por através da janela de sua casa e via ela e o homem atravessando a rua.Apalpava sua arma,mas ainda não faria nada."Esperarei o momento certo",pensou,enquanto guardava numa caixa fotografias dela.
Os meses passavam,e ela já sentia os chutinhos da criança.Aqueles aparentemente bobos momentos de mãe e filho eram,na verdade,marcos na vida dela,que vinham como alívio em meio ao caos em que vivia.Tiroteios,mortes,chacinas,sangue,morro...pensava em fugir daquela favela quando seu bebê nascesse,e tentaria levar consigo seu namorado.Caso ele não quisesse largar a vida,ela iria mesmo assim.Sonhava em colocar o filho numa escola,arrumar um emprego e conseguir sua casa.Tinha visto na tevê que a prefeitura estava alojando famílias em um novo residencial para ex-favelados...era sua chance.
Ele já não queria mais fazer mal:os planos dela haviam chegado aos seus ouvidos,e,de repente,uma saudade,aquela solidão esganiçada,que corroe por dentro,tão comum aos homens ditos de ferro,veio.A dor parecia prever o que iria acontecer com ela,mas ele guardou para si,mais uma vez,o que sentia.Iria espera o filho nascer para conversar com ela.
Mas,como toda história envolvendo jovens sonhadores de classe média baixa,a história da menina que sonhava em mudar de vida terminou em tragédia.Em trabalho de parto,Silvinha morreu,deixando a criança antes mesmo de ver seu rosto.Um menino,nasceu branco,a cara do pai.Enfezado,o novo namorado foi entregá-lo ao ex,que já havia guardado sua arma numa gaveta,tamanho seu arrependimento de nunca ter dito para ela...que ainda a amava.Segurou-se por tanto tempo para não dar o braço a torcer,e agora tinha apenas aquele seu clonezinho,que representava uma história inacabada,como companhia no morro.Havia se tornado uma espécie de vilão na região,teria "a largado quando soube que estava grávida",estava marcado para morrer.Mas o medo não o atingia.O que o atingia era imaginar seu filho sozinho no mundo.Decidiu jogar tudo para o ar,largar o crime,reconstruir sua vida.Decidiu levar nas costas apenas o seu filho,uma muda de roupa,algumas memórias e - por que não - um pouco de esperança.
Seguiu morro abaixo.A metrópole o esperava de braços abertos.

José Augusto Mendes Lobato 25/11/05

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