segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Luiza*



Quando se deu conta, estava dando risada sem motivo aparente na mesa do barzinho, em algum lugar entre o Soho, Boa Vista e o sítio em que passava férias com a avó. Todos a fitavam, meio assustados. Voltou à tona depois de um sacolejo do namorado, um inglês típico, bobão e muito bem-sucedido que havia conhecido na fila do elevador do teatro, algumas semanas antes. Que diabos foi isso?, perguntou-lhe. Minimizou, disse que havia perdido o fio da meada da conversa, só isso.

O mais estranho era que falavam da morte de um grande amigo seu, atropelado algumas semanas antes enquanto distribuía panfletos turísticos perto da London Bridge. Percebeu que aquilo foi o que realmente lhe tirou o equilíbrio, o foco. Já morava ali há seis anos, mas a companhia do amigo – um gay inveterado, que não se sentia à vontade para ser quem era até fugir do Brasil e do pai militar – era a única coisa que a mantinha de pé, que a fazia engolir em seco a ideia de não ter mais família. Como poderia estar rindo de sua morte? Onde estava sua cabeça? Era o que o pessoal da mesa também se perguntava.

Não era a primeira vez que apresentava sinais de loucura. Já tinha tido alguns bons surtos desde os tempos de Roraima – quando aquele estado pequeno, provinciano e pouco desenvolvido lhe fazia arrancar os cabelos, pensar em dar fim à própria vida, enfiar-se dentro de uma geladeira, querendo a um só tempo morrer e fugir do calor lancinante das tardes de domingo. Os pais a haviam internado algumas vezes, chegaram a acreditar que tinha esquizofrenia. Mas, curiosamente, sua inteligência e capacidade e fazer amigos permaneciam intactas ao atravessar a adolescência.

Chegou à universidade – a primeira da família a consegui-lo – e teve um bom histórico, apesar das preocupações que, vez ou outra, fazia sua família passar. Experimentou algumas drogas, namorou homens e mulheres que pareciam saídos de lugar nenhum, desapareceu de casa por dias, semanas; sabia-se e se sentia profundamente instável, tanto que, ao pegar o diploma de Biologia em mãos e ser convidada a seguir carreira na pesquisa, largou tudo e decidiu trabalhar em uma livraria na periferia de Londres. Semanas antes de se mudar, os pais e a avó morreram em um incêndio no sítio. Estava há dias sem vê-los. E decidiu ver a si mesma a uns bons quilômetros de distância dali, onde a linha do Equador não estivesse sobre sua cabeça e a solidão tivesse – vá lá – justificativa.

A vontade de rir, agora se lembrou, veio por conta de umas imagens que lhe vieram à mente. Sempre as imagens; os sinais de que sua cabeça não estava tão boa quanto seu psiquiatra, um velho inglês barrigudo que fumava enquanto a atendia, acreditava. Ela e o amigo gay, juntos, seminus, largados na grama fumando um baseado. Um rapaz alto, mal encarado, aproximando-se. Os dois rindo para ele, depois seguindo-o, depois os três transando em um beco úmido e quente na periferia. Em seguida, viu a si mesma chegando à livraria atrasada, desgrenhada e com um gosto de cigarro e sexo nos lábios. Aquilo havia acontecido?

Sentiu uma pontada na cabeça e pediu aos amigos para que a levassem ao hospital. Era sempre essa sequência: primeiro, alguma memória bizarra com o amigo morto, depois uma crise de riso, depois dores horríveis na nuca, o desespero e a perda de consciência. Vomitou na porta do bar e mudou de ideia, disse que preferia ir para casa, e a pé. Deixou o namorado com os amigos, sem se despedir. No caminho, teve a impressão de estar sendo seguida, gritou o nome de alguns autores obscuros da literatura holandesa para uma adolescente que atravessava a rua, admirou as ruas iluminadas de Natal e se deixou rodopiar e cair no chão, duas quadras antes de chegar ao destino. Novamente, rindo sozinha.

Sentiu como se as costas caíssem sobre um pântano, gostoso, macio e bolorento. Chovia forte – que horas havia começado? –, a rua estava vazia. Arrancou a blusa, deixou os seios ao relento, meteu as mãos por baixo da saia e começou a se masturbar, mecanicamente, como se fosse um hábito noturno típico. Estar ali parecia muito confortável, passaria o resto da vida naquela cena, se pudesse. Cada vez mais, as imagens que seus olhos tocavam pareciam partes de um filme, e dos mais sem nexo a que já tinha assistido. 

Certa hora, começou a gritar em português o nome da ex-namorada quarentona de Boa Vista. E da mãe. E do pai. Pensou estar deitada na grama do sítio, cercada dos cachorros e com o cheiro de chuva equatorial invadindo suas narinas. Sentiu um cheiro forte de farofa queimada, resquício das tardes na cozinha com as primas adolescentes; lembrou-se do laboratório encardido da faculdade, do nariz adunco de um professor, do rosto rosado e convidativo de seu chefe na livraria, um grego que parecia saído de um porta-retrato. Já não sabia onde estava, mal lembrava seu nome, sua profissão ou onde tinha estado quinze minutos atrás. Dali a alguns minutos – ou seriam horas? –, uma senhora sentou ao seu lado, pegou um celular e começou a gritar, em um inconfundível inglês londrino, que havia uma emergência. A velhinha apalpou sua cabeça, com olhar caridoso – e, nessa hora, sentiu um peso enorme caindo sobre seus ombros. Como se aquelas mãos macias e pequenas acariciassem o medo.

Foi aí que, enfim, caiu em si. O tumor crescia mais rápido do que a sensação de morte que lhe cercava há dois anos.

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* Em tempo: esse texto é o primeiro de uma série que eu e a Mayara vamos tocar num projeto paralelo, que fica no blog Em Trânsito. As postagens serão por lá. Visitem! :)

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