domingo, 25 de dezembro de 2005

O Pintor - Parte II (O Velho e o Moço)

Jorge e seu filho, Juquinha, agora já estavam caminhando sob a luz avermelhada do pôr-do-sol. O calor ainda teimava. A sede já os machucava, e um pequeno cantil era tudo que tinham até atingir a próxima vila. O pintor falou que era hora deles pararem para descansar, beber e comer um pouco antes de continuarem a caminhada. Juquinha prontamente aceitou, os pés ardidos se largando no chão, acompanhados pelo corpo raquítico. O pai também se deixou largar no chão. Catando uns pedacinhos da carne e misturando-os com farinha, Seu Jorge serviu a ele e Juquinha. Os dois comiam vorazmente, enquanto o sol lá em cima ia sumindo e dando lugar àquela lua graúda e pálida de sempre. Mesmo assim, o pai se animou e gritou pro filho:

- Olha Juca, que lua mais bunita! Nós vamo andar debaixo dela, isso chega a ser honra! Bom sinal, meu filho!

Mas Juquinha parecia apático. Estava enfiando os nacos de carne lentamente na boca, o corpo encolhido, como se quisesse estar de volta no ventre da mãe. Olhou para cima, depois tornou a olhar para o chão cascudo e retrucou.

- Meu pai, o que a gente tá fazendo aqui...

- Ô meu filho, tens que aprender a admirar as pequenas coisas! Vai me dizer bem que é normal essa luona aí, toda empinada pra gente. Mas nunca reparaste que ela tá aí, se exibindo faz anos pra ti, e mal percebes ela? Essas coisas que a gente julga pequenas e nem repara na beleza, são elas que regem toda nossa vida, meu filho!

- Meu pai, tem coisa melhor pra gente...

E foi interrompido. O pai fez sinal de que ele devia se silenciar e sorriu marotamente para o garoto, como que dando sinais de que ia contar uma historieta. O menino prontamente desamarrou a cara e, curioso, se empinou na direção do pai para ouvi-lo melhor. Seu Jorge era um exímio contador de histórias, fosse nos seus quadros, fosse no boca-a-boca. Fez Juquinha dormir contando histórias fantásticas, improvisadas. Era Lampião casando com Cleópatra, era rainha Elizabete andando de camelo no meio da Antártida. E haja dar impulso para os sonhos dos seus filhos assim, alimentando a imaginação deles com a liberdade que nunca teriam ali, naquele fim de mundo que era o sertão nordestino. Juquinha fez sinal para o pai, que prontamente começou.

- Sabe, meu filho, teu pai, quando tinha tua idade, morava mais pro sul, trabalhava numa terra de gente rica. Gente boa aquela, eu ganhava salário - o que era raro na época - pra trabalhar na lavoura, e tinha abrigo na própria casa, junto com os ricos. Família de portugueses, aquela falava engraçado. Se enrolava até para pedir uma água! Pois bem, como ia dizendo, na tua idade, já trabalhava, olha só. Aí tinha uma moça que cortava cana comigo. Tinha uns treze anos, ela. Era órfã, os pais tinham morrido em briga por terra lá pro norte. O patrão adotou ela, e ela trabalhava por vontade própria. Tinha uma voz linda. Ficava cantando no meio da plantação, entoava um monte de música bunita enquanto ajudava as outras moças com o corte. O pessoal odiava ela, porque ela era a privilegiada do patrão, sabe? Ia só para apreciar a terra - justo essa terra feia! - brincar com a plantação, correr livre, sujando o vestidinho rendado de terra seca. Mas eu não. Eu adorava aquela menina, era uma princesinha naquele antro de macho. Meus primeiros quadros surgiram tudo ali, arranhando no caule da cana aquele rosto, muitas vezes até me cortando com o teçado, de tanto encarar ela e rabiscar sem olhar. Acho que ela pensava que teu pai era doido varrido, Juquinha!

Pois é. Um belo dia, ela parou de aparecer por ali, e os outros caras começaram a comemorar que a moleca que ficava cantando alto tinha enjoado da terra. Logo perceberam que o trabalho podia ser muito mais tedioso do que parecia, e o diabo era que eles teimavam em dizer que a menina tinha morrido. Eu nunca engoli essas lorota de sertão, e tu bem sabe como teu pai é, meu filho. Semana depois, levantei mais cedo e fui na parte da casa que ela morava, e minha maior surpresa foi me encontrar com o patrão chorando na beira da cama.

A menina linda agora tava coberta por uma pilha de lençol grosso, o rostinho pálido encolhido, suando e tremendo. Um padre na beira da cama rezava aquelas rezas de defunto, e tudo que eu fiz foi dar um grito e correr pra beira da cama. Minha mão suja alcançou aquele rosto, e pela primeira vez senti o que era ela olhar pra mim, meu filho. Justo ali, ela morrendo num quarto escuro, juntei força e deixei escapar um "eu te amo" tão estridente que até o patrão me olhou assustado. Comecei a falar tudo: da voz dela que fazia o trabalho ser prazeroso ,da beleza dela correndo pelo campo sujando as roupas rendadas, de tudo. Ela tocou meu rosto - a mão dela tava quente e tremia, lembro como se fosse agora - e me disse que sabia quem eu era. E assim, sem ao menos me dizer mais nada caiu prum lado da cama e morreu.

Doeu, meu filho, doeu. Eu tive que ver ela ir embora e deixar aquela plantação de cana vazia, silenciosa. Só dava pra ouvir agora o barulho das teçadadas nas plantas e, vez ou outra, um grito vindo do meio do mato. Meu trabalho ficou muito pior, e olha que não "só" perdi o canto dela. Perdi também meu primeiro amor assim, sem sequer poder trocar um papo que fosse, sem ao menos escrever uma cartinha. Teu pai tem esses olhos fracos e velhos, Juquinha, porque Deus já tá me dando sinal de que já vivi muito nessa vida. O pouco tempo que me resta, vou te contar minha vida assim, sentado no meio do sertão, enquanto a gente anda, atrás das paisagens que desenho tanto e nunca vi.

- Mas, meu pai, qual a relação dessa história tua com a lua aí? - falou com certa vergonha de não entender a moral do que o pai lhe contara.

- Meu Juquinha...ainda és muito novo, mal começaste a contar teus passos nesse mundo! Ainda vais aprender muito até entender, de cara, a moral das histórias que esse teu pai doido te conta. Quando digo pra ti apreciar essa luona aí, apreciar as poucas flores que nascem no meio dessa terra ferrada, é justamente pra te fazer perceber que a natureza tem seus caprichos, mas sabe ser justa. Até mesmo aqui, a gente tando nessa vida fumada, tem coisa bunita que, com vontade, dá pra enxergar. Não nasceste aqui por ser azarado, ou por não merecer ver a beleza do mundo lá fora, esse dos meus quadros. Tenta ouvir, debaixo do barulho dos teus passos e da gritaria do mundo, um canto lindo, um canto que podes ajudar a entoar com teu caráter bondoso e com o amor que podes semear, mesmo na seca. O mundo, meu filho, é um quadro que a gente vai pintando na manha, vez ou outra borrando e depois remendando assim, num toque de pincel. Não vou te ditar as regras, mas vai tentando esboçar os teus sonhos para, um dia, tê-los feitos...coisa que teu pai aqui não fez ainda .É por isso que tou aqui contigo, andando por aí: quero ver o que idealizei por tanto tempo, e quero ver tudo isso contigo. Não dizem que o pai passa exemplo bom pro filho, usando até mesmo os ruins pra dizer o que não se deve fazer?Pois é Juquinha: vou te ensinar a ser um moço sonhador, mas que vai fazer o quadro virar filme antes que ele borre de vez, como foi comigo e com a menina. O velho aqui vai te mostrar o lado bom e o ruim de se sonhar.

Juquinha não entendeu muita coisa, mas ficou feliz por saber que estava ouvindo a voz mais sábia que já tinha aparecido na sua frente, quando viu os olhos dos pais se encherem de lágrimas de felicidade quando recebeu um forte abraço do filho. Às vezes nem precisa se entender o recado:basta sentir o carinho de quem o dá com a melhor das intenções. Agora estava gostando da idéia de passear por aí com o paizão, e a fome e a sede eram esquecidas lentamente.

Sentindo-se até culpado, Juquinha encarou a luona, deitado no chão de peito pro ar. Ela parecia mais linda do que nunca. Era surreal. Seu brilho azulado era refletido nos olhos do pai, que agora ficavam, satisfeitos, a observar seu filho contemplar o céu. Seu Jorge puxou, então, o seu caderninho da maleta e começou a desenhar o garoto deitado no meio do sertão nordestino, a fitar o céu límpido e a lua cobrirem a escuridão com aquele brilho azulado .Em menos de um dia, Seu Jorge já tinha um quadro novo. Mas aquele, como tanto queria, era tão real que quase saltava da folha. Seu filho atônito estava ali, diante dele, e no papel, ao mesmo tempo. As duas faces da arte finalmente juntas...realidade e idealização. Sua jornada começara com o pé direito.

E, como num piscar de olhos, os dois dormiram lá mesmo. O velho assobiando e desenhando tudo que tinha a seu redor, o moço sonhando, perdido entre estrelas, luas gigantes e mocinhas de vestido sujo, cantando por entre ramos de cana.

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