domingo, 25 de dezembro de 2005

O Pintor - Parte I (Um Par)

Seu Jorge era um pintor de paisagens. Já era velhinho, aposentado. Tinha uma cabeça muito boa para sua idade, e talento lhe sobrava, quando se tratava de pintar. Criava lindas cataratas, maravilhosas mesas de jantar em castelos faraônicos, grandes serras de neve, palácios parisienses...tudo da janela de seu barraco, situado no encontro do sertão com um riachinho que secava de dois em dois dias. Não chovia, mas as noites autuninas parisienses eram parte obrigatória dos seus quadros mais sombrios. Ganhava seus trocados vendendo suas obras para eventuais caminhoneiros que por ali passavam. Deixava-as lá fora, na beira da estrada de piçarra, de onde todos pudessem ver a peculiaridade que era aquele senhor desenhando o primeiro mundo no meio do Nordeste semi-árido. Ele sorria, com os dentes amarelados à mostra, quando ofereciam mais do que cobrava: significava que gostavam da obra. Reconhecimento! E assim a vida de Seu Jorge seguiu por muito tempo, sustentando sua mulher e seus doze filhos.

Belo dia, Seu Jorge se acordou e decidiu ir "dar um passeio". Avisou à família, que o questionou imediatamente, intrigada. Mas apenas respondeu que ia vender quadros na cidade grande e voltava em um mês. Catou uns nacos de carne seca para a viagem, juntou suas roupas numa trouxa e saiu, vibrante, pela porta da frente. No fundo, sabia que não ia vender seus quadros em lugar algum, nem sequer os carregou consigo. Levou apenas Juquinha, seu filho mais novo, dezesseis anos recém-completados ("para me guiar, já que mal enxergo!", retrucou à mulher, que hesitava em mandar o menino com ele), suas tintas, um pouco de dinheiro e a trouxa já citada. Sorria, desdentado mesmo, acenando animado para a família que observava ele e Juquinha sumirem em meio ao sol escaldante do sertão. Um par sozinho, caminhando sobre o solo cascudo, o pai encorajando o filho, o filho ansioso e hesitante, não entendendo nada.

- Meu pai, aonde que nóis tamo indo agora? O sinhô sabe o caminho? - perguntou Juquinha.

- Fica tranquilo, meu filho. Teu pai conhece essas terras muito mais do que tua mãe pensa.

- Mas nós num vamo pra cidade grande não? O sinhô tava mentindo,num tava?

O velho Jorge sorriu de novo, os poucos dentes que sobravam agora reluzindo alegremente sob o céu límpido, sem uma nuvem sequer a cobrir o sol sertanejo.

- É, meu filho, eu menti. Vou te mostrar tudo o que já desenhei. Nós vamo sem rumo, achar a origem do que tem nessa cabeça caduca do teu pai. E vô pintar muito mais do que em toda minha vida. E vais conhecer o mundão que tem fora dessa redoma de calor em que a gente vive enterrado. Vais ver que esse mundão é mais bunito que isso aqui.

- Mas meu pai...e a mãe? E os irmãos? Eles vão ficar bem, meu pai? Vão comer o quê?

- Relaxa que a aposentadoria chega pra eles. Nós é que vamo passar por dificuldade agora meu filho. Mas tem fé no teu pai. - E sorriu de novo, os pés calejados nem sentindo o calor da terra. Juquinha retribuiu o sorriso, nervoso, ainda pensando no que estavam a fazer.

Não tardou e os dois desapareceram de vez no horizonte, arrancando mais uns suspiros dos doze restantes na casa. Naquela mesma tarde, uma única florzinha mirrada, de cor amarela, brotou do solo rachado, bem na frente da casa de terra batida.

José Augusto Mendes Lobato - 26/12/05

Um comentário:

Adalberto Fernandes disse...

Sempre gostei de histórias com velhos. Gosto do termo pele calejada. Pessoas têm medo da idade por causa da perda da beleza, mas acho lindo o ganho de experiência, de vivência. Tu falas de um assunto que sempre persegue meus textos. A liberdade e a procura por alguém que não sei quem sou, ou a imagem cá dentro, mas que nunca vi, a razão que sabes que existe, mas não sabe seus contornos. Tudo existe meu amigo, até alguém provar o contrário! espero ansioso que mais flores nasçam nessa seca.