quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Parte II


Agora você fica quietinho e faz tudo o que eu mandar, disse-lhe, de um jeito meio afetado, sussurrando. Pra que suspirar no meu ouvido desse jeito?, pensou, revirando os olhos. Estavam no meio da avenida 23 de Maio, às 17h30; nem que gritasse com um megafone em mãos as pessoas, hermeticamente fechadas em seus veículos no engarrafamento, ouviriam – ou se importariam. Refletiu sobre o dia anterior e chegou à conclusão de que aquilo só podia ser punição. Não divina, porque nunca acreditou nestes misticismos; estava, provavelmente, pagando por ter quebrado a ordem do mundo numa orgia alcoólica em plena terça-feira de agosto.

Olhou ao redor; à frente e atrás, tudo o que via era um sem-número de veículos e ônibus lotados, parados, sem muita alternativa além de esperar. Ninguém buzinava, à exceção dos motoqueiros que passavam a 80 km/h por entre as faixas, histéricos como de praxe. Era uma paisagem surreal, que inspirava certa admiração pelos motoristas, mas também agoniava. Sempre teve fobia de lugares fechados – ou de não conseguir escapar rápido deles, no caso de alguma necessidade urgente. Fugiu do túnel Ayrton Senna porque não suporta ficar parado no trânsito debaixo da terra, inalando monóxido; agora, via o céu nublado da noite de inverno e o movimento de pedestres, mas se sentia mais acorrentado que nunca.

E, me diz uma coisa, quando você comprou esse carro?, perguntou-lhe. Não sabia responder; a empresa é que tinha arrumado o automóvel, com direito a motorista durante a manhã, após uma rápida reunião no dia anterior. Só sabia que era um modelo novo: tinha um GPS – essencial para rodar naquela monstruosidade urbana –, um computador de bordo e TV digital para todos os passageiros. Era daqueles sedãs impessoais de quarentões de classe média alta, cheirando a couro novo e plástico e pronto para pegar 240 km/h em uma estrada. E pensar que, na semana anterior, rodava preguiçosamente num conversível à beira-mar com aquela maldita mulher...

Levou uma coronhada por não ter respondido em tempo hábil. O cano do revólver havia acertado em cheio o local em que havia um corte, ainda em cicatrização, resultado de uma queda na noite anterior. Mas não gritou, apenas disse-lhe que seu patrão era o dono do veículo. Tirou o sangue com as mãos. Sempre ouviu e leu por aí que, nessas horas, o melhor a fazer é ser o menos emotivo possível, mesmo diante das piores ameaças. Não era muito difícil para ele; esconder a dor física, talvez, mas sempre teve que fazê-lo quando era mais jovem, para evitar dar trabalho aos outros.

Sob ordens, saiu da avenida e dobrou na Indianópolis, onde o trânsito corria mais tranquilo. Ah, aquele lugar fazia lembrar sua última passagem por São Paulo... morava num casarão bonito em uma das transversais, junto a uns cinco outros executivos; dividiam os cômodos e, às vezes, as companhias. Mesmo assim, foi o lugar mais próximo de uma residência em que já dormiu na vida. Mesmo os travestis que povoavam o bairro à noite faziam parte do cenário; tinham lá seu charme, e ainda serviam para uma ou outra aventura em uma noite de tédio e solidão extremos.

O propósito de seguir aquele caminho, ao invés de fazer o retorno e seguir para casa, ainda seria descoberto. Sentindo-se em um filme pelo que ia fazer – e prestes a pagar caro pela intromissão –, virou-se para o rapaz franzino, certamente menor de 18 anos de idade, e comentou: essa região aqui é alto padrão, viu, acho que você consegue coisa melhor descendo aqui só com o dinheiro que eu tenho... A resposta foi uma risada tímida do garoto, seguida de uma nova ordem: segue direto, filho da mãe, e não abre mais a boca.

Tinha idade para ser seu filho, certamente. Mas isso não lhe fazia pensar a respeito de desigualdades socioeconômicas – estava tão preocupado com a miséria urbana quanto uma prostituta com a própria reputação. Até porque não queria aquele desdentado torrando seu dinheiro junto aos coleguinhas de periferia. Refletiu, na verdade, sobre a ideia de ter um filho. Sabe-se lá como, nunca teve qualquer objeção a pôr uma criança no mundo. Não precisava nem conhecer a mulher que o iria parir; bastava pagar a barriga de aluguel e montar o quarto da criança, com tudo do bom e do melhor. Só que a rotina não lhe dava tempo para isso. Aliás, não lhe dava tempo sequer para repensar a própria rotina.

Pelo GPS, viu que estavam se aproximando de uma favela da região. A baixada ficava incrustada entre as mansões de alto padrão e era, em geral, habitada por gente trabalhadora, que pagava os impostos e desfrutava da proximidade com o centro para chegar mais rápido ao local de trabalho. Seu mais novo motorista, por sinal, morava lá. Pensou: se esse moleque me largar aqui, posso ir atrás da casa dele, e ficou um pouco mais tranquilo. Dobrou umas cinco vezes e desceu duas ladeiras, em baixa velocidade e com os vidros levantados, para não despertar suspeita dos vigias particulares. Parou em um beco que dava acesso a uma ruela de barracos e foi ordenado a descer do carro.

A expressão no rosto do garoto havia mudado. Agora, parecia mais velho, agressivo e cheio de si; os olhos estavam vidrados, fixos e arregalados. Parecia estar diante de um amigo, com quem faria uma brincadeira de mau gosto. Deduziu equivocadamente que, no caminho, ele havia usado alguma droga sem que percebesse. Sem cerimônias, o jovem – que, pouco a pouco, lhe parecia mais íntimo – apontou o revólver e disparou um tiro em sua direção.

Caiu no chão, gritando, e começou a chorar e implorar para não morrer. Para si, guardava a sensação de que, caso fosse assassinado ali mesmo, ninguém sentiria sua falta – e isso incomodou mais que qualquer zumbido de bala passando próximo a sua cabeça. Com a mesma voz rouca e a mesma cara de quem tudo sabia sobre a vida de sua vítima, o garoto devolveu cada objeto roubado de dentro do veículo, ajudou-o a se levantar e lhe disse no ouvido: só quero que você aprenda a gostar mais da vida, tio. Rindo, largou o revólver no chão, virou de costas e entrou no único casarão de dois andares que havia na rua.

Um comentário:

Camila Barbalho disse...

caralho.




sem mais.