terça-feira, 6 de dezembro de 2005

A Dança do Tempo

Sem dúvidas,o tempo é um cara enigmático.Dia desses estava andando pela rua,distraído,a pensar nele.Claro,a minha cabeça se entupiu de clichês,e,enquanto os varria - odeio lugares-comuns,até nos meus pensamentos - vinham pequenas memórias que nada tinham a ver com o que estava contemplando.Por uma fração de segundo,me vi parado diante de um relógio velho que mofava na vitrine de uma loja.Olha só,finge estar velho nesse ponteiros,mas o que vemos ali não é ele.Ali está sua representação convencional e objetiva,tal qual as estátuas dos santos.Ele nos acompanha,nos vigia a olhos de águia,silencioso.E,quando menos esperamos,nos traga no infinito e cá estamos de volta,passados os ciclos,prontos para abrirmos novos horizontes em nossas vidas.

Ele me pregou uma peça,esse sacana.Dois dias atrás,pensava que ainda era um moleque.Ainda tinha nas palavras obscenas e nas atitudes inconformadas meu abrigo.Todos ao meu redor também se divertiam com suas imaturidades à flor da pele,sob o álibi de serem...jovens!Éramos o "futuro da nação"?Que se dane!Ser um futuro não me era motivo de orgulho,queria mesmo era curtir o momento.Minhas notas na escola eram decentes,de fato;levava na barriga as séries e provas que ia fazendo,sempre escorado numa tal inteligência que diziam que tinha.E o tempo lá,passando,me olhando,à espera do meu primeiro tropeço.À espera do meu despertar.

Eis então que chega o fim do ensino médio,o terceiro ano.Minha mente já estava condicionada a estudar,as pressões já vinham de todos os lados."É o ano de sua vida!","Dedique-se aos estudos para não passar o próximo ano num cursinho!"...estava ainda calado,confiando no passo que,firme,agora seguia em direção ao fim da minha festinha.Eu não sabia que estava acabando.Não sabia o que estava acabando.Nem ao menos imaginava em que posição estava na minha vida.Bem diferente do tempo que agora caminhava em sua trajetória circular fixa dentro do relógio,deslizando os ponteiros por trás da vitrine encardida.

Meu ciclo de sentimentos,esses opostos ao menos romântico peso do vestibular que se aproximava,se partiu.Dois caminhos cresceram dessas cinzas,e tornei a trilhar sozinho,carregando nas costas um pouquinho de esperança de que,daqueles meses de primavera,haveriam muitas boas memórias para se guardar.Olhei para o horizonte agora linear,sutil,pronto para me receber com toda minha rebeldia,energia e força de vontade.O tempo então surge diante de mim,e fica inerte,me olhando fixo,sem dizer uma única palavra.Ele sabia o que sentiria ao vê-lo.Desespero,choque,desilusão.Estava me encarando diante do espelho.

Aquela face jovem já tinha barba.Usava óculos,e tinha um olhar mais penetrante.Já havia conteúdo naquela cabecinha que insistia em cobrir com um manto de ingenuidade.Do que queria fugir?Já não era mais tão novo,podia até me confundir com as pessoas de maleta que passavam ao meu lado na rua.Um mundo,sim,estava de braços abertos para mim,chegava o que alguns chamariam de "o começo do meio" da minha vida.Já era hora de decidir que caminho seguir,em que vertente do conhecimento iria me aprofundar.O coração começou a bater mais rápido.A pulsação arrítmica,como minha vida,levava meus sentimentos em uma montanha russa de empolgações,frustrações e descobertas.Até que tornei a me olhar no espelho,dessa vez sem reparar no físico - que agora,já não era tão perfeito assim.Olhei para dentro de mim.O relógio ainda batendo.

Me vi de perto.Vi um garoto que sofria calado,que tinha nos medos e nas mentiras que criava a base de suas atitudes.Vi nos meus olhos,uma infinidade de coisas a se dizer,contidas pelo mesmo medo que me empurrava em direção ao perigo do meu instinto.Ouvi o tique-taque que regia as horas em meu coração parar,como que para me dizer que aquele momento de descoberta era um lapso em meio ao infinito.Vi um ponteiro apontado para o ódio que alimentava,outro para as mentiras,e as horas se dividiam em eternidades de confusão e desespero,quase sempre cobertas pelo sorriso falso que forçava a exibir.

Tirei as roupas.Vi a mim mesmo despido,sem qualquer força ou desejo para me guiar novamente por através dos obstáculos.Descobri que os tinha criado sem querer,entre um gole e outro de conhaque,entre uma hora e outra de lisergia.Nu,estava diante da visão que evitava encarar.O moleque já crescido,já maduro e pronto para pisar no chão com os pés descalços.O moleque que tinha que cuspir seus pensamentos,o moleque que nem mais moleque era,o moleque que não era mais o "futuro da nação",e sim a nação: o moleque que virara homem.

É,o tempo,além de enigmático,é o pai de todos os homens,é o cara encarregado de tirar as vendas de nossos olhos e nos pôr frente e frente com o que somos perante nós mesmos.Minha noção vaga de tempo e espaço foi-se embora com um sopro,deixando minhas costas leves,prontas a carregar o peso de meu destino. E,como num passo de mágica,acabou-se o terceiro letivo.Passei,passei.Aprovado no que queria,como queria e aonde queria.Ficam para trás as memórias,que deixo novamente nas mãos do tempo.Alguns vêm comigo,outros ficam para trás,à espera de uma nova chance de se fazerem ouvidos.Meu passo é firme como o andar dos ponteiros.Caminho rumo a algo que nem sei se será eterno enquanto durar.Algo que nem sei se é o certo para mim.Mas fiz o que queria.Me larguei das presilhas e agora corro livre em direção não ao que finjo querer,mas ao que quero.

Quem diria.Eu,que me julgava tão disposto a lutar pela liberdade,me vi livre sem mover um dedo.

E,agora,encaro a representação mais literal do senhor de nosso destino.O entendo perfeitamente,sei o que se passa em cada peça que,dentro dele,ganha vida.Já o conheço,esse relógio mofado,que emite seu som abafado do outro lado da vitrine encardida.A dança das horas,há tempos,queria ser,por mim e por todos,entendida.Ao menos em mim ela já ganhou seu espaço.Os ponteiros que não se cruzam são o passado e o futuro,as horas são o presente que agora vivo.Os ponteiros que pouco se cruzam são como as pessoas que,ao meu lado,caminham,sem sequer olhar para mim.Nunca me senti tão feliz por estar sozinho,tão sozinho com meu tempo.
Tão forte e decidido,andando de mãos dadas comigo mesmo.

José Augusto Mendes Lobato - 06/12/05

Um comentário:

Luiz Mário Brotherhood disse...

eras guto, ótimo texto cara
um dos que eu mais gostei =)

parabéns =D
[]'s