sexta-feira, 20 de abril de 2007

Cotidiano

Belo dia, ele acordou com uma presença estranha ao seu lado. Há anos não sentia a respiração de alguém batendo em sua nuca, ou mesmo dedos entrelaçados aos seus por debaixo do lençol. Eram cerca de quatro da manhã, e, lá fora, alguns bêbados gritavam para o nada enquanto entornavam doses de cachaça no bar do Aldo. Ele precisava acordar lá pelas 5, estaria na fábrica às sete e ah!, se um dia chegasse atrasado. Nem que os metrôs parassem, nem que aquela São Paulo ufânica e fumacenta explodisse em um atentado megalômano, nem que acordasse preso em algum quartel militar; ele batia ponto às sete, e produzia latarias de carros até as seis da tarde. Sem direito a réplica.

Com o rosto virado para a parede, ainda pensando no dia cansativo que teria pela frente, lembrou que alguém - ainda - dormia ao seu lado. Mas como, como diabos aquela pessoa fora parar ali? Tudo o que lembra é que saíra com os amigos algumas horas antes, tomara algumas cervejas e, por volta de uma da manhã, já dormia sereno. Já havia acontecido isso algumas vezes, mas... ao menos ele lembrava do sexo, da gritaria que incomodava os vizinhos, do ranger dos assoalhos e paredes e dentes encardidos. Principalmente, recordava do aroma das dezenas de mulheres fáceis com as quais se deleitava toda primeira sexta-feira do mês - quando o salário permitia. Daquela vez, não havia cheiro, não sentia-se cansado dos movimentos, não estava suado. Sentia apenas aquela presença, peso a mais no colchão seboso, vez ou outra mexendo-se e tossindo de leve.

Estava tão assustado que o sol começava a se insinuar na janela do outro lado, e ele permanecia fingindo dormir. Eram quase seis! Dali a pouco teria que levantar, e que fosse o que Deus quisesse. Se fosse uma mulher feia, desconversaria com um bilhetinho deixado na mesa da sala; se fosse aquela droga de viúva carente do apartamento ao lado, chutaria para fora mesmo! Pelo toque das mãos, parecia ser gorda. A respiração era um pouco forte, provavelmente uma lavadeira fumante ou algo assim. O problema dos bêbados era justamente esse: o de ignorar completamente o juízo estético, vulgo bom-senso. Mas o radinho despertador seria sua redenção... a música-tema de todas as manhãs, Veloso, Gil ou Chico Buarque, quando a censura permitia, tocaria dali a uns dez minutos! E o ser dorminhoco ao seu lado ia acordar, querendo beijos calientes e mais uma foda antes do trabalho. Não dava tempo; melhor levantar logo, Josival!

Levantou. Ainda olhando para a parede, caminhou na ponta dos pés até a porta do quarto e, coração acelerado, virou-se para o recinto tipicamente proletário da década de 60. Uma cama, uma mesinha cheia de contas a pagar e um pôster do Chico escondido atrás da tevê. O lençol cobria quase que totalmente a pessoa deitada. Como ela era grande! Ainda tentando manter o silêncio fúnebre, foi até a beira da cama e puxou o lençol com toda a cautela possível, essa que todo brasileiro tinha nas horas difíceis. E viu. E o radinho tocou.

"Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã..."

- O que é isso, caralho?!?

Deu um grito, chutou a armação da cama, deu um soco na cara do seu Aldo e correu de pijama para as ruas. E nunca mais voltou p´ra casa.

6 comentários:

Anônimo disse...

MARAVILHOSO!

Anônimo disse...

tás cada vez melhor. nao me canso de dizer isso!

Mayara Luma Maia Lobato disse...

ameiii amor.. muito bom! hauahuahua

:**

Lívia Mendes disse...

uhaiahuhauah
adoro o jeito que das esse tom cômico aos textos que parecem serios!
ameiiiiiiiiiiiiiiiii

ahh... valeuzaaaaaaaaao as palabras, gutito! vou estudar mesmo, que é pra ser bom assim que nem vcs, meus jornalistas! =)

Anônimo disse...

corre e vai ver a ultima da nilde!
nao perde! heuheuheuhue

Leo Nóvoa disse...

Eita caraleo Guto!
Esse conto eh um alerta pros sábados!
AUHEuhae
Só me lembrou o tal porteiro.
AEiuaE

abraços