quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Carmen


Ora,chega então o fim de novembro.Acabam aqui as mulheres e seus devaneios,sonhos e projeções - apenas aqui,é claro! - , mudarei meu foco para outra direção.Enquanto planejava o que dizer hoje,me lembrei que estava deixando para trás a mais indescritível mulher de minha vida,talvez por não saber o que falar...como esquecer-me ia de ti,Carmen?
Estou de acordo:mereces muito mais que uma mísera narrativa.Mereces algo mais rebuscado do que um tiroteio de idéias desmilinguidas,meu amor.Ainda me lembro bem do nosso último diálogo,na porta do bordel,que com maestria,inicia minha tentativa de homenagear-te:
- Carmen,o que posso te dar além de meu dinheiro e meu corpo sem alma?Meu coração te pede uma resposta!
- Mereço de ti a mais suja das vestes,Álvaro;no entanto,jamais as vestiria enquanto continuasses aí,preso nesse teu terno,nesse teu sorriso fútil.Já me despi das aparências,sou o que muitos chamam de uma "vagabuna dissimulada"...e você?O que é,além de um cliente a mais em minha lista?Não consegues me sintetizar em tua boca,em teu diálogo de mesa de bar,não é?Não sabes falar de mim como um ser humano,e sim como um orifício dos mais nobres desta cidade!Acha que este colar de brilhantes me dará uma companhia através das noites?Acha que terei,nesse apartamento lindo que ostento,sequer um par de mãos para entrelaçar enquanto queimo em febre?Não,Álvaro,e isso que não entendes.Falta em ti a perspectiva de ver que,nesse mundo que abraças ao meu lado,tens que assumir o que és e o que desejas,não o que convém a ti ser.
-A dor me convém,Carmen.Estar ao teu lado me convém.Abandonaria tudo,jogaria meus filhos,minha mulher,enfim,minha vida no lixo,só para te ter ao meu lado em cada passo do tempo.
-E quem és tu para falar de tempo?Achas que o tempo só existe para ti?O passar das horas também já me rasgou o veludo dessas paredes.A espera por ti já me rendeu muitas cicatrizes nos pulsos.
-A mesma dor que sentistes se refletia em meu peito!!!
-Mentira!Teu peito não pertence a mim,nem mesmo tu percebes disso?Já lutei por ti,já arrumei para ti toda uma situação para que se livrasse daquela sanguessuga,e tudo o que fizestes foi fingir não me conhecer!Tornei-me a insanidade em forma humana para todos,a cidade já ri de mim.As ruas são o palco de minha humilhação,e você,Álvaro,foi o primeiro a se levantar e puxar as palmas.Agora me pede um "bis"?
-Peço a ti uma segunda chance,uma noite de conversa que seja!Por favor,entrega-te a mim uma última vez!Te provarei que desses meus olhos posso derramar lágrimas por ti.E posso lutar por ti.
-Os dias não lhe agradam.
-O que?
-Entre tantas noites,qual foi a vez que nos combinamos de nos encontrarmos durante o dia?
-Por favor,Carmen!Dá a mim uma última chance!Deixa eu te tirar desta vida.
Nessa hora,lembro que um breve segundo de paz e silêncio se fez naquela rua.
-Esta vida é minha,Álvaro.Não podes me tirar de onde me achaste,a não ser que se liberte comigo.
E entrastes,esmurrando a porta.Tua patroa me olhou com desdém e fechou as janelas da mansão.
Meu passo cansado daquela noite agora é minha caligrafia falha desta carta que te escrevo,esta breve e pomposa homenagem que chegará a ti com uma quantidade considerável de dinheiro.Não,não seja impulsiva:espere que eu ainda não terminei.
O álcool já confunde minhas idéias,Carmen.Mas nunca,em minha vida,me senti tão disposto a me humilhar como agora,em nome de ti.Em nome dos meus resíduos que perduram em tua memória,e em nome do teu cheiro,que agora exala em cada lençol deste apartamento fétido em que vivo,o mesmo que julgaste lindo e que usaste por essa década de mentiras.Queria apenas que me ouvisse,não tenho esperanças de que volte.Queria que olhasses em tua volta,visse tuas companhias e o ambiente em que vives.Queria que reconhecesses quem está do teu lado e quem fica do teu lado.Queria que as memórias,uma última vez,te dopassem,para que a navalha pudesse penetrar doce,lisa,calma em teu corpo.Queria estar em outro lugar que não fosse dentro da tua vida,tão disposto a nos sacrificar em nome de um amor impossível.Meu desejo era ter forças de te esquartejar de forma mais ardente,no meio da rua,e,como disseste naquela vez,ser o primeiro a levantar e te aplaudir.Levantaria a lâmina para o céu,e teu sangue pingaria,formoso e purificado,no asfalto jovem.Mas não.Estou aqui,do teu lado,apenas eu,teu eterno michê,teu único amor,ostentando no peito um coração que já definha.O veneno que corre pelas minhas veias está em tua boca,que permanecerá calada por toda a eternidade.Olhe em volta novamente.Estranhas o silêncio,Carmen?São as pessoas fingindo não te ouvir.São as gargalhadas por trás das sombras,daqueles que te traíram e te humilharam a cada segundo da tua breve caminhada terrena.Eu estou,e sempre estive,com você aqui.Agora sou o responsável pela poesia de nossos últimos segundos nessa terra.Selando nosso pacto de sangue,farei eternas tuas palavras:
Esta vida é sua.Não posso tirá-la de você sem tirar a minha.
O sangue cairá de nós dois,então.
Iremos juntos ao inferno.

José Augusto Mendes Lobato 30/11/05

Um comentário:

Luiz Mário Brotherhood disse...

fala gutão!
e rapa, tão ótimos os textos!
cada um com o final mais surpreendente que o outro! hehe =D

parabéns!
[]'ss