sábado, 28 de julho de 2007

Os Corrêas

A família se apressou toda para chegar a Salinas a tempo. Último fim de semana de julho. A mãe, Márcia, já havia comprado o material escolar dos quatro filhos; o marido, Ulysses, pago todas as mensalidades prévias da escola do Luciano e da Mari, da universidade da Carol, da natação do Luciano, do espanhol, alemão e francês do Pedro, do inglês da Carol, do balé da Mari... enfim, tudo encaminhado. Todo mundo já estava de saco cheio das férias em Belém - 20 dias de trabalho para os pais, 20 de idas e vindas à AP e ao Moviecom para os filhos. Era hora de ir curtir dois dias de praia, ao menos. Os seis e o cocker spaniel da família, Luke.

O estresse já começou na estrada. O cachorro enjoava no carro, e o engarrafamento já tinha rendido um vômito no banco e duas paradas pra dar uma voltinha. O pai fumava muito, o que fazia a família inteira compartilhar fumaça e calor de 35 graus dentro do carro. Haviam saído da cidade às duas, já eram quatro da tarde e mal haviam passado Castanhal. Mari dormia. O celular da Carol não parava de tocar; ela e o namorado brigavam desde a semana anterior.

- Porra, Marcos, eu tou na estrada, caralho! Não quer me esperar, vai pra praia duma vez! - e desligava na cara do menino, que, como posteriormente constatado, estava bebendo sem parar na praia desde quarta-feira.

Pedro, que era um pouquinho mais calmo, conversava com a mãe e lia Schopenhauer no banco de trás do Crossfox verde. Ele bem se lembrava do trabalho que fora comprar aquele carro; Ulysses se endividou todo, não conseguiu pagar as prestações e ainda por cima se enrolou com a conta do celular da Carol. Provavelmente, aquela viagem à Salinas ia ser a última do carro novo, e a família iria devolvê-lo e trocá-lo por um Palio na volta. Na verdade, Pedro odiava Salinas, estava indo só para acompanhar a família. Seu namorado ia ficar em Belém.

Márcia estava inconsolável. Primeiro: descobriu que Pedro era gay no dia anterior. E desconfiava que Ulysses tinha uma amante. Tinha a viagem como esperança para reaproximar a família, que não andava muito bem das pernas desde que Mari nasceu. O clima de férias talvez salvasse o casamento e o brasão dos Corrêa. Resolveu puxar um assuntozinho esperto com o filho preferido:

- Pedrinho, e como vai a faculdade? Em que semestre que você vai entrar agora, meu filho?
- O sexto, mãe...
- Ah, tá, e que matérias você vai ter?
- Umas lá...

Silêncio enjoado. Claro que o pai nunca gostou muito do curso de Filosofia que o filho inventou de fazer. Primeiro, por ter que sustentá-lo até o fim dos tempos. Segundo, porque aquilo era coisa de fresco. Para seu Ulysses, muito afeto à vida e aos costumes militares, Pedro devia ou servir ao exército, ou fazer Direito. Ele nunca se conformou com a delicadeza do filho, notoriamente o mais bonito dos quatro: olhos verdes como os da mãe, cabelos ruivos e cara de ator da Malhação. Sem os músculos e a voz de homem, claro. Ulysses achava estranhíssimo tanta beleza nunca ter trazido uma namorada pra casa; um "desperdício".

- Puta que o pariuuuuuuuuuuu!!! - Márcia berrou quando um ônibus cortou o carro no meio de uma curva e fez Ulysses jogar o carro no acostamento. Baixaram o vidro, mandaram cotocos e fizeram um escândalo com o motorista. Tudo que o barbeiro fez foi mandar um beijo para Carol, a essa hora muito puta com o peso da Mari no seu colo. Ulysses voltou pra pista, acelerou o carro, correu, correu e correu... até chegar no famoso engarrafamento da Nova Timboteua. Culpa daquelas lombadas imbecis.

- Mãe, tem Dramin pra me dar?
- Luciano, a gente já está chegando, meu filho... já te dei no começo da viagem, vê se dorme um pouco!
- Mãe, eu tou com dor de cabeça!!!
- Então o remédio não é Dramin, porra! - e jogou uma caixa de Tylenol nas mãos do filho.

Luciano era o quase-caçula. Mimadíssimo, era uma desgraça na escola, já havia reprovado a quinta e a sétima série, e agora estava em ano de vestibular. Não tinha nem idéia do que fazer. Márcia e Ulysses não tinham mais paciência para tomar conta dele: deixavam tudo, cagavam para tudo e confiavam a tutela de Luciano a Pedro, que era seu único amigo dentro da casa. Ele levava o cachorro, que já demonstrava certa inquietação, no colo.

Apesar de tudo, os Corrêa eram pessoas inteligentes. Carol cursava Psicologia, e já tinha emprego garantido numa clínica famosa da cidade quando se formasse; Pedrinho era cultíssimo, chefe do Centro Acadêmico de Filosofia e querido pelos professores da UFPA; e Mari, do alto de seus três anos de idade, já havia ganho diversas medalhinhas de bom comportamento dos irmãos do Nazaré. Exceto por Luciano, era uma família de responsáveis.

Carol olhava pros pais pelo canto do banco. Márcia rezava um terço ("para proteger a gente nessa estrada cheia de bêbado!"), Ulysses fumava, segurando o volante com o dedinho da mão direita. Eram um casal bonitinho... estavam juntos há exatos 24 anos. Márcia e Ulysses se conheceram em uma roda de fumo na Federal e logo tornaram-se namorados. Casaram-se em Curitiba, quando faziam pós-graduação. O tempo, porém, tirou deles tudo o que restava de porra-louquice e naturalidade, e agora, casados e imersos na enfadonha vidinha a seis, eram estranhos dividindo cama, filhos, contas a pagar e o mesmo psiquiatra. Carol foi quem prontamente endossou a viagem da família; nem lembrava da última vez em que tinham curtido férias; provavelmente, naquela vez para a Disney, quando Mari ainda estava na barriga da mãe...

Voltando à viagem. Eram cinco e meia da tarde, e ainda não tinham chegado a Salinas. Mas que porcaria de feriado era esse, se eles tinham que voltar no domingo de manhã e iam perder um dos dois dias de praia?!? Sem contar a gasolina, as diárias do Hotel... "puta merda", Ulysses pensou, "ao menos a gente não vai se preocupar tanto com os meninos". O Luciano ia ficar na praia com os amigos e, no máximo, tomaria um porrezinho. Pedro ficaria no resort, lendo. A Carol ia grudar no namorado, nas noites do Atalaia. Só a Mari - tadinha da Mari - que ia precisar de atenção. Para Ulysses, a razão maior para a viagem era a caçula de três anos, que não sabia o que eram férias com os pais, longe de babás e cuidados da avó. Márcia e o marido decidiram levá-la à praia, para correr um pouco na areia e largar de mão o uniforme da escola. Mas enfim, né... só se o engarrafamento andasse!!!

Só sabe-se que, às sete, o Crossfox estava exatamente embaixo daquela placa "Bem-vindo a Salinópolis", que fica a dois quilômetros da entrada verdadeira da cidade. Os celulares já não funcionavam, e Mari acordara inquieta com a demora. Luke estava começando a ficar com fome, enfiando o focinho no pacote de remédios de Luciano. Márcia já desistira do terço, e agora lia a Caras da semana.

- Alemão e Siri, juntos no casamento da Flávia... quem diria, hein, Ulysses!

É. Quem diria, sua filha duma égua. Eu aqui, torrando minha gasolina, com um monte de gente que não aguento mais ver a cara, indo pra Salinas só pra fingir que tenho vida social, e tu lendo essa merda aí. Ulysses se assustou: por pouco não pensou isso em voz alta! Não fosse pela Mari, já tinha largado o carro com os três filhos, cachorro e a mulher, e tinha ido encontrar a tal amante em Moscredo. Para piorar, começou a sentir um cheiro horrendo no carro: alguém estava com vontade de cagar!

- Quem quer ir no banheiro aí, pessoal?

Mari estava encolhida num canto, lagrimando. Por debaixo do vestidinho rosa, um fluido marrom escorria e deslizava pelo banco novo em folha do Crossfox. Os irmãos mais velhos começaram a dar risada; Luciano fez menção de vômito, mas logo depois caiu na cargalhada. Luke foi cheirar a cagada. Mari berrou. Márcia começou a chorar. Ulysses pegou o Bom Ar da sacola e deu umas borrifadas pra trás:

- Chegando em Salinas, a gente dá um jeito nisso!

Eles chegaram na cidade cerca de meia hora depois. O Crossfox vomitado e cagado ficou no estacionamento do Privé, numa vaga distante de possíveis olfatos aguçados. A família, exausta, se preocupava em dar água para o cachorro, que viera o caminho inteiro babando e agora mal abria os olhos. Ulysses, cansado, emputecido, com câimbra nos pés e sem cigarro, foi no balcão pegar as chaves do quarto. Mas, que chaves?

- Senhor, nós estamos lotados... você fez reserva conosco?
- Claro que eu fiz reserva, porra! Tenho quatro filhos, um cachorro e a minha esposa comigo, alugamos duas suítes de frente pro mar, inclusive!
- Calma, senhor, que eu vou chamar nosso responsável pelas reservas...

Responsável é o caralho, meu amigo. Dessa vez, Ulysses pensou alto: voou por cima do balcão, e esqueceu das férias tão merecidas. Espancou o pobre recepcionista e quebrou jarros e peças decorativas nele, até que o segurança o conteve, expulsando Ulysses do hotel. Humilhado, ridicularizado, expulso, sentindo as picadas de carapanãs e a raiva lhe subir pelas entranhas diante da exposição ao ridículo, Ulysses literalmente ligou o foda-se.

- Vão à merdaaaaa! Seus filhos duma puta! Caralhooooooooooooooooo!

E saiu correndo em direção à praia. No caminho, tirou a roupa. Primeiro, teve uma crise de riso. Depois começou a espumar. Depois o olho revirou. Depois cagou-se nas calças. Depois, teve uma convulsão; voltou pra Belém de ambulância. Acompanhando-o, só o médico da Unimed e o Luke, intoxicado após comer quase uma cartela de Dramin. Márcia, Pedrinho, Carol, Luciano e Mari ficaram no hotel Privé - sim, o responsável pelas reservas tinha, de fato, reservado os quartos da família, inclusive oferecendo-os de graça devido à confusão com o recepcionista -, curtindo Salinópolis com aquele ar saudoso de quem não imaginava como era a cidade longe do Ulysses.

Como a praia estava muito lotada, passaram sábado e domingo no hotel, à beira da piscina: Márcia e Carol discutindo a gravidez da Carolina Dieckmann; Pedrinho lendo e ensinando Luciano a distinguir socialismo de comunismo; Luciano fumando um e batendo punheta no banheiro, entre uma e outra aula do irmão; e Mari, tadinha... de novo esqueceram da Mari. Ninguém reparou quando a ambulância foi embora pela estrada de volta do Atalaia. Ela quis seguir o paizinho e saiu andando a pé atrás do carro. Está perambulando pela estrada. Provavelmente, vai chegar em Belém antes do Ulysses.

6 comentários:

Leo Nóvoa disse...

Mais um dos contos bizarros cotidianos normais do guto.
auehuahua
Mas ficou massa.

abraço

Mayara Luma Maia Lobato disse...

amor, coitadinha da mari!! fiquei trsite! hahahahaha. mas tá muito legal, uma cagada!! hahahahah

:** amo-te

Camila Barbalho disse...

Pô, eu espero que tuas férias tenham sido divertidas.


Que cagada, hein?

=D


Amo-te, putão.

alessandra godinho disse...

uma das coisas mais estranhas e mais legais que já li, guto. nota 10! (me senti uma professora agora, haha).

Arthur Nogueira disse...

O típico retrato de uma família pós-moderna. Muito bacana. Achei teu blog por acaso, Guto. Abraço pra ti.

Marcelo Oliveira disse...

nossa hein...
sempre as estórias históricas hehehhehee
por sinal...o cachorro com vômito me parece familiar....hehehhee