Bateu a porta, encostou-se nela e se deixou escorrer até o chão, inexpressivo, como costumava fazer quando o sentido da vida lhe parecia escapar por entre os dedos. Apalpou os bolsos da calça encharcada de suor e viu que o celular havia ficado consigo. Compulsivo, abriu a agenda e viu todos os contatos; naturalmente, tinham vários amigos em comum. A tela do aparelho estava rachada; sinal de descuido. No plano de fundo, uma foto dos dois, rindo, largados nus sobre a cama.
Precisava voltar à sala. Olhou-se no espelho, secou o rosto e trocou de roupa. Parte de seu corpo doía, mas precisava disfarçar o andar cansado. Ao chegar lá, deparou-se com a habitual cara de paisagem da mulher. Estava junto às crianças. Sentia-se observado, vigiado, punido pelos pequenos olhos azuis que o seguiam pela casa. Não suportava aquilo. Mas sentou-se à mesa, e, como se nada de estranho houvesse ocorrido, pediu-lhe um prato.
Foi quando percebeu que oito anos de sua vida haviam se passado. Mas tudo estava lá, como sempre: a comida requentada, o apartamento cedido pela empresa, o ambiente corporativo de quinta categoria, a sensação de que não havia muito para fazer após sair do trabalho. Continuava absolutamente sozinho; e, ao contrário do que lhe havia sugerido o garoto petulante que o assaltou anos atrás, naquele mesmo bairro, naquela mesma maldita cidade, não aprendeu a gostar mais da vida. Seu prazer era destruí-la.
Resignado e sem apetite algum, jantou – talvez para tirar o gosto amargo da boca. Os filhos, um a um, levantaram-se da mesa e foram pros quartos. Somente aquela maldita mulher continuava ali, fitando-o. Chegou a puxar assunto, mas não tinha paciência para responder. A meia-luz da sala pode tê-lo enganado, mas chegou a ver seus olhos marejados após alguns minutos. Levantou-se e foi para o quarto.
Continuava sem alma; um flanêur sem propósito algum, como o pai. Infeliz desgraçado, que se valeu do erro da própria esposa para vingá-lo na mesma moeda – com os mesmos recursos. Vingança imbecil, mas que se revelou prazerosa. Não sentia aquilo há anos. Podia ser algo bom, diferente. Num rompante de coragem, largou o prato sujo sobre a mesa, vestiu a melhor roupa, buscou o celular, bateu a porta de casa e pegou o carro. Saiu em disparada rumo à marginal.
Tinha um celular para devolver.
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