sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Sobre Tarantino, Albergues e Decadência Humana


Reuniãozinha de amigos em uma quinta-feira modorrenta. Papo vai, papo vem, pizza, nuggets e Coca-Cola, e finalmente conseguimos sentar e assistir ao filme que havíamos escolhido para aquela noite: a nova empreitada do cineasta Quentin Tarantino (em conjunto com Eli Roth) nos cinemas, um comentadíssimo thriller com toques de realidade, sucesso de crítica e bilheteria. Na locadora, a dúvida residia entre alugar “O Albergue”, ou então o novo filme da série “Verão Passado”. Acabamos ficando com o primeiro, por todo o valor pseudointelectual que um filme com o dedo do criador de “Pulp Fiction” possui entre jovens universitários. Voila.

Nos primeiros minutos, o sentimento era de choque: Quentin havia se rendido a Hollywood?!? Num lugarejo da Eslováquia, três jovens se hospedam em um paradisíaco albergue, indicado por um viajante de trem. Mulheres nuas, spas eróticos, mochileiros drogaditos, um desaparecido, clima de suspense e mistério... o filme desenvolve-se numa sucessão de clichês hollywoodianos. Até que, lá pelos seus 40 minutos, Tarantino deixa de lado a frescura, e aflora suas raízes mais encardidas e baixas. Uma terrorífica indústria xenófoba se revela nos arredores do albergue, e apenas um dos garotos sobrevive ao sadismo brutal de um clube de caçadores de forasteiros, descobrindo que a locação era apenas uma fachada para algo bem maior.

Após mais 1h de pura carnificina e desespero, o filme acaba sem quê nem porquê, com um jovem sem dois dedos voltando para casa de trem após matar um dos chefes do tal clube. E é isso aí, acabou-se a superprodução de Tarantino e Roth. Nota zero para os caras, pela violência desmedida e sem propósito, e pelo toque americanizado que a trama tomou, com sua pobreza estética e apelação visual, fosse nas fogosas mochileiras, fosse nos membros humanos empilhados nos porões da Eslováquia. Mas o filme, confesso, me deixou fascinado, no pior sentido da expressão. E, vá lá, me rendeu uma reflexão nada americanizada sobre o corpo e a mente humanos... e sobre o mundo em que a gente, teimosamente, se arrasta.

O sadismo e a brutalidade já haviam sido abordados em outras "superproduções" do cinema, como “O Silêncio dos Inocentes” e “Jogos Mortais”. Muito embora apenas o primeiro tenha seu brilho, sendo o último tão decadente quanto “O Albergue”, o filme apresentado por Tarantino possui, por trás das óbvias apostas mercadológicas dele e de Roth, um indecifrável fator atrativo para a espécie humana: a barbárie. A loucura e a sordidez atingem um estado tão catastrófico em “O Albergue”, que o espectador não mais consegue sensibilizar-se com as torturas praticadas contra os inocentes. Resta a ele ir em grupos de amigos ao cinema (ou locar o DVD) e ficar rindo ou chorando, tal qual sanguinários, assistir de camarote algo que lhes alimenta o espírito. Sim, porque há algo de muito humano na desumanidade dos caçadores de gente. Há uma espiritualidade intrínseca na arte do cinema, e esta está gritando para ser ouvida em desastres pós-modernos da estirpe de “O Albergue”.

Confesso, em nome de boa parte do público que foi ver este filme, que tantos corpos empilhados, olhos derretidos e seios fartos à mostra possuem seu sentido próprio dentro de uma produção tão lamacenta, e é isso que a torna um “clássico do século XXI”, pronto para desbancar thrillers e liderar o pódio das preferências do público adolescente da atualidade, notoriamente atraído pela sanguinolência. Não sou adolescente nem sádico, portanto não recomendarei este filme para ninguém, nem mesmo para um condenado à cadeira elétrica: ninguém merece ver tanta crueldade, mesmo que goste de vê-la – e sinta nojo disso. Mas também não me peçam para falar mal deliberadamente do filme: para mim, o paradoxo é válido, e se há alguma reflexão que devemos fazer sobre a nossa própria deprimência, sobre a nossa própria decadência, essa reflexão floresce em meio à cagada de “O Albergue”.

Pessoas doentes produzem filmes doentes? Talvez. Um mundo doente venera um filme doente? Com certeza. Tarantino e Roth, vocês podem ter passado longe do mediano com este filme, mas ganharam seu espaço na história do cinema por pontuar, com precisão, o momento onde ele passou a cuspir na nossa cara o mundo que fomentamos em séculos de barbárie. O mundo de carnificina, xenofobia, demência e luxúria, que cresce nos porões e ensaia sua investida contra nossa mentalidade hipócrita. Um controverso parabéns a vocês.

José Augusto Mendes Lobato 29/12/06

4 comentários:

Ricardo Evandro Martins disse...

Guto!
Já sabes escreves muito bem!
Gostei da tua posição paradoxal, mas o que eu gostei mesmo, foi da ligação que fizeste entre o freakshow, o espetáculo carnifício, com a pós-modernidade, ou seja, o filme, os personagens, são os frutyos da bomba de hiroshima, das guerras mundiais, dos escandalos pedófilos da igreja católica!
Parabéns ae!
Estou até pensando sobre o fundo metaforico da nacionalidade americana e japonesa de alguns personagens!

David Carneiro disse...

Eu não ví nem verei esse filme. Eu estou num momento em que morro de medo de sentir perda de tempo. Um antídoto anti-melancolia ou anti-nostalgia? Talvez. Antes assistia esses filmes porque adorava falr mal deles. Hoje nem isso. RSRSRS. Boa reflexão guto! Pelo menos tenho alguém para falr mal deles por mim. Abraços!

henrique disse...

tarantino -> sentem-no numa cadeira, abram seus olhos, dêem-lhe uma injeção e obriguem-no a ver seus próprios filmes. Talvez ele consiga reintegrar-se à sociedade.

Anônimo disse...

vendo o título nas últimas postagens, não pude evitar a curiosidade em ler o texto, sobre este filme que fui assistir no cinema...
concordo em grande parte do texto, discordando apenas da comparação com Jogos Mortais. Não que eu defenda Jogos Mortais, acho que a idéia é até boa, mas seria melhor utilizada em um drama meloso sobre o paciente terminal, ou em um suspense "supercine" com ênfase na investigação do caso. Priorizaram o sangue. É tudo muito nojento repulsivo e rentável. Enfim...
Discordo da comparação porque O Albergue, do alto de minha capacidade analítica inexistente, é uma comédia. Do pior tipo.
Não é possível que alguém tenha apresentado este projeto a uma produtora de respeito sem dar apenas um "sorrisinho maroto". Ainda tenho esperanças de um dia descobrir que este filme foi roteirizado por dois nerds de 12 e 13 anos, após uma madrugada acordados e sintonizados na programação noturna da TV bandeirantes no fim da década de 90.
Metade cine Privê.
Metade cine Trash.
Desculpando-me pela ofensa que destinei ao querido Zé do Caixão e à honorável Emanuelle, mas realmente não imagino o que mais teria motivado esses caras.
Tarantino também deve ter se arrependido disso. Acredito que tudo foi bancado pela Motorola, para divulgar seu maravilhoso celular V3 com dois megapixels de câmera, mesmo sem conceber uma empresa dando dinheiro para esses caras.
Mas enfim, caro amigo, o filme foi um "sucesso", e teremos uma continuação tão lucrativa quanto esta, porque não contentes com o banho de sangue diário, temos curiosidade em ver do que o Tarantino é capaz, adoramos européias oferecidas e estamos ansiosos pelos novos lançamentos da Motorola.