quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

Camila


É sempre assim, o tempo todo. Ela entra no quarto, bagunça o guarda-roupa durante umas três horas, testa todas as saias e blusas e vestidos que tem e pinta os olhos, para depois desistir de sair e deitar-se na cama. Borra a maquiagem recém-feita no salão, fica pensando na vida enquanto conta quantas infiltrações tem na parede do quarto, quantos passarinhos vão passando pela varanda até o amanhecer, quantas horas passa a esmo. Se masturba também, enfiando os dedos com violência no próprio corpo. Até sentir o orgasmo mecânico, e cair em instável e forçado sono.

Sempre foi assim. Desde pequenininha, quando corria pela rua empinando pipa, quando arranjou seu primeiro namorado, quando entrou na faculdade... quando se casou. Tinha esse ritual de tentar botar os pés na rua todo sábado à noite. A cada semana, mais esperança alimentava dentro de si. Nunca, porém, conseguiu passar da porta de casa. Seu peito apertava e se retorcia, seus olhos reviravam sob as luzes ofuscantes da metrópole. Era a sensação de mal-estar que lhe impedia de sair com os amigos, com o namorado, com a família.

Era vista como uma louca. Caía aos berros quando era obrigada a sair de casa; teve a família desestruturada, perdeu marido, filhos, foi tornando-se a única naquele apartamento gigantesco no centro da Paulista. Trabalhava em casa mesmo, ganhava dinheiro suficiente para tudo que precisava e queria. Mas para que um dinheiro que não podia gastar lá fora? Do que ela precisava, e o que ela queria? As cortinas que a separavam do mundo balançavam graciosamente em volta da silhueta raquítica que olhava, a cada maldita manhã trespassada, o mundo seguir seu rumo.

Sempre foi assim, durante doze longos anos. Um belo dia, porém, a mulher doente resolveu sair de casa, finalmente encontrar o mundo que a esperava há anos. Foi pela janela da sala, sentindo a fumaça urbana lhe penetrar a pele e os gritos da rua serem engolidos pelo silêncio da morte. Chegou lá embaixo esbanjando vida, com o vermelho de seu vestido cuidadosamente escolhido contrastanto com a pele alva e com as olheiras há anos cultivadas. Até cair em instável e forçado sono.

José Augusto Mendes Lobato 03/09/06

Um comentário:

Anônimo disse...

caralho


caralho mesmo


compartilhamos esse "fascínio" por coisas mórbidas... (falo disso no post atual do (co)Lapsos)

-bacana teu blog de poesias!

abraço