quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Parte I


O primeiro dia no novo apartamento havia sido tedioso. Chegaram alguns conhecidos carregando bebida, cigarros, maconha e algumas drogas de maior porte; lá pelas 21h, já havia desconhecidos mexendo na geladeira, à procura de algo para comer – que certamente não havia por lá. Outros, mais íntimos, dormiam o sono dos bêbados nos sofás e móveis do flat chique, situado numa ruela de paralelepípedos do Brooklin e montado às pressas após sua transferência para mais uma cidade de negócios. Outros vomitavam pela janela – que droga, pensou, já vou fazer inimizade com os vizinhos.

Tinha 45 anos, mas levava uma vida de 20; só que isso era mais produto das circunstâncias que de sua mentalidade. O início da carreira – jamais interrompida – numa grande multinacional fez dele um homem sem ligações emocionais consistentes: era um cara de pontes aéreas, aeroportos e fast-food; um morador de várias cidades e, por extensão, íntimo de todos os centros corporativos do país. Mas não conhecia ninguém além de si e dos amigos que fazia em suas temporadas fixas; era tão solitário quanto toda aquela gente que tão rápido se apegara a ele em sua primeira noite em São Paulo.

A família nunca foi de grandes laços; o pai, um ricaço que hoje já estava no quarto casamento, largou a mãe grávida aos 18 anos. Ela, por sua vez, estudou, conseguiu ficar rica e deu uma boa criação ao filho único – e o ensinou a ser um cara independente, “mas não desses que fazem filhos e largam a ex-namorada no mundo”. Com medo de repetir a história do pai, não se deixou apegar a ninguém; parafraseando um autor que lera durante um de seus MBAs, “quanto mais profundas e densas suas ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus riscos”. Era, enfim, a peça perfeita no tabuleiro de sua empresa, que o requisitava, semestralmente, em cidades tão diversas quanto Rio Branco, São Paulo, Caxias do Sul e João Pessoa. Sem ninguém para dar satisfação, a vida de galho em galho era mais fácil – e compreensível.

Será que um dia enjoo disso?, perguntou a si mesmo, aproveitando a vista suntuosa da varanda gourmet de seu mais novo lar-doce-lar – dava para a região da avenida Berrini, habitat natural por excelência. São Paulo nunca foi uma queridinha na sua lista, é verdade. Embora divertida e 24 horas, sempre foi organizada demais para ele. E as pessoas, embora educadas, demoravam a entender seu jeitão “fácil” de ser por ali; tanto que todos os amigos que ali estavam eram de outros países. Europeus são frios? Quem fala isso não conhece os brasileiros, resmungou, sozinho, apoiado no parapeito. Sentia-se peixe fora d´água até no maior dos oceanos.

Mas aquela vez era diferente. No mês anterior, deixou para trás uma mulher de caráter tão dúbio quanto o seu. Lembrava-lhe a mãe; bela, sexy, negra de olhos amendoados e voz rouca. Calma e doce, mas misteriosa. Não sabia de onde vinha, onde morava, se era solteira ou tinha filhos – só a encontrava, nessa sequência, em eventos corporativos e motéis de quinta categoria. Com ela, aprendeu a admirar a arquitetura kitsch das suítes temáticas, a apreciar a culinária de microondas dos serviços de quarto e, até, a dormir na mesma cama com alguém. Era igual a ele em tudo – até no apreço por dinheiro e conveniência. Tanto que, quando cansou, desapareceu, deixando-lhe algumas compras parceladas no cartão de crédito. Foi a primeira vez que pediu aos chefes para mudar de cidade.

De repente, um convidado do open house o trouxe de volta à terra; gritou, em inglês, que haviam interfonado da portaria, pedindo para baixar o som. Só então percebeu que era uma terça-feira. Inocente terça-feira. Àquela manhã, saiu de casa bem cedo – de motorista – para comprar uns móveis na Tok & Stok, depois foi à empresa, (re)conheceu alguns colegas de trabalho, almoçou sozinho num restaurante veggie com vista para a Ponte Estaiada. E depois voltou para casa para, mais uma vez, não aguentar o silêncio e correr atrás de companhia. Foi aí que sentou numa mesa de bar a um quarteirão de casa e chamou uns vinte colegas de escritório para começar a noite ali e, em seguida, destruir sua nem conquistada reputação no condomínio.

Pegou o celular no quarto e voltou para a varanda. Ligou para a mãe, que não via há meses – anos? – e de quem sentiu uma estranha saudade, mas ela não atendeu. Vai ver trocou de número, pensou, não seria estranho se não avisasse nada. Afinal, era sua mentora nesse jeitão sem amarras de viver a vida. Mas não se conteve; a raiva, aquela que só uma semana de trabalho, de reuniões, cafezinhos e conference calls era capaz de resolver, veio e subiu à cabeça, e com tudo. Voltou-se aos convidados e os expulsou, um a um, sem motivo aparente. Gritou, jogou as bedidas e os bêbados no hall, bateu a porta com força, apoiou as costas nela e se deixou escorrer até o chão, lentamente. Nem choro, nem riso. Estava estático, sem emoções nem razão para mudar de estado. Era líquido havia 45 anos.

(Inspiração no Bauman...)

2 comentários:

Mayara Luma Maia Lobato disse...

Nossa, Bauman choraria lendo isso! hauahuahauhaua.

Mt bom, amor, adorei!!

Clarissa disse...

Nossa!! Muito bom!