sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Contos Burgueses I


Nunca sei contra o que conspiro. Só sei que o faço, e com prazer. São muitos planos mirabolantes, muitas vítimas, sabes como é, mais uma ou menos uma... são todas iguais perante minhas idéias! Dia desses caminhava pelas ruas da cidade, a pensar em ti. Não o pude evitar. Recordei das noites de sexo, das promessas, da inconstância, das brigas que vieram crescendo e piorando, das ameaças ... e tudo o que pude fazer por mim - e por ti - foi rir. Gargalhar loucamente, até deixar os ecos formarem uma sinfonia em meio às casas abandonadas da Cidade Velha.

Eu sei, eu não te matei. E teu corpo jaz, agora, desfalecido em um indistinto canal, daqueles que o governo põe uma placa dizendo que a macrodrenagem irá chegar (e ela nunca chega); deves estar boiando agora, contemplando as nuances do plástico negro que te separa da vida. Ah, e que vida, minha querida. Se pensas que eu não o sabia, estás muito enganada: este homem com quem dormias conhecia seus domínios. De uma rastejante mulher da vida a uma conhecida socialite da burguesia amazônida... estás bem, não é, meu amor?!? Ainda mais se eu - justo eu! - não sabia de tal transição.

Pois é, eu já o sei. E agora que já estás desperta, recomendo que coloques o nariz no furo que fiz para ti no topo da sacola. Respira! Sente o ar fétido do nosso esgoto, que penetra nos narizes dos suburbanos e periféricos. Esbalda-te em tanta nojeira e relembra das nossas noites de gala, regadas a vinho, ao som de um grupo de free-jazz e de uma conversa fútil qualquer... são opostos de inigualável semelhança. Quantos dali não te comeram, no escuro do Barroco, em uma esquina da Riachuelo, em um banquinho da Praça da República, sob o turvo calor dos trópicos! Enquanto isso, eu trabalhava em busca do amor de minha vida, o qual anos depois descobri ser isso... grandes surpresas essas. Surpresas que pedem uma reação igualmente surpreendente.

Por isso que sequer encostei o dedo em ti, meu amor. Se te deixei descansar até a morte, foi para permitir à minha esposa... a uma traidora, a uma vagabunda de boceta arrombada, a uma filha-da-puta com cara de anjo, um pouco de redenção, um naco de decência após décadas de mentira e traição. Tua pele permanece alva, teu sangue corre normalmente pelas artérias, teus membros ainda se movem... e teu peito bate, bate rápido por saber o pouco que lhe resta, ao ler cada linha desta calorosa despedida. Ah: não sentirás fome enquanto estiver viva, pois comemos muito bem na última ceia. Por sinal, cozinhas muito bem, não sei se já havia te dito.

São duas horas de vida que restam. É o tempo entre onde estás e o triturador do esgoto central; entre meu carro e o barranco ao final da estrada que percorro a 120 por hora, ao som de uma banda de free-jazz qualquer. A gente se vê, meu amor, na sangrenta existência post-mortem dos nascidos filhos-da-puta neste mundo de imprestáveis. A gente se vê, no mais real e dantesco dos infernos.


José Augusto Mendes Lobato

2 comentários:

Anônimo disse...

...e que vingança essa!!
imagino tu escrevendo esse texto, em um bloco de notas do PC, com três janelas minimizadas: em uma, o site do Diário do Pará. Na outra, um site de contos pornográficos. Na outra, alguma rádio online rolando free-jazz.

Acha que cabe uma continuação aí?

Ou um reencontro com a esposa, viva?
(afinal, o que seria mais dantescamente infernal que a realidade do próprio encontro?)

Anônimo disse...

ah, e eu não pude resistir ao post anterior... (fui ver esse filme no cinema)
comentei lá também.

abraço