terça-feira, 3 de janeiro de 2006

Ravina


Me acordei de súbito,tomado por uma intensa falta de ar,e com um grito histérico ressoando nos ouvidos.O corpo estava deitado,rijo,num piso gelado.O ar levemente penetrou nos pulmões,a visão foi,pouco a pouco,voltando a banhar de luz o ambiente ao meu redor conforme os olhos abriam.Levantei-me,encontrando dificuldade para sustentar nas pernas frágeis o corpo.Parecia ter desaprendido a andar de tão trêmulo.Mal me lembrava qual tinha sido a última vez que tinha estado consciente.Sem um chão,uma última memória antes do aparentemente longo sono,estava à deriva,e restava andar cegamente até descobrir que lugar era aquele.
Era um longo túnel vertical.As paredes de pedra pareciam estar prestes a ceder,e aquela luz que me banhava vinha de uma fina abertura,situada no topo.O grito que ouvira estava ecoando,ainda,lá em cima,e o que pareciam ser sussurros ecoavam ali embaixo,nas paredes,ricocheteando nelas e penetrando nos meus ouvidos.Tentei responder,mas em vão.
- Alô!Alguém está aí?
- Você não,você não...NÃO!
- O que?
- ...NÃO!Não assim...
As vozes,gritando coisas sem sentido lá fora,eram muito familiares,mas não conseguia lembrar a quem pertenciam.Uma forte dor de cabeça veio do nada,se unindo aos gritos presos no túnel para aumentar minha confusão...
Tentei,por horas,gritar,pedir por socorro,mas tudo o que ouvia eram as vozes,cada vez menos nítidas,gritarem.O desespero crescia dentro de mim.Lágrimas escorriam do meu rosto,mas não as sentia deslizarem...apenas sabia que estavam caindo.Os gritos se mesclavam...
- Mas o que...fazer?Vocês não entendem...
- Não...ele...deixa....pode....que...saia....
Já os reconhecia.Era minha família!E o que estariam fazendo lá em cima,gritando,enquanto eu estava ali,preso naquele buraco?Uma chuva,grossa e torrencial,começou a cair,mas o céu lá em cima permanecia assustadoramente pálido.Era uma luz artificial.Os gritos eram cada vez menos nítidos...
- Mas...fazer,senhora? - sussurrava uma voz pausada e desconhecida.
- Salv...meu....deixa...cadê.........ele...vivo....filho!
- PAI!
Era o meu pai.O sangue subiu à cabeça,desesperadas tentativas de escalar a parede de pedras lisas arrancavam de mim o que sobrava de força.Meu coração e minha cabeça doíam intensamente enquanto gritava por ele,sentindo as pontadas incessantes no peito.Os gritos iam ganhando mais forma enquanto subia,e a luz pálida e morna lá de cima me cegava.Um cheiro forte ia tomando conta do ar...as vozes se dissimulavam em meio ao vento que brotava da ravina...gotas de sangue saíam das mãos cortadas pelas pedras...a dor ia se dissipando lentamente...
Comecei a perder os sentidos novamente.Um súbito desequilíbrio me levou de volta para o chão,a queda me torturando em dor,o piso gélido me perfurando aos poucos,me engolindo.A última coisa que vi fora uma sombra,lá em cima,cortar os raios de luz com os pés...uma pessoa passeava,em círculos,na beira do abismo,sem olhar para baixo...
Os olhos foram se fechando...
Mais um grito me arrancou do sono.As pontadas e a dor nas mãos haviam sumido,e uma lufada de ar puro me banhou o rosto.A luz,agora bem em cima de mim,ia revelando,em volta,o mundo que se rematerializava.Pulsando em meu peito,um coração forte,lento,que saltava cada vez mais rápido conforme os rostos ao meu redor iam se aproximando,com os sorrisos estampados.Um abraço intenso me tirou da superfície fofa em que agora estava deitado.Mãos familiares,conhecidas,acolhedoras,me cercavam,lágrimas escorrendo pela minha pele.E eu as sentia.
Estava de volta.

José Augusto Mendes Lobato 03/01/06

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Ano novo.Uma nova roupagem para o mesmo doente terminal.

Um comentário:

Emídio disse...

Gostei mto deste texto novo.
Claro q a inspiração dele não tem nada a ver, mas ele tem tudo a ver com o momento q eu to passando agora.
Talvez o final não, talvez o final ainda nem exista, mas tdo bem...
Mto bom mesmo Guto!