"É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira..."
Psiquiatras afirmam que o frio é um clima introspectivo por natureza. Incita a reflexão, a melancolia, o existencialismo egocêntrico e algumas frescurinhas mais. É o clima da razão, por assim dizer. A Europa, com seus floquinhos de neve e roupas de frio, sempre foi berço da filosofia e das grandes revoluções de mentalidade pelas quais a gente passou. O que está abaixo da linha do Equador... é, é calor. E é pouco pensamento e muita ação.
Eu sei, parece implicância. Mas não é, vou tentar lhes explicar melhor. Já é provado que as condições climáticas afetam nosso comportamento, até demais. Dia desses, me peguei conversando com um amigo sobre essa afirmação dos psiquiatras; a conclusão que tiramos é de revirar os olhos. O calor, enquanto antítese do tal "clima filosófico", é ambiente de extroversão, de fervor corporal, de paixão, ação e primariedade. Encaixa perfeitamente na percepção que temos atualmente da estrutura do mundo. A Europa, fonte da filosofia, antropologia, sociologia, fenomenologia, lógica, metafísica, das ciências exatas, humanas, biológicas e o diabo a quatro que venha da inteligência; versus a América do Sul, fonte de mão-de-obra barata, matéria-prima, morenas tesudas e música popular brasileira. Humanos versus humanóides.
O ambiente em que a gente vive favorece isso tudo. A história que a gente carrega nas costas, de colonização, extrativismo e dependência social e política, só reafirma nosso cantinho na civilização. Primatas que se penduram em cipós e comem (sim, comem) açaí. Que tocam fogo na floresta e se matam por terra. Que têm um presidente semi-analfabeto e um caderno policial nos jornais. Oh yeah, nós somos uns merdas... perdão a parte que lhes toca. E vivemos no calor... o tal clima da "felicidade", que se opõe à frieza dos europeus, o fervor que produz(iria) um povo caloroso, receptivo, otimista e sorridente - com dentes amarelados e barriga vazia. Explorado pelo mundo e motivo de chacota nas rodinhas de conversa.
Realmente, aqui no Brasil, especialmente no Norte, a gente personifica os versos do Tom. A gente passa o final do ano sofrendo com um calor estafante, correndo no meio-dia debaixo do que parece ser o bafo do diabo... e chega na tal "época de chuva" sofrendo com um calor ainda pior, o da evaporação da água no asfalto e do solzinho safado que se insinua por trás das nuvens nubladas. No Nordeste, pior ainda: o calor racha o chão, que diga as cabeças dos coitados que lá vivem. Sudeste e Sul são nossa redenção - mas não esqueça, lá já existe chuva ácida e as temperaturas beiram os 40 graus no verão. É complicado ter veia filosófica em meio à vida corrida e abafada que a gente leva; só nos resta correr, correr o dia inteiro pra ver se alcança o nível de vida dos friorentos.
Despedi-me do amigo, desliguei o computador e olhei pela janela. Um sol esturricante banhava a rua lá embaixo: dava até para ver aquelas distorções no ar típicas de estrada, causadas pelo calor! E depois querem que a gente consiga pensar direito debaixo desse sol... filosofia é coisa de viado, enfiado debaixo de cobertas francesas com uma garrafa de vinho tinto na mão. A gente é cachaça, é dança, trabalho braçal e açaí com farinha - canseira e conversa ribeira até demais, Tom. E não são três meses de chuvisco às duas da tarde, cada vez mais rarefeitos devido ao so-called aquecimento global, que nos vão fazer ser mais reflexivos e menos parasitas do pensamento europeu-ocidental. Rendamo-nos à cultura do fervor amazônida.